16 de mar. de 2011

A época maneirista e as circunstâncias.





A compreensão do pensamento e da arte em geral do período maneirista não será plenamente conseguida se não houver por parte do estudioso do assunto um empenhado interesse em reconstituir em sua mente todo o transtorno no qual viveram os homens dessa época, incluindo-se dentre eles os artistas e escritores; se não se buscar, enfim, saber acerca das excepcionais mudanças que marcaram a época que assistiu ao surgimento do Maneirismo. Mudanças estas que não ocorreram apenas nos domínios da técnica, da mecânica, da astronomia e das ciências, estendendo-se à ordem política, social e religiosa. 
Nestes primeiro e segundo casos, o absolutismo triunfante provocou o esfacelamento do feudalismo decadente, e a doutrina do realismo político, formulada por Maquiavel, encontrou um fecundo terreno para sua expansão na interesseira recepção dos seus poderosos apoiantes, enquanto a burguesia ascendente afirmava-se como classe dominante, alargando o seu espaço de prestígio e poder. 
A ordem religiosa, por sua vez, não poderia sair incólume de alterações em uma época regida pelo signo da mudança e da instabilidade. Seria paradoxal que em meio a uma sociedade agitada por tantas modificações, a Igreja Católica conseguisse preservar as suas milenares tradições religiosas. 
O conservadorismo que as sustentava não poderia resistir muito tempo às investidas audaciosas e pertinazes da liberdade de pensamento, responsáveis pela abertura dos caminhos conducentes ao livre arbítrio e à crítica, dos quais resultaram a Reforma luterana e o conseqüente movimento contra-reformista que, com todas as armas, tentou, improficuamente devolver à Igreja o domínio exclusivo da fé religiosa no seio da cristandade.
Aos contrastes inexplicáveis, à inquietante diversidade que oferece a época maneirista, não poderia ficar indiferente a literatura que lhes era contemporânea. Produzida nessa atmosfera, a literatura participaria, forçosamente, do espírito de contradição e de mudança de sua época. 
Por tudo isso, não seria legítimo pensar no Maneirismo apenas como um período da história da literatura desvinculado da realidade histórica quinhentista, na medida em que tal dissociação não viabilizaria a compreensão plena e necessária da época e das circunstâncias em que se deu a gênese do Maneirismo e todas as luzes que tais conhecimentos podem lançar sobre o bom entendimento da própria estética maneirista, suas relações antagônicas com o Renascimento, a atitude mental e espiritual dos homens que produziram as suas obras poéticas em meio a toda conturbação que caracteriza a referida época.
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Portanto, é pautado por tais princípios que Aguiar e Silva, ao afirmar que o Maneirismo representa uma profunda reação anticlássica, acrescenta que tal reação “só pode ser corretamente entendida, nas suas raízes e nas suas implicações, bem como nas suas conseqüências, se for situada num amplo contexto histórico-cultural, relacionando-a com o que Arnold Hauser denominou de Crise do Renascimento. Essa crise, que já vinha se anunciando desde os primórdios do século XVI, eclodiu à volta de 1520, “sob a acção conjunta e dialética de fatores de vária ordem e de âmbito diverso: políticos, religiosos, morais e ideológicos, os quais determinaram uma radical mudança na visão de mundo, no sentido da vida e na imagem do homem prevalecentes no período renascentista”.[1]
No ano de 1527, doze mil mercenários das tropas de Carlos V invadiram Roma, deixando a cidade em ruínas e a população traumatizada. Saquearam minuciosamente os palácios, as Igrejas e os mosteiros, mataram os padres e monges, roubaram, violentaram e maltrataram as freiras; fizeram dos conventos o lugar para as mais pervertidas orgias; fizeram da Basílica de São Pedro uma cavalariça e do Vaticano uma caserna. Inestimáveis tesouros artísticos foram destruídos. 
A esses horrores praticados contra a população civil principalmente, somaram-se as guerras, a dominação estrangeira, a peste, a miséria, a fome e outros trágicos acontecimentos que aniquilaram o ânimo nacional. Os próprios alicerces da cultura do Renascimento italiano foram abalados de forma irreversível, sucumbindo na atmosfera sombria e sem perspectivas que provocara a dissolução da Escola de Rafael, derradeiro reduto da arte renascentista do país, e a conseqüente dispersão dos seus seguidores.
À esta crise sócio-política, em si mesma tão grave, somou-se a crise religiosa que radicalizou os ímpetos, gerando no seio da cristandade um aflitivo vazio e uma cisão nunca antes ocorrida na história da Igreja Católica. A partir de 1517, a verdade sustentada há mais de um milênio pela Igreja Católica passa a ser questionada por Lutero, que também não se poupa de criticar a deplorável conduta do clero, inclusive a do próprio Papa.
Se ao longo do seu passado permeado de glórias e caracterizado pelo inexpugnável e ilimitado poder que exercia sobre as consciências e as vontades, a Igreja Católica conseguira aniquilar ou neutralizar as heresias que se atreviam a ameaçar a sua hegemonia, no século XVI amargou a sua primeira e irreversível experiência de derrota frente à proposta reformista luterana que, não apenas triunfou, como encontrou as condições propícias para afirmar-se definitivamente na fecundíssima vastidão da precariedade material, da incertitude perante a vida, e da inconsistência espiritual do fragilizado homem da época quinhentista. É claro que o apoio da nobreza e da massa popular alemães concedido ao programa reformista luterano foi de grande importância para seu sucesso e para a desestabilização ainda mais acentuada do poder da Igreja Católica, cujos alicerces já se encontravam abalados e corroídos pela indignação luterana contra a corrupção e a avareza do clero, o comércio das indulgências e de cargos eclesiásticos que, na verdade, foram a causa imediata em razão da qual o movimento reformista eclodiu.
A vitória da Reforma luterana levou a Igreja Católica a assumir uma atitude de combate aos avanços e alastramento dos ideais reformistas e à concomitante restauração do abalado prestígio do catolicismo através dos mecanismos da autoridade e da força. Teve início, então, a tenaz perseguição aos humanistas, não escapando dos ávidos tentáculos inquisitoriais os representantes do alto clero apegados à ideais humanistas. O processo de fanática aversão e de obsidiante hostilidade para com os ideais e valores renascentistas logo se alastrou, marcando presença em todos os lugares onde estes haviam triunfado. A fundação da “Ordem de Jesus” tornou-se o modelo da disciplina eclesiástica e a grande articuladora das estratégias coercitivas e punitivas da Contra-Reforma postas em prática pelos prelados militantes da Inquisição e membros do “Tribunal do Santo Ofício”. Em 1542, foi reativada a Inquisição que se tornaria o principal instrumento da ação contra-reformista na luta para pôr termo às audácias e aos avanços da rebelião espiritual e da liberdade de pensamento. Em 1543, estabeleceu-se a censura às obras impressas e, em 1545, deu-se a abertura do Concílio de Trento. A instauração desse concílio assinalou a supressão da amigável convivência da Igreja com a literatura e a arte em geral, que passaram a ser submetidas ao vigilante e rigorosíssimo controle do clero. A liberdade antes fruída chegara ao seu término ou vira adelgaçado o seu direito de livre expressão nos espartilhos da censura contra-reformista, na tortuosidade labiríntica do desumano esquema repressivo do Santo Ofício. Nenhum escritor ou artista dava largas a ousadias da criatividade artística que pudessem acusá-los de heresia ou de desvios às drásticas e inquestionáveis determinações da estreiteza mental e espiritual da Contra-Reforma militante. A única forma de preservação da vida ou da liberdade era caminhar nas trilhas da aviltante submissão da inteligência e da sensibilidade ao obscurantismo dimanado de Trento. Como oportunamente observa Vítor Serrão: “Por todo o lado a inquietação e as dúvidas se instalam nos espíritos. Vivem-se tempos de crise social, política e mental, de verdadeiro trauma colectivo [...] e as certezas dogmáticas anteriormente adquiridas como bem intangível e imutável esfumam-se e debatem-se num permanente conflito interior. A serenidade de ideais do Renascimento cede passo a um estado crítico de insegurança, em cujo seio se elabora uma revisão radical de valores, sem precedentes na História da Cultura européia”. Por volta de 1520, o conjunto de valores “que caracterizou a sublime lição do Renascimento clássico é abalado em toda a sua estrutura conceptual por uma “revolução anticlassicista” que, por sua vez, recusa o cânone renascentista, contrapondo a este um outro que lhe é próprio”[2] e cuja expressão artística se consubstanciaria no Maneirismo.
As bases da cultura do Renascimento e, conseqüentemente, os valores fundamentais do Humanismo, não resistiram ao impacto das grandes transformações decorridas em uma época tão caótica, entraram em colapso e se esvaíram numa infernal convulsão no seio do pesadelo vivido por uma sociedade em falência. Não é, portanto, sem fundamentos que Arnold Hauser considera o Maneirismo “um fenômeno de evasão através da arte e do sonho para fora de uma realidade insuportável”.[3]


Autoria: Zenóbia Collares Moreira. A Poesia maneirista portuguesa. Natal, EDUFRN, p;19-23, 1999. 


Imagem: Pálas Athenea. Óleo do pintor maneirista italiano Parmigianino- Royal Colletion - Windsor Castle.
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Notas
[1 Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na poesia lírica
portuguesa, p. 226.
[2] Vítor Serrão. Ob. Cit. p.17
[3] Arnold Hauser. El Manierismo, p. 125.

4 de mar. de 2011

O Maneirismo nos contextos político, social e religioso da época.

Não se pode dissociar artificialmente a literatura da cena social e histórica sobre a qual ela se desenvolve, nem a misturar em um amálgama social despojado de especificidade.
                                                                 Alexandre Dima

Antes que o século XVI chegasse aos seus meados, tal como ocorrera em outros países da Europa Ocidental, também em Portugal, o sistema de valores do Humanismo começou a apresentar sintomas de debilidade, em virtude de uma pluralidade de causas que o abalaram em suas raízes, arrastando-o à crise que determinaria o seu desmoronamento. 
De forma cada vez mais crescente e acentuada, vai irrompendo um sentimento de decadência e de insatisfação nos homens da época, apartados pela distância temporal da fase gloriosa do triunfo da expansão portuguesa e do conseqüente domínio lusitano nas terras conquistadas em outros vastos continentes de além-mar, razão de orgulho nacional e de prestígio para Portugal entre as nações européias. O que lhes reservava o momento histórico vivido na segunda metade do século XVI, era o despontar soturno das densas trevas da Inquisição sobre seus destinos e incertezas, era o advento de uma nova era marcada pelos horrores praticados pelo Tribunal do Santo Ofício contra quem ousasse contrariar as suas determinações, sob o olhar complacente e cúmplice do poder real. Vivia-se o apogeu do escandaloso concubinato do Estado com a Igreja, da conjunção nefasta e atemorizante de forças e de intenções, formando fileiras na “guerra santa”, deflagrada contra a heresia luterana e calvinista. A religião tornara-se um deserto espiritual; a perseguição feita em nome de Deus transformou-se em uma obsessão criminosa e cruel.
A primeira geração de poetas maneiristas portugueses vicejou no clima sufocante e castrador derivado da ideologia contra-reformista, tão bem assimilada e posta em prática no reinado de D. João III, resultando em medidas de extremado rigor contra eventuais ousadias da liberdade de expressão, em obediência às determinações da censura eclesiástica, provenientes do concílio de Trento, cujos princípios doutrinários e religiosos, divulgados reiteradamente através do púlpito, principalmente, eram postos em prática pelos mecanismos da rigorosa ação coercitiva imposta pela Igreja Católica por meio dos variados estratagemas criados pelo Tribunal do Santo Ofício.
Em sua História da cultura em Portugal, António José Saraiva aborda com muita propriedade a complexa forma que assumem as relações da Igreja Católica com a cultura da época, descrevendo a maneira autoritária como a Companhia de Jesus e seus empenhados “soldados de Cristo” –os jesuítas–, defensores radicais e inflexíveis da ortodoxia católica, passaram a exercer uma tutela absoluta nos meios educacionais, impondo aos colégios e universidades um rigorosíssimo e dogmático sistema de ensino que coibia quaisquer desvios à rígida orientação pedagógica determinada pelo clero que, inclusive, coibia qualquer tipo de inovação. 
Por outro lado, visando a evitar eventuais transgressões às normas estabelecidas para a defesa dos interesses religiosos e morais da Igreja Católica, a censura inquisitorial criou um esquema de vigilância que incluía, dentre outras estratégias, a denúncia de hereges e infratores, bem como o controle dos livros publicados ou vendidos em Portugal. 
A partir de 1539, nenhuma obra poderia ser publicada ou posta à venda antes de passar pelo exame do censor inquisitorial designado para esse fim. Em 1540, por ordem do inquisidor-geral, foi feita uma devassa geral nas alfândegas, livrarias, bibliotecas públicas e particulares de todo o país para busca e apreensão de livros julgados suspeitos. Em 1561, foi divulgado o segundo índex das obras proibidas em Portugal, acompanhado da legislação estabelecida pela Inquisição sobre os livros. Vinte anos depois, é divulgado outro índex muito mais rigoroso que o anterior. Este, além de incluir novas obras, impunha outras normas para a obtenção da licença para a impressão de livros, segundo as quais a liberação seria concedida se fossem feitos cortes ou alterações nas partes consideradas nocivas aos interesses da Igreja Católica. Os trechos julgados inconvenientes eram modificados ou eliminados de maneira arbitrária e inquestionável pelo censor, investido de absoluta autoridade e de liberdade para exercer a censura de acordo com seus próprios critérios e preconceitos.[i]
À guisa de exemplificação, José António Saraiva oferece vários exemplos, dentre os quais foi selecionado o fragmento que se segue, do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, modificado pelo censor, que eliminou do referido auto a corrosiva crítica do autor aos desregramentos sexuais do clero:

Texto de Gil Vicente

Diabo- Essa dama... ela é vossa?
Frade- Por minha lá tenho eu.
E sempre a tive de meu.
Diabo- Fizestes bem, que é formosa
E não vos punham lá grosa
No vosso convento santo?
Frade- E eles fazem outro tanto...

Texto dos inquisidores:

Diabo- Essa dama... ela é vossa?
Frade- Não por minha a trago cá.
Diabo- E não vos punham lá grossa
Nesse convento sagrado?
Frade- Assim fui bem açoutado. [ii]

O que fica bem evidente nas arbitrárias modificações praticadas no texto vicentino é a cumplicidade da impostura com a hipocrisia, acobertando a lascívia e o comportamento do clero em nada condizente com a função sacerdotal que exercia.

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