7 de fev. de 2011

Divergências entre o Maneirismo e o Barroco.


O problema das divergências entre o Maneirismo e o Barroco se equacionam de maneira mais pacífica. Não há oposição entre ambos estes estilos vizinhos, observando-se, inclusive, que muitos elementos temáticos e estilísticos próprios do estilo maneirista transitaram para o Barroco, quando da passagem de um estilo para o outro. Todavia, tais elementos, ao se transferirem para o estilo que o sucedeu, não conservaram as mesmas significações que lhes eram atribuídas quando integrados no estilo maneirista. Com efeito, Maneirismo e Barroco, apesar de instaurados em momentos e por motivações distintos, se afirmam como respostas diferentes, mas igualmente opostas, ao sistema de normas e padrões do Renascimento.
Acerca das relações entre Maneirismo e Barroco, escreve Maria Lucília Gonçalves Pires que o Barroco “prolonga em certos aspectos temáticos e estilísticos” o Maneirismo, mas que dele “se distingue por essenciais diferenças de atitude perante o mundo e perante a literatura”.[1] Por sua vez, Emílio Orozco Diaz insiste em afirmar que, se o poeta maneirista maneja os elementos, temas e formas do classicismo e os ordena, relaciona e complica de acordo com uma nova vontade estética que impõe um ideal contrário ao espírito de equilíbrio, de serenidade e de harmonia, que imperava em pleno Renascimento, “não será estranho que o Barroco faça a mesma utilização das formas, temas e motivos dessa tradição clássica, somada à persistência de todas as complicações e artifícios introduzidos pelo Maneirismo”.[2] Vale lembrar que não são poucas as obras que abordam o Maneirismo, todavia, além de não o definirem com clareza e precisão, ainda discrepam em relação a muitos dos seus aspectos. Arnold Hauser critica, principalmente, a tese sustentada por Robert Ernst Curtius que considera o Maneirismo uma “manifestação de um elemento permanente no espírito ocidental e, em suma, que é uma possibilidade independente do tempo”.[3] Essa concepção de Curtius, acatada por outros estudiosos, vê o processo histórico como um fenômeno que se repete ciclicamente, retomando hoje o que já ocorreu ontem de forma regular. Tal concepção é tão pouco provável quanto a que vê no Maneirismo um mero período de transição entre o Renascimento e o Barroco, uma espécie de ponte entre esses dois estilos de época.
Surgido no seio de um Renascimento moribundo, rompendo com as normas e padrões do classicismo renascentista, o Maneirismo se impôs como estilo autônomo, dotado de fisionomia própria. Não pode ser tomado como mero processo de transição do Renascimento para o Barroco, da mesma forma que, em virtude da peculiaridade dos seus traços definidores, não se confunde com nenhum desses estilos vizinhos.
Georgette Bergo Yhan escreve um pertinente comentário acerca do Maneirismo e das possibilidades de compreendê-lo que, em virtude de seu rigor analítico, impõe uma sua transcrição integral. Para essa autora, “só é possível obter um entendimento adequado do Maneirismo se ele for observado como o produto de uma tensão entre Classicismo e anti-classicismo, naturalismo e formalismo, racionalismo e irracionalismo, sensualismo e espiritualismo, tradicionalismo e inovação, convencionalismo e revolta contra o conformismo; pois sua essência repousa nessa tensão, nessa união de opostos aparentemente inconciliáveis. Esta tensão, entre elementos estilísticos conflitantes, encontra sua pureza e sua expressão mais notáveis no paradoxo[...]. A técnica dos contrários, a impetuosidade, os artifícios exacerbados e confusos, a estranha complexidade interior expressa o conflito da própria vida e a ambivalência das atitudes humanas. Há muito de Petrarca e, até mesmo, da técnica de contrários já conhecida dos poetas provençais, no Maneirismo. Sob o domínio do “disegno interiore”, da “idéia”, da “acuteza recondita”(sutileza), da “figurae” a comporem determinada forma de expressão que se caracteriza pela divisão do mundo em dois níveis: a realidade física e a realidade composta pela imaginação fantasiosa. profundamente idealista, o Maneirismo tem no neoplatonismo seu fundamento filosófico. Vemos os maneiristas como a própria encarnação do conflito humano, da contradição e da dúvida expressos nos paradoxos que denotam o labirinto íntimo em que se vêem envolvidos e os levam a jogarem-se em contínuas buscas, numa ânsia de libertação”.[4]
O Historiador da arte e profundo conhecedor do Maneirismo português, Vítor Serrão, considera que, em termos ideológicos e culturais, o Maneirismo foi “uma corrente irracionalista que, mercê da crise generalizada do “Cinquecento”, ganhou foros de estilo internacional dominante em grande parcela do século, projetando as suas soluções estéticas de vanguarda no duplo sentido antinaturalista e anticlássico. A ruptura com os anteriores valores do Renascimento entronca na nova concepção da obra artística como produto intelectual, “cosa mentale”, em oposição total ao conceito clássico da obra de arte como imitação da natureza.[5] Esta forma de encarar o Maneirismo, no entanto, não se reporta apenas às artes plásticas, adequando-se com justeza e precisão à arte literária.
O que é de suma importância para os que se iniciam no estudo do Maneirismo literário português é que fique bem clarificada a questão não apenas da oposição do Maneirismo ao Renascimento, mas antes e principalmente a legitimidade do seu conceito e o reconhecimento de sua autonomia como unidade estilístico-periodológica integrada no esquema da periodização da história literária portuguesa.
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Notas
[1] Maria Lucília Gonçalves Pires. Poetas do período barroco, p.15-16.
[2] Emilio Orozco Diaz. Maneirismo Y barroco, p. 196.
[3] Robert. Ernst Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, p. 281
[4] G. Georgette Bergo Yahn. O homem sob o signo do desterro, p.121
[5] Vítor Serrão, O Maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. p.21.
[6] Zenóbia Collares Moreira. A Poesia maneirista portuguesa. p. 17-18.
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Zenóbia Collares Moreira.

Imagem na postagem do pintor italiano Tintoreto.