18 de abr. de 2012

O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido- Ensaio. Parte I.



Nasceu Anna Augusta a 27 de setembro de 1831 no Porto, filha do negociante António José Plácido Braga e de D. Anna Augusta Vieira. Aos dezessete anos, conheceu Camilo Castelo Branco em um baile, por quem se sentiu atraída e cortejada. Encantado com as formas e o espírito desenvolto da jovem, o escritor logo declara a um amigo ser aquela menina vestida de branco a sua “mulher fatal”. A obsessiva paixão de Camilo, que arrastaria Anna Augusta a trinta anos de caminhada através de uma dolorosa via crucis, tem portanto um começo romântico, imortalizado nos versos que o romancista escreve depois:

Quando te vi n’um baile, ó flor aberta às auras,
Qual donzel medieval, pudibundo corei
Eu, vago scismador de legendárias Lauras,
                                               Erguer a ti o olhar só mal e a furto ousei!

Reprimida em seus arroubos românticos pelo pai, dois anos depois, Anna Augusta é levada a um casamento de conveniência com um rico comerciante do Porto, com idade para ser pai da noiva. Depois de cinco anos de vida cinzenta junto o marido, Anna Plácido inicia um romance às escondidas com Camilo.. Após dois anos, já com um filho gerado adulterinamente, abandona o casamento para unir-se ao amante, na época poeta e romancista iniciante.
Aquele baile inscreve-se na vida de Camilo e Ana como uma espécie de armadilha forjada pelo destino adverso que propiciara o encontro de dois seres fadados a seduzirem-se, mutuamente, de forma irreversível. Se a imagem de Anna nunca escapou ao pensamento de Camilo, com ela deu-se o mesmo, conforme ela mesma o confessa em uma das suas “Meditações:
“ Mulher sou hoje. Posso falar assim com a prematura velhice da experiência e da desgraça. Acordada aos dezessete anos, fixei a aurora do meu caminho com o seio aberto a todos os rigores da vida, a todas as expansões amorosas que se me abriam na imaginação noviça. Em uma sala de baile, no meio do esplendor das luzes e do aroma rescendente de mil vasos entumecidos de flores, uns olhos disseram-me ao coração “vive” – um sorriso fez-me estremecer todas as fibras que estavam intactas. Diluiu o tempo muitas idéias jubilosas de ante-amanhã deste dia, desfizeram-se muitas impressões da infância destas que ficam sempre gravadas n’alma; os anos correram morosos na tempestade, a vereda oscilou em vulcânicas convulsões; mas esta visão primeira do amanhecer, aquele olhar caído em seio virgem, jamais pôde ser esquecido!...”[i]
Audaciosa, Anna Augusta parte em busca de uma nova possibilidade fora do casamento, não se importando em afrontar o falso puritanismo da preconceituosa sociedade oitocentista, movida por valores burgueses e a força coercitiva e punitiva da lei.
Mulher avançada para a sua época, ousa transgredir os limites que lhe são impostos pelo grupo social. Após retumbante escândalo público, dois anos depois de ter abandonado o casamento, Anna Plácido, sob a acusação de adultério, levantada pelo marido traído e indignado, é mandada para a prisão numa cadeia do Porto em 1860, onde aguardará o julgamento. Quatro meses depois, Camilo entrega-se voluntariamente à prisão. O escândalo atingiu dimensões catastróficas para o casal tanto na sociedade como na vida em comum. Decorrido quase um ano de cárcere, o casal foi levado a julgamento público, absolvidos e postos em liberdade.
Se o julgamento da sociedade foi implacável com Ana Plácido, não era menos radical o conceito em que esta gozava no espírito da escritora, como fica bem evidente no trecho das suas “Meditações” dado a seguir:
“A sociedade é tão irônica, tão impiedosa e vingativa, que eu mesma, quando a defino, tenho medo que caia sobre mim um anátema não menos implacável e amargo que o meu cálice de peçonha. [...]. Ó sociedade, porque te assombras e ofendes, quando o desgraçado te despreza? Como eu te vejo asqueroso, e repugnante, mundo! Os grandes esmagam os pequenos, os poderosos são insolentes quando a desfortuna lhes estende a mão, e o gênio do mal saboreia o pasto que tu lhe ofereces. Que horas estas, meu Deus!”[2]
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NOTAS
[i]Ana Augusta Plácido, “Meditações” in Luz coada por ferros, 2ª edição, Lisboa, Officinas typográphicas e de encadernação, p. 94.
[2]Id. Ibidem, p.119-120.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira
Imagem: foto de Camilo , Ana Plácido e o filho mais velho.

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O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido - PARTE II



Todavia, muito caro seria o tributo que o casal pagaria pela absolvição. O desejo de revanche que obscurecia o espírito dos homens e mulheres de bem do Porto, como naturais vingadores da ultrajada instituição da família, não estava predisposto para a benevolência com a adúltera e seu amante, também rejeitada pela família, evitada por amigos do marido e alvo de agressões físicas e morais nas ruas do Porto. Todavia, enquanto a execração pública recaía sobre Anna Augusta, principalmente, esta escrevia nas páginas do seu diário, quando ainda se encontrava no presídio, o esboço da sua tragédia conjugal e existencial, do qual damos um resumo:


"Completei 29 annos [...]. Nasci boa e generosa; o mundo com todas as suas torpezas não pode tirar-me estas raízes vindas de Deus.[...]. Sacrificada a um homem repellente, que só me inspirava aversão, vi os meus anos mais belos passarem-se tristes e na solidão forçada a que me condenaram. Sete anos resisti ao cancro devorador da sociedade, sete anos me conservei presa de um desejo mesmo de transgredir a lei de Deus que me dava para marido o último dos homens que eu aceitaria de bom grado.
A corrupção ostentava as suas pompas perseguindo-me, mas eu afastava os olhos, e punha-os no caminho que minha santa mãe me marcara.
Ninguém pesa as lágrimas da mulher que depois d’uma grande luta com a consciência cai diante de si própria: ninguém! Para a condenação, estão prontos os algozes e carrascos!
Depois d’isto a desgraça não me deixou mais. Do abismo de infortúnios caí nas agonias da desesperação, e ter-me-ia morto se não fosse esta varonil coragem que nunca me desampara mesmo nos transes mais horríveis.[...]. Esse mundo sem entranhas, essas almas de ferro, se me ouvissem um só destes gritos abafados por uma vontade indomável á matéria frágil, fugiriam temendo comprometer a sua egoísta dignidade. Tenho a convicção de que os meus inimigos haviam e hão-de chorar-me quando souberem a história desta desgraçada que hoje esmagam.[...] "

Esse desabafo de Anna Augusta, essa história de desgraças, também prodigamente presentes nas linhas e entrelinhas das suas cartas e mesmo nas de Camilo para amigos comuns ao casal, nunca veio a lume sob uma perspectiva placidiana, que buscasse oferecer a versão biográfica da autora centralizada nela, também protagonista nos anos de agonia vividos pelo infeliz casal.
Com efeito, foi a libertação de um casamento sem amor e da Cadeia da Relação do Porto que trouxe a Anna Plácido a sua pena de escravidão perpétua junto a Camilo, a quem estava dali por diante irremediavelmente ligados o seu destino e a sua vida. Diante dela abria-se uma dolorosa trajetória de expiação, já anunciada nas crises de mórbido ciúme e descabidas desconfianças de Camilo, nas injustas acusações que lhe lançava em rosto e em cartas a amigos, nas várias separações provocadas pelas condições insuportáveis de vida em comum, inclusive por dificuldades financeiras incontornáveis.
A desvairada jovem que lera Musset e Dumas, que cultuava George Sand e Mme. de Sttäel, a impulsiva mulher, de vinte e seis anos, sedenta de paixão e latejando de sensualidade reprimida, deixou-se arrastar para uma aventura sem beleza, acumulando desencantos na alma ferida, procurando desafiar desdenhosamente os costumes e os limites impostos à mulher pela falsa moral burguesa portuense, seja declarando aos amigos do ex-marido que a censuravam pelo abandono do lar que “Camilo é o meu homem”, seja pulando os muros das casas que separavam a sua da de Camilo para encontrar-se com o amante, ou ainda, desafiadoramente, pondo-se a fumar charuto à janela da cadeia, sob a incrédula perplexidade dos transeuntes.

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O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido - PARTE III


Das dolorosas experiências do cárcere, a autora lança um olhar para os anos da juventude e, como ela mesmo diz: “vê o passado como um sonho!”
"Vejo-me vestida de branco, envolvida no véu da desposada, a grinalda de laranjeira adornando-me a fronte acurvada ao peso destes atavios, e estremecendo horrorizada, como Iphigenia caminhava conduzida por seu pai ao sacrifício. Preferível era por certo o dela ao que me estava destinado![i]
Ana Plácido assistiu ao despertar da escritora que em si havia na solidão do cárcere e na amargura das primeiras desilusões amorosas. Todavia, não foi contemplada com os aplausos dos seus contemporâneos, ao contrário disso, foi alvo de apreciações maliciosas sobre os seus escritos, acusada de fazer passar como seus textos compostos pelo amante famoso. Todavia, a escritora ergue a cabeça, faz ouvidos surdos para a mesquinha crítica demolidora do seu talento e dá continuidade a sua prática literária, dirige palavras às mulheres de sua época, mensagens que, nos dias atuais, seriam consideradas “feministas”, incitando-as libertarem-se do papel exclusivamente doméstico a que eram submetidas, estimula-as a estudar, a conquistar um espaço mais amplo na sociedade por força da inteligência e do saber. Assim ela escreve:
"Hoje, quando os meus verdugos me supõem dias terríveis de desesperança e amargura, eu digo à alma que suba, à inteligência que se ilumine, e de pronto uma chama misteriosas me aclara esta difícil ascensão. No meio do caos que me enluta o pensamento, radia a luz, e como Pitágoras, compondo a sua harmonia das esferas, entrego-me ao idealismo vago e indefinido, e encontro um mito só meu. Venço o primeiro escolho, contrapondo-lhe a rara energia, o varonil esforço da minha ardente imaginação e vontade. Acima da minha cabeça está a luz suprema e infinita que eu fito deslumbrada. Essa luz compadecida convida-me a caminhar, apontando-me para um centro luminoso, cuja vista me torna febril. E esta febre que as mulheres de Portugal apagam no regelo do coração, rebatendo assim o estímulo mais atraente da ambição da glória, a única que eu invejo e aprecio. Fecha-se lhe esse santuário esplêndido, e ei-las aí sem prestígio, sem outro brilho nos fastos contemporâneos, senão o de boas governantes de casa, e boas mães de família. A sua missão mais nobre é por certo esta, nem eu posso contestá-la. Folgo até que me extremem no meio delas. Mas essa essência preciosa absorve todas as faculdades grandiosas da mulher? Não. É preciso que esta inatividade tenha fim, é preciso que nos desliguemos de certas apreensões, procurando no livro e nos estudos dos bons mestres um refrigério para os tristonhos dias da velhice.
Sei que não podemos aspirar a um nome distinto como o de madame Staël, ou George Sand. A estas dotou-as a subtileza do engenho, a grandeza do gênio, a vivacidade sublime que não possuímos desde que a Marquesa de Alorna, e Catharina Balsemão passaram sem herdeiras. Entremos desassombradas nesse trilho em que os mesmos espinhos nos fazem esquecer outras dores.”[ii]
Nos meses de prisão, Anna Plácido compôs obras que fizeram eco no meio literário. Escreveu a série de contos e de ensaios autobiográficos que, depois de publicados na Revista Contemporânea de Portugal e Brazil, nos jornais portuenses O Nacional e o Amigo do Povo, na revista brasileira Futuro e na revista Atheneo, de Coimbra, foram reunidos em um livro com o título de Luz coada por ferros, prefaciado por Júlio César Machado, publicado em 1863, quando a autora completara trinta e dois anos. Mas o reconhecimento dos seus dotes intelectuais não poderia vir fácil numa sociedade que cultivava à exaustão os valores burgueses. Assim, ao estigma de mulher adúltera, um outro foi lançado sobre a escritora: o de ter em Camilo o autor dos seus ensaios críticos, poesias e romances.


NOTAS
[i],Idem, Ibidem, p. 98.
[ii]Ana Augusta Plácido, Op. cit., p. 94 a 96.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira
Imagem: Camilo, Ana Augusta Plácido e o filho mais velho do casal.


CONTINUA...

O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido. -PARTE IV

O DESTINO INEXORÁVEL

Ah! Fortuna cruel! Ah duros Fados!
quão asinha em meu dano vos mudastes!
Camões

Na poesia camoniana, o destino, a fortuna ou o fado são denominações dadas para designar uma mesma força obscura, malévola e caprichosa que governa a vida do homem e à qual este não pode escapar.
Maria Vitalina Leal de Matos considera de suma importância para a compreensão geral da obra camoniana que se tenha uma percepção alargada da dimensão e da importância que o poeta atribui ao Destino, bem como do significado deste em sua obra.
Sob várias denominações – Fortuna, Fado, Ventura, Má Estrela, Sorte –, o poeta culpabiliza o Destino inexorável pelas conjunto de situações adversas que “se conjuraram” para fazer da vida dele uma trajetória de dor, de infelicidade e padecimentos contínuos. Assim, na lírica e no canto épico de Os Lusíadas, Camões desabafa, queixa-se, questiona e tenta compreender incessantemente “a razão de ser daquilo que o espanta. Por que sofrer tanto? Por qual razão os males se acumulam e a Fortuna se encarniça contra o poeta retirando até um malévolo gozo da sua desdita?” [...] Por que é que as coisas são tão contrárias àquilo que deveria ser? [1]Por que “as Estrelas e o Fado sempre fero /com meu perpétuo dano se recreiam?”[2]
Tais questionamentos ficam sem resposta, restando a Camões apenas o espanto perante a sua infelicidade e a certeza de que

“Verdade, Amor, Razão, Merecimento
qualquer alma farão segura e forte.
Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
têm do confuso mundo o regimento”.[3]

A dor de viver camoniana aparece reiteradamente em sua lírica associada às adversidades causadas pelos “tiros / da soberba Fortuna; / soberba, inexorável, importuna”, pela qual é subjugado e arrastado à perdição, ao despojamento de todo o bem, restando-lhe apenas o bálsamo da morte:

Posto me tem Fortuna em tal estado,
e tanto a seus pés me tem rendido!
não tenho que perder já, de perdido;
não tenho que mudar já, de mudado.
Todo o bem pera mim é acabado;
daqui dou o viver já por vivido;
que, aonde o mal é tão conhecido,
também o viver mais será ´scusado.
Se me basta querer, a morte quero,
que bem outra esperança não convém;
e curarei um mal com outro mal.
E, pois do bem tão pouco bem espero,
já que o mal este só remédio tem,
não me culpem em querer remédio tal.

Pouco afeito à poesia de cunho religioso, Camões não segue pelas trilhas de muitos poetas seus contemporâneos que, perante as ciladas da Fortuna e as adversidades da vida, buscam na religião a resposta e o refúgio para as suas dores. Se o sentido da vida como luta extenuante desperta em sua alma um anseio de libertação através da morte, ele não a deseja ou aguarda como promessa de bem-aventurança no Paraíso celeste, onde a utopia católica fincou os seus alicerces.
Para o poeta, a morte afigura-se como libertação da dor de viver, deseja-a porque para “o mal” que o atormenta “este só remédio tem”.
O pessimismo, a postura melancólica, o desengano e a profunda dor de viver, que atravessam grande parte da produção poética camoniana, são traços definidores do maneirismo, no qual se inscreve o poeta.

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Notas.
[1] Maria Vitalina Leal de Matos, “O homem perante o destino na obra de Camões”, in: Ler e escrever- Ensaios. p. 67.
[2] Luís de Camões, Canção IX, est. 5.
[3] Id. Ibidem, v. I, p. 242.
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Zenóbia Collares Moreira. O Maneirismo na Poesia Lírica de Camões. Natal/2007.

O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido. - PARTE V


A produção literária placidiana compreende poesias, romances, novelas e contos, um drama para teatro, meditações, traduções de romances e livros religiosos, ensaios e artigos jornalísticos, escritos em períodos descontínuos, mas das vezes após largos tempos de forçosas interrupções motivadas geralmente por seus graves dramas familiares. Sua obra ficcional, principalmente os romances, foram escritos apenas durante pouco mais de sete anos de intensa atividade. Aos quarenta anos de idade, quando acabara de produzir o que, sem sombra de dúvida constitui o seu melhor romance - Herança de Lágrimas - Anna Augusta abandonou definitivamente a ficção, deixando, além de dois livros publicados, algumas obras – poesias, romances e uma peça para teatro – incompletas e dispersas por jornais da época nos quais colaborou. Os originais completos de tais obras nunca foram encontrados, seja porque perderam-se após o seu falecimento, seja porque os abandonou sem jamais concluí-los, após o fechamento dos periódicos onde os publicava sob a forma de folhetins.
A qualidade do que escreveu, o seu talento como ficcionista, estão testemunhados, principalmente pelo romance Herança de Lágrimas, o último que compôs, antes de abandonar a atividade literária. Este romance inexiste nas bibliotecas públicas portuguesas.
Somente uma mulher dotada de uma forte personalidade e de uma decidida vontade de saber poderia reunir, em meados do ainda preconceituoso século XIX contra a instrução da mulher, o saber literário e o lastro cultural que Anna Augusta Plácido revela em sua obra, através das epígrafes, das citações, das alusões que pontilham cada um dos seus textos, todos testemunhando um considerável domínio de literatura portuguesa e estrangeira, de autores apreciadíssimos na época e reverenciados pelos cultores do Romantismo. 
Já no seu primeiro livro – Luz coada por ferros – publicado em 1863, estão evocados autores como Parny, Madame de Staël, Chateaubriand, Lamartine, Alfred Musset, Vigny, Balzac, George Sand, Xavier de Maistre, Alexandre Dumas, Joseph Méry, Benjamim Constant, Wieland, Felinto Elísio, Silvio Pélico, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Castilho, Mendes Leal, Padre Francisco de Sousa, D. Francisco Manuel de Melo, Cervantes, Tasso, Racine, Shakespeare, entre outros.
Com efeito, o gosto de Anna Augusta pela leitura remonta ao tempo em que ainda vivia com o marido, pois, ao ser encarcerada, já dispunha de uma biblioteca pessoal, coisa invulgar para uma mulher portuguesa do seu tempo, da qual não se distanciava. Como escreve Alberto Pimenta, ao ser levada à prisão no presídio da Relação do Porto, exigiu que fossem transferidos para a sua cela á volta de 500 livros”, e todo o material de que necessitava para dar continuidade às suas atividades de escrita, ou seja: “uma vasta mesa com enorme tinteiro... resmas de papel e de brochuras”.[i] O seu gosto pelo estudo é mencionado por Camilo em carta escrita ao amigo e confidente José Barbosa, quando estavam ele e Anna Augusta presos: “D. Anna vive e estuda”[ii], ou seja, dedica-se ao trabalho literário, exigido por suas colaborações, escritas na cadeia, para os jornais O Atheneu, O Nacional e a Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.
É significativo que Anna Augusta tenha dado início a sua atividade literária justamente após ter abandonado o casamento e a vida estável e confortável que fruía na companhia do riquíssimo marido, quando a sua situação social e financeira se tornava cada vez mais complicada e difícil. É de se indagar como conseguiu reunir ânimo e forças para se concentrar no trabalho intelectual em meio a atmosfera convulsa e sombria que a rodeava.
Em 1861, recém saída do cárcere e em penosa situação financeira, com a finalidade de obter recursos para assegurar a sua sobrevivência, fez projetos de inaugurar um jornal literário – Esperança. Todavia, apesar dos esforços de amigos para obter assinaturas e da intensa propaganda feita pela imprensa, mesmo contando entre os seus colaboradores personalidades de relevo no meio literário do seu tempo, como Vieira de Castro, Júlio César Machado, Alexandre Braga, Arnaldo Gama, Custódio José Vieira e outros, o empreendimento não vingou. Concorreu para o seu fracasso a sistemática e pertinaz campanha difamatória e desmoralizante dos amigos do marido traído de Anna Augusta contra o jornal da “devassa”, como a denominavam insultuosamente. A partir de 1863, sua colaboração em periódicos tem relativa continuidade, aparecendo trabalhos da autora assinados com as letras iniciais do seu nome ou com pseudônimos masculinos em vários deles: O Futuro, do Rio de Janeiro (1862-1863), A Esperança (1865-1866), a Gazeta Literária do Porto (1868), Almanaque da Livraria Internacional (1873).
O perfeito domínio da língua francesa valeu a Anna Augusta uma considerável quantidade de traduções, algumas publicadas anonimamente, outras assinadas por Lopo de Sousa e editadas por editoras do Porto e de Lisboa: Mês de Maria Imaculada Conceição, de Alphonse Gratry (1865). Em 1874, traduz dois livros de Amedée Achard: Como as mulheres se perdem e A Vergonha que mata. Em 1875, aparece Aprender na desgraça alheia, de Benjamim Constant, seguido, em 1876 de Feitiços de mulher feia, de Vítor Cherbuliez A Vida Futura do Oratoriano Louis Lescoeur (1877), Pio X, Sua vida, sua história e seu século, de Jacques Villefranche (1877), O Papa e a Liberdade, do Dominicano Julien Constant,(1879). Em 1873, colaborou com Camilo Castelo Branco na tradução do Dicionário Universal de Educação e Ensino, de E. M. Campagne.
Logo à primeira vista, observa-se que as obras traduzidas por Anna Augusta situam-se em duas áreas de interesse bem distintas: a religiosa e a social. Nesta última reúnem-se obras que estavam destinadas a compor a coleção Biblioteca das Senhoras, criada com o intuito de conscientizar as suas leitoras acerca das limitações a que social e culturalmente estavam subordinadas.
O ano de 1863 assinala a estréia de Anna como escritora, com a publicação do seu livro Luz coada por ferros, o único assinado com o seu nome próprio: Anna Augusta Plácido. Contudo, não se trata ainda de um romance, mas de um livro que congrega alguns contos, uma novela e sete textos com o título de Meditações. O conjunto de narrativas que o constituem revelam a escritora ensimesmada, que se isola na cidadela do seu próprio eu, que lança o seu olhar devassador dos meandros mais dramáticos e dolorosos da sua própria biografia, buscando nos subterrâneos da sua memória a substância com que plasma a sua escrita, altamente intimista.
Luz coada por ferros não é o seu melhor texto. Todavia, tem uma importância capital na medida em que com ele a autora assume a sua personalidade literária e o faz com a ousadia de quem aposta em si, de quem se reconhece como escritora e crê em sua capacidade de afirmar-se como tal na ribalta da cena literária.
Em 1864, Anna Augusta escreve um drama em três atos, intitulado Aurora, publicado em O Civilizador, entre 1º de janeiro e 15 de junho do ano seguinte, data em que o periódico saiu de circulação, interrompendo a publicação no final do segundo ato. Aparece como autor da obra Lopo de Sousa, um dos pseudônimos da autora. Apesar de incompleto, o drama tem interesse, não apenas pela intriga bem urdida como por se tratar de uma obra bem diferente das restantes produzidas pela autora: uma peça para o teatro.
Sorte semelhante teve o romance Regina, também assinado por Lopo de Sousa, publicado na Gazeta Literária do Porto, cuja direção estava ao cargo de Camilo Castelo Branco. O fechamento do periódico interrompeu a publicação da narrativa. 
Em 1871, o jornal O Vimaranense assume a publicação do romance Herança de Lágrimas. Contudo, a reduzida tiragem de apenas “umas dezenas de exemplares” logo se esgotou. Assinado com o pseudônimo Gastão Vidal de Negreiros, este romance assinala o ponto alto da escrita ficcional placidiana.

NOTAS
[i] Alberto Pimenta, Os Amores de Camilo, p. 369.
[ii] Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa, vol. II, carta número 162, de 7.7.1861.
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AUTORA: Zenóbia Collares Moreira. Ensaios.

CONTINUA

O Drama existencial de Ana Augusta Plácido – Última parte.


Em 1875, aos quarenta anos de idade, Anna Plácido desiste de escrever romances. Além da dificuldade de interessar os editores pela publicação dos seus livros, outros fatores influíram na sua decisão de abandonar a literatura de ficção. A vida atropelada por dificuldades decorrentes da loucura do filho Jorge, da falta de recursos e das doenças que fragilizavam Camilo, especialmente a progressiva cegueira, foram responsáveis pela exigüidade da produção literária da autora, bem com por sua desistência de prosseguir escrevendo obras ficcionais. 
O exercício da leitura e a conseqüente aquisição de conhecimentos tornou-se uma prática cotidiana que se prolongou até o final da vida de Camilo, cuja cegueira progressiva exigia, cada vez mais, de Anna Augusta a paciente e sistemática função de leitora para o companheiro impedido de ler. Foram anos de contínua prática de leitura e mesmo de exercício de escrita levada pela necessidade de secretariar o trabalho do escritor. Na fase crucial da cegueira de Camilo, as contínuas e intermináveis seções de leitura levavam Anna Augusta à exaustão, como ela mesma revela ao amigo do casal, Freitas Fortuna: 
“Leio todo o dia, ás vezes chronicas enfadonhas, e chego á noite sem vista, os pulmões cansados e rouca![1]
Além de constituir uma obrigação para com Camilo, a leitura é também um alimento e uma necessária evasão para o seu espírito torturado pelas vicissitudes de uma vida bafejada continuamente pela adversidade. 
Depois de viúva, Anna Plácido volta a publicar, em folhetim, o romance Herança de lágrimas no jornal O Leme,” semanário de São Miguel de Seide – Vila Nova de Famalicão, fundado por seu filho Nuno Castelo Branco. Todavia, essa nova publicação recebeu o título de Núcleo de Agonias, “romance original de Lopo de Sousa. Esta seria a última tentativa de publicar a sua obra. Em 1895, faleceu a autora e, com ela, desaparece da cena literária Lopo de Sousa, cedendo lugar na publicação póstuma do folhetim à Condessa de Sousa Botelho. Contudo, meses depois, o jornal cerrou as suas portas, deixando interrompida, mais uma vez, uma obra de Anna Augusta. Em 1913, um dos filhos de Nuno Castelo Branco, reabre O Leme e retoma a publicação de Núcleos de Agonia. Apesar da boa vontade e esforço do jovem neto da autora, o Jornal foi forçado a sair de circulação por falta de recursos. Daí por diante, Anna Augusta, como escritora, caiu no esquecimento, juntamente com a sua obra literária. No entanto, nunca deixou de estar presente nas obras dos biógrafos de Camilo que exploraram à exaustão a parte da sua vida ligada aos escândalos conjugais, à prisão e ao seu apagado papel de mera companheira do grande nome da literatura romântica portuguesa. A grandeza literária e a personalidade fulgurante, trágica e polêmica de Camilo Castelo Branco lançou à sombra, mais que a mulher extraordinária que foi Anna Plácido, a escritora de talento, a sua inteligência e a sua marcante e invulgar personalidade. 
Movida por uma série de graves problemas domésticos, aos 40 anos, Anna Augusta interrompeu as suas atividades de escritora. As únicas poesias da autora que chegaram aos dias de hoje foram colhidas em Jornais da época ou em antologias do início do século. Não se sabe que destino foi dado ao conjunto da obra. As duas, que se seguem, foram escritas no início da relação amorosa da poetisa com Camilo. Nelas é evidente o compromisso com as duas tendências poéticas da época, muito em gosto principalmente no Porto: o Romantismo e o Ultra-Romantismo. A primeira delas, datada de 1959, desenvolve-se em conformidade ao modelo consagrado pelo cânone romântico, daí a expressão dos sentimentos sem exageros e afetação melodramática; a segunda obedece ao cânone ultra-romântico, na medida em que hiperboliza a expressão dos sentimentos, leva-os ao paroxismo da emoção mais destravada. 

A CAMILLO CASTELLO BRANCO 
( 15 de Agosto de 1859) 

Passou, meu Deus, foi um sonho 
De que é doce o despertar, 
Das negras feias visões, 
Já nem me quero lembrar, 
Tornei a achar o remanso 
Do meu tão doce sonhar... 

Volto quasi à paz serena 
Dos meus dias infantis; 
O meu anjo me segreda 
Mistérios... que não me diz. 
Vejo o futuro coroado 
Pela esperança a que me afiz. 

É muito para a minh´alma; 
Importa da vida o céu; 
Sobre os falsos bens do mundo 
Lançarei cerrado véu. 
Das ambições a mais nobre 
É chamar-te um dia meu. 

MALDITA! 

Maldita! Maldita! Eis a voz que eu escuto 
Nas sombras da noite, se geme o tufão; 
Ao longe lá ouço bramir a tormenta, 
Não menos medonha no meu coração.

Maldita! Maldita! Me bradam os raios. 
Rajando-me a fronte sinistro fulgor. 
E eu pálida e triste qual anjo repulso 
Debalde levanto as mãos ao Senhor! 

Maldita! Maldita! Os ferros me dizem 
Que inertes assistem à minha aflição; 
E a estrela, que passa ligeira se esconde 
Deixando nas trevas bramir o trovão.

Maldita! Maldita! Os echos repetem
Dúm mundo feroz que exulta à vitória;
Maldita tu sejas mulher infamada
Por culpa que é n´outras suprema glória.[2]

Os romances de Anna Augusta Plácido, de evidente valor literário, obedecem aos padrões próprios do Romantismo. Em suas páginas, desfilam personagens que, ao afirmarem-se como de alter-ego da escritora, vivenciam as próprias emoções e os sentimentos da autora, funcionando em muitos casos como porta-voz das suas vicissitudes, das suas culpas e, principalmente, de sua visão do mundo. Daí o espaço autobiográfico que se abre em cada obra placidiana. Já no seu primeiro livro, Luz coada por Ferros, escrito na Cadeia da Relação, do Porto, a sua preocupação com a situação social da mulher irrompe principalmente nas Meditações onde procura chamar a atenção de suas eventuais leitoras para as possibilidades de mudanças em suas vidas. Sua obra é importante, não somente porque se impõe como exemplo paradigmático da ficção no Romantismo português, como também pelo fato de trazer para o leitor, através de um ponto de vista feminino, alguns problemas atinentes à adversa condição existencial da mulher na preconceituosa sociedade oitocentista portuguesa.
Seus romances Luz coada entre ferros e Diana e Henriqueta estão disponíveis na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca do Centro de Estudos Camilianos em Famalicão.
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AUTORA: Zenóbia Collares Moreira


NOTAS
[1] Dois Anos de Agonia, carta número XVII.
[2] Alberto Pimentel. Os Amores de Camilo, Lisboa, 1890, p. 313.