20 de fev. de 2013

Mito do Amor-Paixão (Parte I)



O Mito do Amor-Paixão tem a sua gênese no drama amoroso vivido por TRISTÃO e ISOLDA em época remotíssima e, relatado na lenda celta, que faz parte da tradição mítico-simbólica da Irlanda e da Escócia. Segundo a lenda celta, Isolda a Loura e seu tio Morholt são da raça dos reis da Irlanda. Tristão é filho de Rivalin, senhor de Loonois.. Na Cornualha, na região de Tintagel, às portas da fortaleza de Lancïen, no lendário castelo de Marke, encontramos o pilar funerário de um certo Tristão, “filho de Quonomorius:”
Esta lenda é celta, proveniente de um período dos “começos” na antiga Irlanda. Sobrevivem nas versões francesas e estrangeiras dos séculos XII e XIII vestígios evidentes da sociedade celta, nitidamente anteriores a essa época medieval, e no conjunto sobressaem a magia, a astrologia e o encantamento, tão comuns aos mitos e epopéias irlandeses. A rainha Isolda e Isolda a Loura, sua filha, são fadas que curam feridas envenenadas e que conhecem os segredos das ervas, folhas e flores das terras da Irlanda. O anão Frocin lê as estrelas e prediz a sorte por meio dos astros. Tristão é o herói do gigante Morholt e do dragão, mas é também o senhor dos “encantamentos” quando canta acompanhado da harpa ou quando constrói o “arco que não falha”.
Esta lenda é celta, mas é também universal. Os séculos XII e XIII nos legaram várias versões – francesas, alemãs, norueguesa -, que nos chegaram completas ou mutiladas.
A partir da segunda metade do século XIII, as grandes cenas da história dos amantes da Cornualha foram fixadas em tapeçarias, afrescos, objetos , constituindo uma rica iconografia. Todos estes testemunhos nos mostram não só uma imensa difusão, mas também o grande fascínio que a lenda exercia sobre o público daquela época. Não bastasse toda a produção literária medieval, a lenda atravessa os séculos encantando a quantos a conhecem.

Setters ASPECTOS DO MITO:
1-O Mito tem origem obscura: não tem autor. É, portanto, diferente da obra literária, cuja autoria é conhecida;
2- O mito dá conta de normas de conduta estabelecidas por um grupo religioso ou social, está, pois, preso a uma determinada época;
3-O mito se afirma como tal quando exerce poder sobre as pessoas.- e esta é a sua característica mais importante. Por estar o homem no sentido latente do mito, esta sua capacidade de penetrar a vivência humana, é que permite que este seja tantas vezes recriado e jamais perca a sua força..
Em seu sentido simbólico, o mito pode perdurar por vários séculos, exercendo sua influência sobre a humanidade.

CONTINUA

O Mito de Tristão e Isolda (Parte II)


(Adaptação feita a partir de várias versões da lenda)

Marke, rei da Cornualha, estava em guerra com o rei da Escócia. Muitos heróis vieram em sua ajuda. Entre esses heróis, um rei de nome Rivalin, do país de Lohonois, também correu a Tintagel. Rivalin serviu a Marke como se fosse um vassalo, porque desejava tomar por esposa a irmã de Marke, Blanchefleur.
Blanchefleur se prendeu de tal forma a Rivalin que engravidou e, quando a guerra terminou, fugiu com ele. Em plena mar, com muitas dores, morreu. Retiraram então a criança de seu ventre. Em meio a grande angústia e desespero, Rivalin levou o bebê para seu país e deu-lhe o nome de Tristão, o que nasceu na tristeza.
Por sete anos, Rivalin confiou a criança à guarda de Kurneval, que lhe ensinou as regras da cortesia, a tocar harpa e a cantar, e tudo que deveria ser ensinado a um jovem para ser herói.
Quando Tristão completou sua educação, Kurneval pediu permissão ao rei para levá-lo a conhecer outros países. Tristão e Kurneval partiram e chegaram à Cornualha. Ninguém os conhecia e Kurneval disse-lhe para não revelar sua identidade. Eles chegaram ao castelo de Marke com a música da harpa e pediu ao rei que o aceitasse para servi-lo. Marke confiou-o a seu melhor homem, Dinas de Dinan, e a partir daí o jovem Tristão não cessou de adquirir renome.
Nessa época, havia, na Irlanda, um gigante de nome Morholt, cujo tamanho e força eram surpreendentes. Era o irmão da rainha Isolda da Irlanda. Morholt, pela força, havia submetido vários reinos a pagar tributo, e nenhum desses reinos possuía um herói à altura para defender os interesses do rei. Marke também devia tributo, só que não o pagava fazia quinze anos.
Morholt estava aborrecido com a atitude de Marke e decidiu atacar a Cornualha. Entretanto, ofereceu a possibilidade a Marke de encontrar um nobre que quisesse enfrentá-lo num duelo singular. Caso o cavaleiro vencesse, ele partiria para seu país, e a Cornualha ficaria livre do tributo; caso contrário, o tributo a ser pago seria uma de cada três crianças nascidas no país. Os rapazes seriam seus servos e as moças trabalhariam nos seus bordéis. Marke ficou desolado. Como evitar a desonra? Convocou todos os nobres do país. Tristão avisou a Kurneval que, se nenhum nobre aceitasse o duelo, ele o aceitaria. Kurnerval tentou dissuadi-lo, mas foi em vão. Então disse a Tristão que pedisse a Marke que o sagrasse cavaleiro. Marke achou muito cedo, mas Tristão convenceu-o de que, o quanto antes fosse sagrado, melhor seria para o reino. Assim foi feito.
Uma assembléia com os nobres foi feita e Marke explicou-lhes a situação em que o reino se encontrava. Nenhum nobre se sentia capaz de combater. Tristão então se ofereceu. Eles se sentiram aliviados com a oferta, mas ao mesmo tempo preocupados de indicar um cavaleiro tão jovem para um combate tão perigoso e de tamanha responsabilidade para o reino.
Os barões fizeram Marke prometer que quem quer que fosse que se apresentasse para o duelo seria aceito. Marke prometeu, mas havia um problema: Morholt só se bateria se o adversário fosse de linhagem real. Tristão então revelou sua identidade. Marke, ao saber que ele era seu sobrinho, se encheu de alegria e ao mesmo tempo de tristeza pela terrível prova a que ele ia se submeter. Marke tentou dissuadi-lo, mas foi inútil. Pelas mãos do rei, Tristão foi armado para o combate que aconteceria numa ilha.
Morholt se espantou com a coragem do jovem herói e lhe perguntou se ele não preferia partir para a Irlanda. Prometeu-lhe riqueza e renome. Tristão recusou e foi a contragosto que Morholt aceitou o duelo, lamentando a sorte de tão valoroso cavaleiro. Mas Tristão desafiou-o e ele, enraivecido, atacou. Lutaram durante muito tempo. Tristão foi ferido por uma lança envenenada; e Morholt foi atingido pela espada de Tristão com tal força que um fragmento que se desprendeu da lâmina se fixou na ferida.
Os companheiros de Morholt, vendo-o mortalmente ferido, mandaram avisar a jovem princesa Isolda da Irlanda ( ou Isolda A Loura) que, se ela desejava ver o tio ainda com vida, viesse ao encontro deles. Ela sabia curar as feridas e correu para encontrá-los. Tarde demais. Quando ela chegou, o tio já estava morto. Ela descobriu o fragmento da espada de Tristão e o guardou. O povo todo chorou e lamentou a morte do gigante, jurando que qualquer um que viesse da Cornualha perderia a vida na Irlanda. Todos conheciam o nome do vencedor de Morholt, era Tristão da Cornualha. Entretanto, Tristão estava mortalmente ferido. Nenhum médico conseguia curá-lo da ferida deixada pela lança envenenada Ele não comia nem bebia e a ferida por fim começou a necrosar e a tal ponto cheirava mal que ninguém conseguia se aproximar dele. Todos choravam a sorte do herói. Kurneval cuidava dele, mas o herói não se sentia bem. Finalmente, pediu a Kurneval que o colocasse num pequeno esquife e o deixasse no mar para que pudesse morrer sozinho. Disse a Kurneval que o aguardasse por um ano, que se ele sobrevivesse, voltaria. Foi com grande tristeza que o levaram para o mar tendo como único consolo sua harpa e uma espada. O vento dirigiu o barco para as costas da Irlanda. O barco foi jogado na areia diante do castelo do rei. Quando Tristão viu onde se encontrava, percebeu logo que corria perigo. O rei foi informado de que havia um homem ferido na areia. Ele mesmo foi ver o ferido. Tristão disse chamar-se Pro, que viera da Grã-Bretanha e fora ferido no mar por bandidos que o tinham roubado. Apresentou-se como um cantador e tocador de harpa. O rei mandou pedir à filha Isolda que lhe aplicasse emplastros e ungüentos. Isolda percebeu que a ferida estava envenenada; então preparou o ungüento próprio para o mal. Graças a ela, Tristão ficou curado.
Nesta época o reino da Irlanda estava em perigo devido à falta de víveres. Tristão aconselhou o rei e se ofereceu para negociar para ele na Inglaterra. A missão foi um sucesso e Tristão, depois de trazer alegria à Irlanda, voltou para a Cornualha.
Quando Marke e a corte souberam de sua chegada, choraram de alegria e correram ao seu encontro. Tristão foi recebido com toda a honra e tratado como valoroso cavaleiro.
Marke tinha tanta afeição pelo sobrinho que decidiu não se casar e torná-lo seu herdeiro. Mas isso desagradou aos barões, seus parentes. E Tristão se tornou motivo de raiva e inveja por parte dos barões, que prometeram guerra ao reino de Marke caso ele não escolhesse esposa. Marke pediu um prazo para pensar e, enquanto isso, tentou imaginar o que fazer para convencer os barões de que não queria esposa. Um dia, enquanto estava pensando, entraram no quarto duas andorinhas trazendo no bico um longo fio de cabelo louro. Marke então resolveu dizer aos barões que só se casaria com a mulher a quem pertencesse o fio de cabelo trazido pelas andorinhas. Os barões ficaram furiosos, porque o rei não sabia de quem era o cabelo. Eles culparam Tristão pela decisão de Marke. Tristão resolve partir à procura da dama a quem pertencia aquele fio da cabelo e trazê-la para esposar Marke. Na viagem os ventos empurram o barco para a Irlanda. Lá chegando, soube que o reino estava sendo devastado por um dragão, e aquele que conseguisse matá-lo ganharia a mão da princesa Isolda, A Loura, ou Isolda da Irlanda.
Na manhã seguinte, Tristão resolveu matar o dragão. Lutou com ele, queimou-se muito, mas mesmo assim conseguiu matá-lo. Com isto ganhou a princesa Isolda para esposa. Quando a conheceu, percebeu que ela era a dama que procurava para casar-se com o rei Marke da Cornualha. Revelou então este fato ao rei, pai de Isolda A Loura dizendo-lhe que a recebia para o rei Marke e a levaria para o seu reino para que as bodas se realizassem. Na hora da partida, a mãe de Isolda entregou a Brangene um filtro ( vinho de ervas) que deveria ser dado aos noivos ( Marke e Isolda) na noite das núpcias Esse filtro foi feito para unir o casal durante quatro anos, e o amor que nascesse faria com que eles não pudessem se separar.
Tristão e Isolda, partem numa embarcação rumo à Cornualha, acompanhados de Kunerval e Brangene. Durante a viagem, uma serva , por engano, serviu o vinho de ervas contendo o filtro a Tristão e Isolda. Instantaneamente eles se apaixonaram. O desejo reprimido e a angústia por ignorare sobre os sentimentos do outro deixou-os doentes, sem conseguirem dormir e comer. Culpados pelo que sentiam e desconhecendo o efeito recíproco do filtro, isolaram-se em seus quartos, definhando a cada dia. Brangene e Kunerval, preocupados, não sabiam o que estava acontecendo. Ao descobrir o que acontecera com o filtro, resolveram unir o par apaixonado para que não morressem.
Para que Marke não percebesse o que se passara, na noite de núpcias Brangene se deitou com Marke no quarto às escuras, conforme pedira Kunerval, alegando ser este um costume na Irlanda. Ã meia-noite, Brangene deixou o leito do marido e Isolda ocupou o seu lugar, dando início, assim, a vida de mentiras que viveria com o marido.
Tristão e Isolda dão continuidade ao seu romance. Marke descobre a traição dos dois e condena-os à morte na fogueira. Tristão é o primeiro a ser levado para o sacrifício, todavia consegue escapar dos guardas e foge para a floresta onde Kunerval o espera com os cavalos
Marke providencia então o sacrifício de Isolda na fogueira. No momento em que esta está para ser queimada, aparece um grupo de cem leprosos chefiados por Yvain. Este pede a Marke que não a mate, que dê-lhe morte mais lenta e sofrida. Marke indaga que tipo de morte seria esta e tem de Yvain a espantosa resposta: dê-ma para que sirva de mulher para todos nós e ela logo morrerá, pois. não há mulher que suporte, sem morrer, deitar-se com tantos homens ávidos por fazer amor. Isolda é entregue aos leprosos, que levam-na pelo caminho, sem saberem que a estavam conduzindo às proximidades de onde estava escondido Tristão na floresta. Tristão escuta os gritos de Isolda e vai em seu socorro, conseguindo libertá-la dos leprosos. Juntamente com Kunerval, os dois passam a viver na floresta em meio aos maiores sacrifícios, pobreza e medo de serem encontrados. Depois de três anos são descobertos por Marke enquanto dormiam, casualmente vestidos, com a espada nua entre os dois. O rei fica surpreso com o que vê e interpreta a atitude do casal como de indiferença, pensa que não se amam e que vivem como amigos. Decidindo perdoá-los, retira-se deixando uma prova de que ali estivera e de que estão perdoados.
Achando que já sacrificara demais Isolda e o amigo Kunerval, ao arrastá-los para aquela vida, Tristão decide que devem retornar ao castelo e pedir a Marke que receba de volta Isolda. Esta é aconselhada a mentir, dizendo que nunca fora amante de Tristão. Este prometeria exilar-se na Bretanha. Marke recebe a mulher e proíbe que esta seja incomodada. Todavia, os barões da corte, não acreditando em Isolda, exigem que esta vá a julgamento divino, perante as relíquias sagradas, para que prove que é inocente da acusação de trair o marido com Tristão. Ela aceita tal prova, mas exige que os cavaleiros de Arthur estejam presentes com as santas relíquias e presidam o julgamento público..Isolda, imediatamente, manda um mensageiro avisar a Tristão de que ela terá que se submeter ao julgamento e pede-lhe que esteja no local, no dia e hora marcados, completamente irreconhecível, apresentando os vestígios e os trajes que caracterizam os leprosos. No dia do julgamento, chove muito e o lugar está todo enlameado. Marke, Artur e seus cavaleiros passam e não se sujam na lama. O mesmo não acontece com os barões, que atolam na lama, chafurdando até os cabelos no lamaçal. enquanto Tristão e as pessoas se divertem com a cena . Isolda pede então a um leproso que encontra à beira do charco ( e que era Tristão disfarçado) que lhe sirva de montaria para transportá-la para o outro lado. Este curva o dorso e Isolda se escarrancha em suas costas para a travessia.
Arthur preside a cerimônia e pede a Isolda que, diante das santas relíquias, jure que jamais teve por Tristão um amor culpado ou vil.
“Senhores, declara Isolda, Deus é testemunha! Escutem o meu juramento: Por Deus e por estas relíquias, juro que entre as minhas coxas só estiveram o leproso que me trouxe sobre o dorso e me ajudou a atravessar o lamaçal, e o rei Marke, meu marido. Eu tive o leproso entre as minhas coxas. Se alguém deseja qualquer outra prova, eu estou pronta a aceitar aqui e agora. Todos se espantam com a segurança de Isolda e acusam os barões de injúria grave. Artur dá a sua palavra a Isolda de que ela não será mais molestada com novas acusações.
Tristão parte para a Bretanha, como se propusera. Longe de Isolda se atormenta com ciúmes, por julgar-se esquecido. Começa então a duvidar do amor de Isolda, a questionar-se diante da possibilidade de ela, mesmo sem amar Marke, estar satisfeita e sentir prazer ao lado dele, enquanto ele, Tristão, se condena à solidão. Essas dúvidas e incertezas levam-no aos extremos, com a paixão intensa e a fúria incontida contra a amada. Resolve então se comportar como Isolda. Para tal fim a única saída é o casamento. Acredita que, assim como Marke ajudou-a a se libertar da paixão, ele poderá conseguir a mesma coisa casando-se. Pede Isolda da Bretanha em casamento e casa-se em meio a uma grande festa.
Todavia, quando se prepara para a noite de núpcias, o anel de jade verde que Isolda A Loura lhe dera cai no assoalho e a lembrança dela o desatina. Compreende que querendo ferir a amada ,quem mais saiu ferido foi ele próprio. Toma então a decisão de não consumar o seu casamento. Como desculpa para esta atitude, inventa uma doença grave que o impedia de fazer amor.
Isolda A Loura fica sabendo do casamento de Tristão e se consome de dor e desespero. Tristão ao tomar conhecimento do estado em que ficara a amada, torna-se sombrio e sabe que não será feliz enquanto não for ver e abraçar a sua amada. Parte para a Cornualha e, disfarçado, penetra no castelo onde tem um encontro com Isolda.
De volta à Bretanha, Tristão participa de um torneio de cavaleiros onde é ferido por uma lança envenenada. Os médicos não conseguem curá-lo. O veneno espalha-se por todo o corpo. Tristão perde as forças e definha. Pede então para que chamem Isolda a Loura para vir tratá-lo e curá-lo. Kunerval parte em busca de Isolda. Chegando à Cornualha, conta a Isolda que Tristão está mortalmente ferido e que somente ela poderá curá-lo e salvá-lo. Isolda parte secretamente à noite. No meio da viagem uma tempestade ameaça afundar o barco em que viaja. Isolda se lamenta desesperada., julgando que vai naufragar e morrer sem acudir o amado:
“Infeliz! Deus não quer que eu viva para rever meu amado Tristão. Estou dilacerada, prostrada, desesperada, meu amado, de te privar, morrendo, de todo socorro contra a morte. Eu não sei se o meu temor tem fundamento, mas se eu o vir sem vida, não poderei sobreviver. Em meu imenso desespero, só sei que o amo mais que tudo. Deus nos permita de nos encontrarmos, a fim de que eu possa salvá-lo, ou então que morramos juntos, numa mesma agonia.”
Enquanto isto, Isolda da Bretanha, a esposa despeitada devido ao amor de Tristão por Isolda A Loura decide vingar-se, tirando de Tristão a esperança de ser curado pela amada Isolda A Loura. Mente então para o marido ansioso pela chegada de Isolda, que esta recusara-se a vir para encontrá-lo e curá-lo.
Tristão ao saber desta triste notícia foi invadido por uma dilacerante dor, a pior que poderia sentir. Ele se volta para a parede e diz:
 “Deus nos salve. Porque você se recusou a vir, eu vou morrer por tê-la amado tanto. Eu não posso mais reter minha vida. Por tua causa, eu morro, Isolda, minha bem-amada.” Por três vezes, ele murmura: ”Isolda, minha bem-amada”; e, antes de repetir novamente, entrega a alma.
A aflição e o desespero tomam conta da cidade. O vento se eleva sobre o mar e o barco se move em direção à terra. Isolda desembarca, escuta os gemidos, os sinos das igrejas. Pergunta o que aconteceu e um velho responde:“Minha dama, Deus tenha piedade de nós! Nós sofremos o pior luto de todos os tempos. Tristão, o bravo, o generoso, está morto. Ele era o reconforto de todo o reino”.
Quando Isolda escuta o que diz o ancião, não consegue pronunciar palavra alguma. Corre pelas ruas na direção do palácio. Chega perto do corpo de Tristão e diz:
 “Tristão, meu amado, quando eu o vejo sem vida, torna-se inconcebível que eu sobreviva. Você morreu pelo meu amor, é justo que eu também morra de ternura por você. Porque eu não pude chegar a tempo, nem te curar do teu mal, bem-amado, de tua morte, nada poderá me consolar, nem felicidade nem festa, nem prazer. Maldita seja a tempestade que me reteve no mar impedindo-me de chegar a tempo! Eu teria te devolvido a vida e você teria falado, ternamente, do amor que nos uniu.(...) e eu teria lembrado tudo em meio a abraços e beijos. Se eu não pude te curar que nos seja permitido morrer juntos.”
Ela o abraça, deita-se a seu lado, beija-lhe os lábios e o rosto, aperta-o fortemente, corpo contra corpo, lábios contra lábios, e é assim que entrega sua alma. Ela se deita a seu lado vítima de seu luto mortal. Tristão morreu por causa da sua ausência; Isolda, agora, morre por ter chegado muito tarde. Tristão morreu pelo amor de Isolda; Isolda morreu por sua paixão por Tristão Marke transportou os corpos dos amantes para a Cornualha e, os colocou, os dois, em túmulos juntos um do outro.. Dizem, como um fato autêntico, que o rei mandou plantar uma roseira sobre o túmulo da mulher e, sobre o túmulo de Tristão, uma cepa de vinha, do mesmo tamanho. Elas entrecruzaram os galhos de tal maneira que jamais foi possível separá-las, por mais que tentassem cortar os seus ramos..

CONTINUA...

Os planos e a permanência do mito (ParteIII)



Vamos procurar relacionar os diversos planos do mito procurando um paralelismo com os dois grandes temas. Em todos os planos nota-se uma tentativa de fugir às regras pré-estabelecidas, ganhando o tema amoroso maior evidência.

Plano sociológico – o casamento feito nos moldes feudais é levado ao ridículo ( tanto o do velho Marke, quanto o de Isolda, a de Brancas Mãos). Mas, por outro lado, há uma punição: Tristão e Isolda que se afastaram demasiadamente da sociedade, não dando a sua contribuição ao grupo, são levados à morte. Embora lutando contra os casamentos feitos nos moldes feudais, o mito não poderia abençoar, literalmente, o adultério.
Plano religioso – o mito está preso à heresia pelo uso de símbolos ( a espada da castidade, o filtro do amor, o julgamento divino, a virgindade de Isolda, a das Brancas Mãos) e pelo final que vai levar a uma purificação, pela posição excepcional dos amantes como seres privilegiados, pelo amor eterno simbolizado pelos dois arbustos que se entrelaçam por cima das sepulturas.
É com referência aos planos religioso e sociológico que o mito atinge sua dimensão máxima: relação entre “homem – grupo social – amor”. O final é bivalente, tanto no plano sociológico quanto no religioso. Há uma punição nos dois planos através da morte.Entretanto, por trás do sentido literal dessa morte, devemos buscar um segundo sentido. À primeira vista, parece que o mundo criado por Tristão e Isolda é bem menor que o mundo feudal; contudo, se dermos abertura no sentido cósmico dessa fuga, veremos que o mundo deles é muito maior, pois com seu amor eles conseguiram ultrapassar até os limites impostos pela morte. E no plano religioso, através da morte, os dois amantes alcançam a Luz, o Amor.
È a partir da interpretação simbólica que o mito terá sua força. E para mostrar que ele tem um valor universal e para confirmar a opinião de Lévi-Strauss de que os mitos são transformações de outros mitos, relacionamos Tristão e Isolda com outras narrativas e com outros mitos:
1-como Moisés, que tem seu nascimento marcado, Tristão perde o pai antes de nascer e a mãe logo ao nascer;
2- como Teseu, que devia matar o Minotauro devorador de virgens, Teseu mata Morholt para libertar a Cornualha de um tributo de 500 virgens de 15 anos;
3- como Ulisses ao voltar de Tróia, Tristão é também um homem solitário que parte em uma embarcação, levando somente a sua harpa e sua espada;
4- como Èdipo, que imolou a Esfinge que tirava a vida dos homens de Tebas, Tristão mata o dragão que devorava uma virgem por dia;
5- como na Chanson de Roland, na Demanda do Santo Graal e no Cantar de Mio Cid , Tristão também tem uma espada que é somente sua – individualização das espadas;
O item 2 e 4 referem-se a um dos temas centrais da literatura cavalheiresca e prendem-se a rituais de iniciação célticos: os celtas, no momento da puberdade, deviam realizar uma façanha para adquirir o direito de se casarem. É este o tema essencial da poesia de amor cavalheiresco: o jovem herói libertando a virgem. O motivo sexual está sempre subjacente, mesmo quando o agressor é um simples dragão. .Este tema é inesgotável, está presente nas narrativas até os dias atuais.

No tema amoroso temos:

 1- Punição da mulher adúltera, motivo abordado desde as narrativas bíblicas: Isolda deve ser entregue a um bando de leprosos;
 2- O homem não é livre, pois seu destino é determinado por forças ocultas: através do filtro, Tristão e Isolda iniciam um destino alheio à vontade deles;
3 - Desejo de morte, persistente na civilização céltica, pois ela trará uma purificação;, sendo também característica dos místicos árabes que reverenciavam o amor platônico e morriam de amor;
 4- Assim como Lançalot, n’A Demanda do Santo Graal, não podia achar o vaso sagrado porque não era puro, assim também Tristão e Isolda deviam morrer porque pecaram contra a castidade;
5- Assim como Adão e Eva, no Paraíso, estavam próximos à natureza, Tristão e Isolda do mesmo modo vivem três anos na floresta, na pobreza, mas felizes.
O mito tem, pois, um valor universal porque se todas as culturas desenvolvem discursos muito particulares e notavelmente homólogos entre si, que são os mitos, há fundamento para se reconhecer nisso os frutos de um mesmo espírito humano.


A PERMANÊNCIA DO MITO

Todas as características do mito que foram vistas até agora fornecerão as regras do amor cortês que serão exploradas nas cantigas de amor da Idade Média. Elas permanecerão, com algumas modificações, de acordo com o contexto sócio-cultural das épocas em que o mito será retomado, nos séculos XVI, VII, XIX e XX. E essa recriação será possível porque o homem ocidental está sempre revivendo a história de Tristão e Isolda, pois se acha no sentido latente dela.

CONTINUA

Tristão e Isolda e o Mito do Amor-Paixão (Parte IV)


-A história de Tristão e Isolda tem todas as características do mito, seja no plano religioso, seja no plano sociológico:
-Não tem autor definido;( há 5 versões diferentes da história ou lenda)
-Traduz as normas de conduta de um grupo social, na medida em que o desenrolar da ação depende da realização de uma série de regras da cavalaria medieval; bem como de convenções sociais
-Traduz as normas de conduta de um grupo religioso: está preso à heresia dos cátaros, pois Tristão e Isolda foram seres escolhidos e porque pecaram contra um dos preceitos da heresia – a castidade-. Desta forma, no plano religioso, deviam morrer para purificarem-se e alcançarem a luz.
Como adverte Lévi Strauss, “um mito é ao mesmo tempo uma história contada e um esquema lógico que o homem cria para resolver problemas que se apresentam sob planos diferentes, integrando-os numa construção sistemática.”. Diz ainda este autor, reportando-se à história de Tristão e Isolda, que quando um homem e uma mulher recusam o casamento, assemelham-se ao céu e à terra, sempre afastados, porém quando vivem numa eterna lua-de-mel, como Tristão e Isolda, correm o risco de se consumir, sem dar contribuição à sociedade, pondo em risco o equilíbrio do grupo.
 Desta forma, no plano sociológico, Tristão e Isolda deviam morrer porque representavam um perigo.” (4)
Como se vê, o Mito medieval do amor-paixão se manifesta em dois planos: religioso e/ou sociológico


O MITO de TRISTÃO E ISOLDA NA SOCIEDADE HIERÁTICA DO SÉCULO XII.

O mito de Tristão e Isolda, em seu sentido existencial, remete-nos ao século XII – século em que se verifica a primeira crise do matrimônio do mundo ocidental- e nos traz de volta ao século XX, quando se verifica a grande crise do matrimônio. O homem do século XX está, pois, no sentido latente do mito que conseguiu sobreviver até hoje através de várias recriaçõees.
Como esclarece Elizabete Carpinteiro, “o amor cortês nasceu de uma reação a certos costumes feudais. No século XII, os casamentos eram feitos na base dos interesses econômicos, isto é, visando enriquecer os feudos. Contra isso se insurgiram os adeptos de um novo ideal: o ideal cortês que preconizava uma fidelidade independente do casamento legal e fundamentada somente no amor. Assim, se Isolda se casou com Marke, o fez sem amor e por isso o adultério que cometeu com Tristão é perdoável porque exalta o amor cortês. O mito não perde a oportunidade de humilhar o velho marido de Isolda - Marke – e a esposa de Tristão – Isolda a de Mãos Brancas ou Isolda da Bretanha- que permaneceu virgem depois do casamento.
Mas, opondo-se aos casamentos feitos nos moldes feudais, a fidelidade cortês opõe-se também à satisfação completa do amor. Tentando explicar essa idéia de castidade, Denis de Rougemont fez um estudo pormenorizado da heresia dos cátaros à qual, segundo ele, estaria ligada a poesia dos trovadores.
 Os cátaros ( do grego: puro) pregavam a castidade. Sua heresia era baseada no princípio maniqueísta de oposição entre o BEM e o MAL, entre LUZ e TREVAS.
Tanto o mito de Tristão e Isolda como as Cantigas de Amor medievais ligar-se-iam, em suas origens, à HERESIA dos Cátaros, pois desenvolveram-se no mesmo espaço ( Sul da França) e no mesmo período ( Século XII).
A heresia, nos seus inícios, pregava a busca do Amor, da Luz, através da absoluta castidade, mas essa idéia foi-se perdendo e, quando o mito nasceu, já foi sob a influência de um outro sentido ou seja: a busca do amor à mulher – ideal do amor cortês – profanado, mas ainda conservando a idéia de castidade Porém, a luta contra o regime feudal estava implícita nos dois sentidos.
Essa heresia desenvolveu-se na Provença e foi produto de um novo ambiente. É válido, pois, buscar as origens do mito, relacionando-o também a fatores sociais, políticos e econômicos de toda Plena Idade Média.
Na verdade, o mito foi uma manifestação dos anseios do homem medieval do século XII. Neste século, dá-se o apogeu do sistema feudal os castelos fortificam-se, as igrejas são fortalezas de Deus, Paralelamente ao luxo crescente da nobreza, que se torna uma classe fechada, criando seu próprio código de honra e regras de etiqueta, o luxo que tem lugar nos mosteiros faz a Igreja cair em descrédito; reduz-se o sentido do cristianismo. Aparecem as HERESIAS ( especialmente a heresia dos cátaros), desenvolve-se o ideal cortês, exalta-se o heroísmo e surge o mito do amor-paixão

CONTINUA

17 de fev. de 2013

O Mito do Amor-Paixão na Literatura do século XII. (Parte V)


O mito do amor-paixão não aparece apenas na literatura portuguesa. A prova de sua força latente na literatura ocidental é o seu aparecimento em literaturas de outros países europeus e mesmo no Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, temos, no século XVI, a mais perfeita recriação do mito com a história de Romeu e Julieta, de Shakespeare, o mesmo ocorrendo em outros países, no transcurso dos séculos, como veremos mais adiante.
Na literatura Portuguesa encontramos, já no século XVI, a infeliz história de Inês de Castro, ocorrida no século XIV. O relato do trágico destino de Inês aparece na crônica de Fernão Lopes e, daí, penetra a literatura portuguesa, primeiramente com Garcia de Resende ( Trovas à morte de D. Inês). Depois, no século XVI, a história é retomada por António Ferreira ( Castro – tragédia em versos ) e por Camões, com o episódio de Inês de Castro em Os Lusíadas, apenas para citar os mais importantes. Do século XVI ao XVIII e deste até o século XX, as versões do drama de Inês se sucederam. Ao todo, foram escrita, em língua portuguesa, até os dias atuais, 204 composições sobre o drama amoroso de Inês de Castro e Pedro revivendo as lendas em torno de sua morte, consolidando a força do mito que a envolve
O mito do amor-paixão, nascido no século XII, supõe sempre, entre os amantes, um obstáculo, que pode ser social, religioso, ou político. O amor-paixão persegue uma impossibilidade e acaba por transformar-se numa determinação que justifica a própria existência. Todos os grandes amantes são atraídos para o abismo da experiência-limite, pensam possuir e serem possuídos através do máximo sofrimento e tentam satisfazer a necessidade humana de perenidade, compreender o ciclo da vida e reverter a morte. A paixão, portanto, na medida que pretende o impossível transgride o permitido e é sempre anti-social, embora se ligue à comunidade que lhe fornece o motivo ou pretexto de sua existência.
Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Pedro e Inês, querem muito mais que a satisfação de seus desejos. Eles querem o impossível: alcançar o infinito pela posse de um ser finito. Por isso o amor-paixão sempre conduz à morte.

12 de fev. de 2013

O mito do amor-paixão e a história de Inês de Castro e Pedro I (Parte VI)


Procuraremos mostrar que toda a literatura em torno da história de Inês de Castro está presa, no plano existencial, ao mito do amor-paixão, isto é, à historia de Tristão e Isolda.
O desejo do homem ocidental é criar um mundo racionalista, programado, sem conflito, onde cada coisa e cada ser tenha uma função. Toda vez que o homem e a mulher tendem a se afastar desse mundo racionalizado e criar o seu próprio, mais espiritual, é porque está havendo uma crise. O mito é, então, retomado. Mas tal afastamento é punido porque coloca, no plano sociológico, a organização em perigo. E na retomada do mito o final conduzirá sempre à morte
No contexto português, História e Literatura estão interligadas. Prova maior são as Crônicas de Fernão Lopes, responsável, através de seu estilo literário, por páginas que não apenas contam fatos, mas mostram o poder de criação de sua linguagem
É em Fernão Lopes, na Crônica de D. Pedro I, que vamos buscar uma possível semente para o mito de Inês de Castro. A Crônica se inicia com o reinado de D. Pedro, estando Inês, portanto, já morta
A morte de Inês aparece na Crônica penetrada de um julgamento feito quase cem anos após o fato. E todos são responsabilizados. Ao isentar Diego Lopes da culpa, transfere-a ao Infante ampliando a escalada em direção à glorificação que se segue. O amor, entretanto, apesar das condenações implícitas ou explícitas ao rei D. Pedro, é fortemente plantado.
“...semelhante amor, qual el-Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos foram já que tanto e mais que el amarom, assi como Adriana a Dido, e outras que nom nomeamos, segumdo se lee em suas epistolas, respomdesse que nom fallamos em amores compostos, os quaes alguuns autores abastados de eloquemcia, e floreçentes em bem ditar, hordenarom segundo lhes aprougue, dizendo em nome de taaes pessoas, razoões que numca nenhuuma dellas cuidou; mas fallamos daquelles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fumdamento teem sobre verdade. Este verdadeiro amor ouve el Rei Dom Pedro a Dona Enes como se della namorou...” ( Ob. cit., cap. XLIV, p. 199 )
De acordo com Roland Barthes, estas obras não poderiam ser aceitas se não houvesse uma motivação que revelasse não tratar-se de pura lenda. E esta motivação existia: mostrar que na história de Portugal houve um casal cujo amor foi tão grande quanto o do casal mítico, conforme Fernão Lopes o fez.
Dessa forma já se pode apresentar um quadro com as sementes primeiras para a criação de alguma coisa ainda não bem delimitada, mas que já se vê origem de coisa maior.

GARCIA DE RESENDE, com suas Trovas à morte de D. Inês, escritas no início do século XVI, assinala a introdução do mito de Inês de Castro na literatura portuguesa.
O romance infeliz de Inês e Pedro tem todas as características próprias do mito do amor-paixão. Inês e Pedro colocava em perigo a organização social, contrariando as regras de parentesco que regiam os matrimônios das casas reais. Com isso, colocavam-se contra os interesses do Estado. E o amor de Inês levou-a à morte em razão de, no plano sociológico, por a organização do grupo em perigo.
Garcia de Resende, em suas Trovas à morte de D. Inês, nos oferece uma versão lírica da história, mostrando a fatalidade do amor como obra do destino e a intensidade do sofrimento:

Conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeu-me, também perdi-o;
nunca té morte foi frio
o bem que, triste, pus nele.

Os nobres que falam ao rei Afonso IV, aconselhando-o a matar Inês, assemelham-se aos barões que, no mito, de instigam o rei Marke contra Tristão e Isolda.
Assim como os arbustos se entrelaçaram por cima dos túmulos, no mito de Tristão e Isolda, simbolizando o amor eterno, os túmulos de Inês e Pedro estão colocados um em frente ao outro, no mosteiro de Alcobaça, em Portugal. Segundo a tradição, no dia do Juízo Final, quando os dois amantes se erguerem, encontrar-se-ão, frente a frente, mostrando que o amor persistiu durante séculos, que os amantes estarão juntos por toda a eternidade..
Garcia de Resende introduz Inês na literatura, acentua na arte a valorização da Inês histórica. Sua morte, que supostamente havia sido uma derrota e humilhação para tudo o que ela representava, começa a servir de instrumento para a subida de Inês, para a sua mitificação. A semente do mito, lançada por Fernão Lopes, frutifica. Inês é a única personagem nomeada, como se só ela importasse. Todos os outros permanecem Rei, Príncipe, Conselheiros. E, se o importante é Inês, há, neste caso, uma inversão de valores. Rei, Príncipe, Conselheiros, não nomeados, são meros representantes de suas classes. O que fica claro é que o poeta dera início a um processo de construção lírico-mítica da personagem. Na realidade, o poeta é consciente do poder do discurso literário: Inês, que diz ter sido a morte o prêmio de seu amor, não morre. Seu prêmio fora a glória de estar no poema, de passar a ser texto, de ter iniciado um caminho fora da história. Era a previsão clara do poder, que só alguns possuem: Inês, o poder de virar tema além do tempo, sempre criatura nova nas mãos do criador.
Ainda no século XVI, António Ferreira retoma a história de Inês de Castro, escreve e publica a tragédia Castro. Assim, de personagem lírica na obra de Garcia de Resende, Inês virou personagem trágica na peça de Ferreira. A inês que morre por amor é transformada naquela que morre por Razões de Estado. Mas como se dissociarem as duas coisas? Para os seus matadores, Inês era a perigosa mulher que causaria danos à dinastia no poder. Para Inês, o amor do Príncipe justificava tudo. Se para uns ela é a perigosa ameaça ao príncipe que reinará depois de D. Pedro, para outros ela é a vítima e não ameaça. António Ferreira mostra que Inês é a vítima da Razão de Estado. E sua peça é desenvolvida neste sentido.
Até aqui, com as “Trovas”, de Garcia de Resende, e a “Castro” de António Ferreira, a Inês foi lírica e dramática, com o episódio de Inês de Castro em Os Lusíadas, de Camões, ela foi, ao mesmo tempo lírica e dramática. Ela teve o seu prêmio, a glória, em Garcia, teve o reconhecimento de sua inocência em Ferreira. Mas foi, indubitavelmente, com Camões que Inês de Castro alcançou o esplendor, o ápice de sua fortuna literária e mítica.Nesta obra, Inês move-se em busca de sua felicidade, confirma o destino trágico e encontra a morte. No final do ato IV, o coro diz palavras que anunciam a perenidade do nome de Inês:

Já morreu Dona Inês, matou-a Amor;
Amor cruel! se tu tivesses olhos
Também morreras logo. Ó dura morte,
Como ousaste matar aquela vida?
Mas não mataste: melhor vida, e nome
Lhe deste do que cá tinha na terra


A “LINDA INÊS “ de LUÍS DE CAMÕES

Entre tantos que trataram o tema de Inês de Castro, CAMÕES mostra a arte mais lírica e estabelece com o leitor um contato tão emotivo que tem atravessado o tempo. Ele, com a sua força de gênio, mostra o “O caso triste e dino de memória,/ Que do sepulcro os homens desenterra” , fazendo-o parte da história de Portugal, situado, portanto, no tempo e no espaço. Camões a introduz no episódio já com qualidades que criam um clima de piedade e simpatia para ela. Era a infeliz, sem defesa. Contudo, depois de morta foi rainha. São dois extremos, assim, o que comparamos em Inês: a “mísera e mesquinha ”mas também a “rainha”, embora depois de morta. E o fato de introduzi-la já morta traz um elevado estado de tensão emocional que permite ao poeta mascarar possíveis Razões de Estado porventura responsáveis pela morte de Inês. Para Camões, é o amor o motivo principal da morte de Inês:

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.

O poeta dirige suas palavras ao deus do amor e ao sentimento amor ao mesmo tempo. E torna-se claro, então, que o clima pretendido é o da Razão do Amor. Através do tratamento “tu” para o Amor e para Inês, Camões iguala-os num mesmo nível- Inês é o próprio Amor.
As diferenças encontradas no episódio camoniano se fazem sentir em dois pontos principais: quanto a Inês, que é puro amor, e quanto ao Rei. Este determina a sua morte e, depois, quer perdoar-lhe. Até aí tudo igual. Mas ela é violentamente atacada antes que o Rei possa atuar. E é nisto que o Rei camoniano difere dos de Resende e Ferreira. Entre o querer perdoar a Inês e a morte desta não há palavra alguma, como se não lhe tivessem dado a oportunidade de salvá-la. O Rei não a entrega aos algozes, eles a tomam.
Evidentemente o poeta toma o partido de Inês: se Razões de Estado houve, ela, inocente, não as provocou. É uma Inês que ama integralmente, que ama com o mais puro amor, a que morre. Nenhuma menção aos Castros, às intrigas. Respira-se amor do princípio ao fim .

A simbologia do mito de Inês de Castro (Parte VII)



Assim como Tristão e Isolda que, ao se refugiarem na floresta, criaram um mundo próprio, também Pedro e Inês têm o seu em Coimbra, afastado do mundo político da corte e suas intrigas. Em ambos os casos o amor é impossível, em razão de um deles ser casado; Inês é dama de honra de D. Costança e madrinha do filho de Pedro, tal como Tristão era sobrinho de Marke. Da mesma forma que os barões da Cornualha não viam com bons olhos Isolda , não compreendiam o seu amor por Tristão, também os Conselheiros de D. Afonso IV instigavam o rei contra Inês, exigindo a sua morte. A coincidência dos túmulos dos dois casais, juntos num mesmo local para simbolizar a união eterna, a superação do amor em relação à morte
Não é suficiente falar do mito de Inês, é preciso destacar os aspectos permanentes que aparecem no que se conta e no que se escreveu, sobre o assunto. Isso implica considerar o mito como formalizador de manifestações culturais e estabelecer suas relações com outros níveis de realidade.
Ressalve-se, porém, que a significação mítica não tem a lógica matemática, por isso escapa às análises objetivas que pretendem desvelar por inteiro a complexidade humana. O mito pertence a um mundo autônomo e só pode ser compreendido pelas leis de sua própria estrutura.
Sob o ponto de vista do mito, é indiferente a realidade histórica dos amores de Inês e Pedro. O que interessa é a realidade profunda do mito que se esconde sob a liberdade de fantasia que as várias versões encerram.
Quando se estuda a organização de um mito, percebe-se que existe sempre um outro, mais antigo, que lhe empresta a seiva semântica. Assim, no mito de Inês de Castro, pode-se afirmar que a disputa entre o novo e o antigo é um dos pólos em torno do qual se organiza a lenda. A juventude está ligada ao amor e é o amor que, nessa história, passa ao primeiro plano até os tempos modernos. O amor traduz não só a ambição de conhecer o outro mas também de conhecer o mundo e agir sobre ele, descobrir suas leis e recusar todos os limites. A juventude, que tem como objetivo a volúpia do prazer, liga-se à afirmação de si mesmo, ao excesso, e procura romper o interdito. Pedro e Inês personificam a juventude, o desejo que se insurge contra o poder patriarcal, lutam contra o direito do mais velho ( D. Afonso IV) e cometem a transgressão.
Para se ter uma idéia da falta cometida por Pedro e Inês, é necessário dizer que no século XIV, os antigos justificam o moderno, a autoridade presente está garantida por um precedente no passado, da mesma maneira que o Antigo Testamento prefigura o Novo.
Ao unir-se a uma dama bastarda sem a legitimação do casamento, com ela tem filhos que poderão reivindicar à coroa ,Pedro , não somente transgride as leis de linhagem, essa comunidade de sangue que impunha aos nobres sua moral e seus deveres, como põe em ameaça os interesses do grupo. Na Idade Média, a breve duração da vida exaspera a impaciência dos jovens, daí a freqüente sublevação de filhos contra progenitores, de príncipes contra reis. É evidente que essas atitudes representavam um perigo para uma sociedade que experimentava um grande sentimento de insegurança e cuja ordem, portanto, apoiava-se na solidariedade entre os membros dos grupos em que cada um estava integrado. Os constantes desentendimentos entre Pedro, o jovem Infante, e D. Afonso IV ( o celebrado herói da batalha do Salado) manifestam as duas épocas que se defrontam. De um lado o rei, herdeiro da tradição dos barões, radicada na consciência aristocrática, produto da sociedade feudal, que justificava os atos de crueldade. A força, a bravura e a lealdade são suas armas. De outro lado, o Infante, contagiado pela regra da cortesia, situado na revelação da cultura cavalheiresca, com seu erotismo impulsivo, seu amor pela vida, manifesto no prazer das danças populares e da companhia de amigos.
Outro pólo mítico é o do amor impossível. A tragédia dessa paixão é um tema fundamental, ato que provoca a ira dos oponentes e conduz à morte. Ao apaixonar-se pelo Infante, Inês inicia um processo de oposição a seus sentimentos, levanta contra si a animosidade do Rei, dos Conselheiros e de praticamente toda a corte. No início, os seus amores eram impossíveis, porque Pedro era casado com D. Constança e, segundo o costume da época, o marido não poderia viver em mancebia enquanto não desse herdeiros para o trono. Após a morte de D. Constança, a interdição vem da parte do Estado, a quem não interessa o casamento do Infante com uma mulher, filha bastarda, pertencente a uma família espanhola - Castro -, não pertencente à nobreza de sangue.
Na história de Inês encontra-se ainda o motivo do casamento secreto. Tal como Abelardo e Heloísa, tal como Romeu e Julieta, o casamento de Inês e Pedro, realizado às escondidas, conduz à morte física ( ou à morte para à sociedade, como aconteceu à Abelardo e Heloísa, obrigados pelas circunstâncias a tomarem o hábito e “morrerem” para o mundo atrás das portas do convento. Também na Baviera, Agnés Bernauer casa em segredo com o Duque Alberto III, em 1432. Dois anos durou essa união, pois, declarada ilegítima, Agnés foi acusada de feitiçaria e afogada no rio Danúbio, quando o duque estava ausente. Repare-se na coincidência de nomes e histórias: Inês/ Agnés ( cordeiro).
A lenda das fontes dos amores também tem um significado mítico. A fonte, na tradição védica, sintetiza as possibilidades de existência e é o princípio de toda a cura, coisa que permanece até na atual mitologia cristã. Inês é a ninfa dessa fonte dos amores, que afirma o pranto e a dor da natureza pela morte de Inês, que presentifica a imagem da amada de Pedro na memória de todas as gerações de portugueses, que eterniza Inês de forma absoluta.
Ao mandar construir o túmulo de Inês, Pedro estava apenas seguindo um costume de eternizar um ente querido. Todavia, ao mandar construir seu próprio túmulo de frente para o túmulo de Inês, na capela do mosteiro de Alcobaça, Pedro realiza uma integração completa com Inês ( Pedro/pedra), uma volta aos primórdios míticos, quando os princípios masculino e feminino ainda não eram dissociados. Pedro é a pedra sobre a qual se inicia o mito e o alicerce de uma trajetória poética. Todavia, sem Inês, sem o trágico destino da história de amor vivida com ela, Pedro não passaria de mais um rei excêntrico na galeria dos monarcas portugueses. Os próprios epítetos que lhe são atribuídos por Fernão Lopes - de “o justiceiro” e o “cru” – são provenientes das suas ações após a morte de Inês, principalmente no que toca à punição dos algozes da amante.

11 de fev. de 2013

A estetização do Mito de Inês de Castro (Parte VIII)



As lendas sempre foram fonte inesgotável para a poesia. Não apenas as lendas mitológicas, mas também as lendas históricas, envolvendo reis e heróis guerreiros. Nos primórdios da poesia grega, já encontramos esse amálgama de mito, história e poesia., lembrando que deuses e soberanos não são avessos à mesquinharia, à vingança, ao rancor e à crueldade.A morte de Inês de Castro, tragédia que remonta a seis séculos, além de ter invadido a dramaturgia da Inglaterra e Alemanha no século XVIII, tem permanecido nas literaturas portuguesa e brasileira como motivo usado recorrentemente pelos poetas, ficcionistas e dramaturgos. Há, por assim dizer, uma espécie de fascínio dos escritores pela história de Inês, remetendo para uma existência latente do mito no imaginário do homem ocidental.
A história de amor de Inês e Pedro reduplica o mito do amor-paixão, o mito do amor eterno cujo ponto de partida foi o trágico amor de Tristão e Isolda. Todavia, Inês, em si própria tornou-se um mito, em torno do qual muitas lendas surgiram ( a lenda de que depois de morta foi coroada rainha, de que os seus assassinos, obrigados a beijar a mão do esqueleto de Inês, enlouqueceram; a lenda das fontes dos amores de Inês, que teria brotado no local onde esta fora assassinada; a de que Pedro fizera o seus restos mortais viajar pelo país para ser venerado, a de que os túmulos foram construídos um de frente para o outro para facilitar o reencontro dos amantes após a ressurreição, etc), assim como centenas de versões da sua história, escritas por escritores de várias nacionalidade, através dos séculos.
A morte de Inês, transformada em motivo literário, supera a temporalidade.
Ao tratar da vida de Inês, a literatura mostra um lado secreto sufocado pela História que converteu a vida da “que depois de morta foi rainha” em fracasso. É claro que cada uma das obras escritas a seu respeito é parcial, cristaliza determinados aspectos em detrimento de outros. Entretanto esta parcialidade é sempre remetida à força configuradora dos mitos que cada poeta escritor traz em si; daí surgiu a estetização em temas diferenciados e,desta maneira, Inês expressa a própria ordem do mundo, incongruente e fragmentada.
Como já dissemos antes, A Inês de Fernão Lopes é, talvez, a mola propulsora para o desencadeamento da formação do mito, já que o amor do Rei por ela era tal que “raramente se encontrou um amor tão grande como aquelle”. Não importa as razões outras que instauraram a tragédia. De qualquer forma, o amor está lá, bem instalado, e todos, novos e velhos autores se valem desta fonte histórica, tradicionalmente considerada fidedigna, para as suas conclusões.
A persistência do mito fica nítida quando é encontrado desde as crônicas de Fernão Lopes até a poesia e a ficção de autores portugueses contemporâneos, como Herberto Helder, de Fiama Hasse Pais Brandão, de Natália Correia, dentre tantos outros, para além dos brasileiros que, do mesmo modo, foram penetrado pelo fascínio do mito de Inês.
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Textos de apoio: Herberto Helder. “Teorema” In Os passos em volta, Lisboa, Assírio & Alvim.
Fiama H. P. Brandão, Inês de Manto In Obras Completas, Lisboa, Verbo, 19
Natália Correia, “Se digo Pedro digo Inês” In Inês de Castro na Literatura Portuguesa, Lisboa, Bibl. Breve, 1979.
Luís de Camões. O épisódio de Inês de Castro. IN: Os Lusíadas.

9 de fev. de 2013

O Mito do Amor-Paixão na Literatura Romântica. (Parte IX)



Na literatura e no teatro portugueses dos finais do século XV até o século XVI foram dominados e nutridos pelo tema do amor-paixão de Pedro de Portugal e Inês de Castro, em cujo história transitam os ecos do mito de Tristão e Isolda, tão bem retomado pelos escritores que dela fizeram tema para as suas obras. Podemos assim dizer que, nos domínios da Literatura Portuguesa, até o século atual, a história ( tematizada na poesia, na epopéia e no teatro) que se liga ao mito do amor-paixão, ao mito surgido com Tristão e Isolda, é a história de Inês de Castro e Pedro. Desde Garcia de Resende até os poetas modernos, é ainda o Mito de Inês de Castro que continua invadindo o imaginário dos poetas e dramaturgos. Daí ter merecido um estudo à parte em nossa trajetória através dos caminhos percorridos pelo mito do amor-paixão, ligado a Tristão e Isolda, na literatura portuguesa.
Encerrada a unidade dedicada ao Mito do amor-paixão no drama de Inês de Castro, passaremos agora ao exame da presença ou dos ecos do mito do amor-paixão na literatura, desvinculado do tema de Inês de Castro.
Nos períodos barroco, arcádico e pré-romântico não surgem obras que se liguem ao mito de Tristão e isolda. A mais dramática história de amor que invade o imaginário da época barroca é a que oferecem As Cartas Portuguesas de Sóror Mariana Alcoforado, freira do convento de Beja que viveu um romance clandestino com um oficial francês. Todavia, o oficial francês a quem Mariana se devota apaixonadamente, é incapaz de paixão, é uma espécie de D. Juan, é a antítese de Tristão, é o homem dos encontros sem futuro, leviano por definição, como seria, no século XIX, “Basilio” de Eça de Queirós.
O Século XVIII, domínio da volúpia e da sensualidade solta, assista ao que Rougemont denomina de “eclipse do Mito”, apesar das obras pré-romântica, como a Nova Heloísa de Rousseau e do Werther de Goethe ( uma perfeita recriação do mito medieval do amor-paixão), por exemplo, provarem a persistência do mito nos corações dos homens do século XVIII. Todavia, no âmbito da literatura portuguesa, nada acontece que mereça um destaque especial, fora da expressão do mito de Tristão e Isolda no já estudado mito de Inês de Castro.
Até o advento do romance no século XIX, é, portanto, a história de Inês de Castro e as obras que a tematizam o que se liga ao mito de Tristão e Isolda.
Na Europa, o eclipse do mito, no século XVIII, propiciou o surgimento da personagem que constituiria a antítese perfeita de Tristão: D, Juan. Este personifica a maldade e a perfídia, antítese das virtudes do amor cavalheiresco: a candura e a cortesia. A este assunto, retornaremos mais adiante, quando abordarmos o Mito no Realismo.
O Romantismo europeu recupera, através da ópera, também difusora do mito, a obra Werther do alemão Goethe , composta por Jules Massenet. O alemão Richard Wagner, em q865, apresenta a ópera Tristão e Isolda ao público europeu. Outras óperas estão ligadas ,também, à retomada do mito no século XIX, principalmente no Romantismo: Romeu e Julieta ( Gounod), La Traviata , Um baile de máscaras e A força do destino ( Verdi). Todas apresentam os mesmos traços definidores do mito: amor que leva à morte, amor impossível, amor infeliz.
Como observa Maria Elizabeth de Vasconcellos, no século XIX assistimos a uma “explosão contra a sociedade aristocrática” do século XVIII, semelhante a que se verificou no século XII , contra a sociedade hierática dos seniores feudais. Os romances no século XIX passaram a refletir uma luta contra os preconceitos, contra a idéia de honra e de tradição mantidas pela sociedade aristocrática absolutista. O obstáculo à realização do amor que era, no mito, religioso e social, agora passa a ter uma evidência única que diz respeito ao plano social: os jovens reclamam a si o direito de escolherem o companheiro de casamento, recusando as uniões arranjadas pelos pais ou parentes e pautadas em interesses outros que nada tinham a ver com o amor. E o mito reaparece com toda a sua força.(1)
A partir do final do século XVII e ao longo do século XVIII, Os casamentos se faziam como as “alianças” ou acordos diplomáticos, não interessando as afinidades afetivas. Como informa Denis de Rougemont, “a conveniência das classes e a conformidade das “qualidades” tornam-se a medida ideal do bom casamento [...].(2)
Na sociedade libertina, especialmente na França setecentista, “ quando todo o obstáculo ao amor é destruído, a paixão não tem onde se agarrar”. Já quase nada é proibido.” Todavia, neste século da volúpia e não da sensualidade saudável, embora se julgasse curado do mito, este irrompe aqui e ali, quando o sentimento sobrepõe-se à mera relação devassa, como bem o exemplifica o romance de Lacros As ligações perigosas, que tão bem retrata a sociedade da época.
A reviravolta originada na sociedade européia a partir Revolução Francesa, iria consequentemente refletir-se na sociedade burguesa-liberal-capitalista século XIX. Os valores da burguesia em ascensão, os ideais de liberdade individual, a instauração do capitalismo resultaram em mudanças irreversíveis nos costumes, nas mentalidades e na cultura da sociedade da época.
A Classe burguesa no poder em nada se assemelha à aristocracia desprestigiada pela Revolução. As obras literárias do período romântico obedecem ao “gosto” da burguesia endinheirada, conquista um público numerosíssimo, ocioso e com poder de compra, basicamente constituído por mulheres, perde os “mecenas” e passa a se submeter aos caprichos e exigências das leis do mercado capitalista, ou seja às leis da oferta e da procura, perante às quais um livro é uma mercadoria como qualquer outra. Ao contrário da literatura do período neoclássico, toda ela condizente com o refinado gosto e cultura da aristocracia, vinculada ao mecenatismo que assegurava a sobrevivência do escritor e voltada para os valores desta mesma aristocracia.

CONTINUE

A Expressão do Mito no Romantismo (Parte X)



Camilo Castelo Branco, com o seu romance Amor de Perdição e Alexandre Herculano com Eurico o presbítero,( e de certo modo com a história de Dulce e Egas no romance O bobo) ofereceram à literatura portuguesa versões românticas do mito do amor-paixão, com a narração dos infelizes amores de Simão e Teresa / Hermengarda e Eurico, respectivamente. No teatro, é Garrett quem oferece , através do drama Frei Luís de Sousa , uma história que retoma os conceitos míticos do amor impossível, do amor ligado à idéia da punição, etc.
O romance de Herculano tem a sua ação no século XII, época da formação da nacionalidade portuguesa. Em relação ao amor-paixão que liga Eurico, o presbítero a Hernengarda, o que se tem inicialmente é o obstáculo social. Quando este deixa de existir, dez anos mais tarde, surge o obstáculo religioso. Tanto o tema heróico quanto o tema amoroso estão configurados neste romance. No primeiro, o Cavaleiro Negro movimenta-se perfeitamente integrado no meio, realizando façanhas admiráveis. Já no tema amoroso, Eurico luta por valores ainda não aceitos: livre escolha da pessoa com quem se casará e, depois, libertação do casamento clerical. A sociedade burguesa-católica e puritana do século XIX ainda não estava preparada para romper definitivamente com o celibato clerical. Por isso Eurico e Hermengarda não podem ficar juntos, devem ser punidos com a morte, porque estavam colocando em perigo o equilíbrio do grupo social e do grupo religioso.
O romance Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, será o nosso objeto de análise na busca de elementos míticos nele presentes.
Neste romance, Camilo apresenta o homem em luta dramática para solucionar os seus problemas dentro da “linha do espiritual”. 
O herói camiliano será regido pela “lei da paixão”, tal como o foi Tristão, Abelardo, Romeu etc.
Tentaremos estabelecer uma relação entre a história de Tristão e Isolda e a de Simão e Teresa, mostrando que há um palarelismo entre ambas as histórias.


AMOR DE PERDIÇÃO: dimensões e planos.

O romance pode ser dividido em 3 partes:O CONHECIMENTO ( vai do nascimento de Simão à descoberta do amor);
O AMOR ( vai da descoberta do amor à morte de Baltasar);
A MORTE ( vai da prisão de Simão à morte deste e de Teresa.)
A narrativa atesta uma progressão, assim como o mito: assiste-se, de um lado, a uma disjunção crescente entre Simão / Teresa e a sociedade, enquanto, por outro lado, assiste-se a uma união cada vez mais profunda entre os dois jovens apaixonados, que vão criando seu mundo afastado dos valores da sociedade patriarcal. Embora os dois quase nunca se encontrem fisicamente, espiritualmente estão muito próximos e essa aproximação e comunicação é feita através das cartas.
No mito, como já vimos, há dois temas distintos: o heróico e o amoroso. Tristão, no tema heróico, já ganha dimensões de herói nacional e age de acordo com os valores aceitos na época. Todavia, não ocorre o mesmo em Amor de Perdição. O tema heróico no romance de Camilo é bem mais reduzido do que o do mito e Simão não realiza nada definitivo quando age contra os valores aceitos na época, lutando por ideais políticos de libertação.
A atividade de Simão no tema heróico serve, apenas, para mostrar seu caráter forte e arrebatado e a incompreensão por parte da família em relação a ele:
“O filho do corregedor de Viseu defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das mil cabeças sob a clava do Hércules popular.” (3)
Não há, pois, relações familiares superestimadas entre Simão e os pais,( tal como acontece ,também, com Teresa e Tadeu de Albuquerque).
A troca das cartas, que vão e vêm clandestinamente, sem o consentimento dos pais, será sempre uma relação familiar subestimada, que se estende do início ao fim do romance.
É, entretanto, no plano amoroso que Simão ganhará dimensões de verdadeiro herói, por causa do amor. 
Na Introdução do romance, Camilo diz que a história de Simão pode ser resumida na frase: “Amou, perdeu-se e morreu amando.”
No tema amoroso, Simão apresenta-se como um ser privilegiado: seu sentimento de honra é enorme, nada aceitando da família quando está na prisão. Quando é chamado ao tribunal, no dia do seu julgamento, Simão recusa-se a qualquer defesa (4)
No tema amoroso, o amor , conforme declara o narrador do romance, faz “maravilhosa mudança nos costumes de Simão”, ele procura lugares solitários e ermos: “Nas doces noites de Estio demorava-se por fora até o romper da alva.” (5) Isso não quer dizer que ele perdesse a coragem, mas, sim, que passaria a lutar contra tudo que se opusesse ao novo ideal que regeria a sua vida:

tema heróico: ideal político
tema amoroso: ideal amoroso

O que é comum aos dois temas em relação ao comportamento de Simão, é que ele luta sempre em favor de valores aceitos ainda, manifestando-se como um espírito dramático. E para evidenciar sua qualidade de ser escolhido, Simão também teve seu nascimento marcado por um fato triste. É a mãe quem lhe escreve quando ele está na prisão:

“Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer!
Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não o quis largar.

“Por sua vez, Teresa também é especial no seu sentimento. Camilo diz que “... o amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas...” Logo a seguir, explica que “Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor.” (6)
Portanto, no romance, não só o herói realiza façanhas extraordinárias, mas também Teresa luta como pode para vencer a ferocidade do pai, preferindo ir para o convento a casar-se com o primo Baltasar.
Se verificarmos o obstáculo que se apresenta ao amor de Simão e Teresa, veremos que ele é social. É o pai de Teresa que lhe quer impor um casamento com o primo, não cogitando do sentimento da filha por Simão. Tanto em Tristão e Isolda, quanto no romance de Camilo, como ainda não havia perspectiva de aceitação, no momento em que as obras foram feitas, do ideal que buscam os dois casais, ambos foram levados à morte, pois, não podendo sintonizar a realização de seu amor com os desejos da sociedade, colocam em perigo o equilíbrio do grupo social. O mesmo esquema do mito do amor-paixão desenha-se no romance camiliano”:

Teresa Simão
Baltasar Mariana
_______________________________
Embora jovens são rejeitados

Entretanto, embora paralelas, na medida em que Mariana e Baltasar são recusados como pretendentes, há uma oposição que se processa no campo em que a recusa é feita. A recusa de Teresa é feita no campo das relações familiares subestimadas – a relação entre ela e Baltasar é hostil. Já não é assim a recusa de Simão ao amor da filha de João da Cruz: Simão não pode aceitar o amor de Mariana porque simplesmente seu sentimento por Teresa é como o de Tristão por Isolda: amor eterno, fruto do acaso.

“Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre.
Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a habitual nos seus anos.”(7)
Para Simão, tudo seria mais simples se, em vez de amar Teresa, amasse Mariana, como ele próprio diz ao ferrador: “Pudesse eu ser marido de sua filha, meu nobre amigo!”(8)
Assim como Tristão se afastou de Isolda para que esta, depois do julgamento de Deus, pudesse voltar a viver com Marc, também Simão ter-se-ia afastado de Teresa se ela assim o quisesse:
“Se teu pai quisesse que eu me arrastasse a seus pés para te merecer, beijar-lhos-ia. Se tu me mandasses morrer para te não privar de ser feliz com outro homem, morreria, Teresa.”(9)
Assim como Tristão se casou com Isolda, a das Brancas Mãos, mas não a amou, também Simão não corresponde ao amor de Mariana: “Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher.”, diz à filha de João da Cruz, quando ela comunica que vai acompanhá-lo ao desterro. 
Mariana é uma espécie de tentação para colocar à prova o amor de Simão; mas este permanece fiel à sua amada, como o cavalheiro medieval, como Tristão. Vale lembrar que a fidelidade à mulher amada é uma das regras do amor cortês. Mesmo que esta seja inacessível, mesmo que infindos obstáculos se interponham entre ele e a mulher que ama, o amante se mantém fiel..
Considerando, agora, Mariana podemos dizer que ela se opõe a Isolda, a de Brancas Mãos. Enquanto esta foi a causa, no plano literal, da morte de Tristão. Mariana, ao contrário, sempre apoiou Simão, embora sofresse com isso. A fidelidade de Simão a Teresa atinge proporções muito maiores, pois as relações dele com Mariana processam-se no campo positivo e ela, como personagem, é até mais humana que Teresa. A filha de Tadeu de Albuquerque aproxima-se da mulher das cantigas medievais, sempre distante, quase nunca tendo seus atributos físicos referidos explicitamente pelo narrador. Há, no romance, pouquíssimas referências tanto ao físico de Teresa quanto ao do próprio Simão.
Em relação aos planos, não teremos em Amor de perdição o aparecimento do plano mágico, como no mito medieval. A ajuda aos jovens apaixonados é dada sempre por aliados humanos tais como João de Deus e Mariana. Somente a mendiga poderia ligar-se ao plano mágico: ela aparece e desaparece misteriosamente.
Finalmente, o que está em jogo no romance de Camilo é a luta dos jovens contra o poder patriarcal e, por isso, o plano sociológico é o que terá maior destaque. No plano religioso, não haverá punição, como no mito, pois Simão e Teresa não pecaram contra nenhum preceito religioso, nem contra a castidade. O próprio Prior que confessava Teresa, ao ouvir o desejo que esta manifestava de encontrar Simão no céu, preconizando a união eterna das almas, não sabia “... se seria herético contestar uma cláusula não inscrita em algum dos quatro evangelhos.”

É o plano sociológico, assim, aquele que obtém maior ênfase no romance camiliano: 

                Exaltação____________________________________Punição


Permanência do mundo espiritual criado pelas cartas .  Teresa _ convento
                                                                              - Simão _ prisão

MORTE

Há, no final, a morte passivamente aceita pelos dois amantes, pois, não podendo casar-se na terra, procuram a união após-morte. 
Assim como Tristão e Isolda também se uniram depois da morte, através da simbologia dos arbustos entrelaçados, Simão e Teresa esperam encontrar-se no céu. Nas cartas de Teresa a Simão, há referencias a esse desejo e, quando Simão está prestes a expirar, fala a Mariana sobre tal encontro.
Uma vez ressaltadas as analogias entre o mito do amor-paixão e o romance de Camilo, fica ainda uma pergunta: porque, no mito, há adultério e nos dois romances citados ( o de Camilo e o de Herculano) não há consumação física do amor? Podemos responder a isso, dizendo que o mito do amor-paixão, emergente da história de Tristão e Isolda, precisava causar um impacto na sociedade medieval, uma vez que se insurgia em rebelião, que lutava, contra a organização hierática. Bem diferente é a situação no contexto burguês-capitalista do século XIX e do Romantismo. Este também lutava contra a organização aristocrática em classes fechadas, mas não podia admitir o adultério ou a consumação física do amor antes do casamento religioso, pois suas obras eram dirigidas à burguesia e esta tinha padrões morais muito rígidos. Dá-se, então, a adequação do Mito, aos princípios morais estabelecidos pela classe burguesa no poder. Assim, nos romances escritos na primeira metade do século XIX, no período romântico, não era admitido o adultério ou a consumação do amor antes do casamento. No caso de ocorrer este tipo de delito, haveria sempre uma punição rigorosa, como acontece em Anátema de Camilo Castelo Branco
O que fica bem claro através da análise de Amor de Perdição é que os escritores ( e também compositores de óperas) retomaram os conceitos míticos do amor-paixão, mostrando com isso uma semelhança entre seus próprios anseios e os do grupo social e religioso do século XII.
Na literatura do Romantismo europeu, muitos foram os romances que, tematizando o amor impossível, o amor ligado à morte ou ao sacrifício da renúncia, imposta pelo grupo social ou religioso: O Morro dos ventos uivantes , de Émile Bronte, por exemplo, que já teve duas versões no cinema, ainda hoje seduz as pessoas, do mesmo modo que A dama das Camélias de Alexandre Dumas, também com várias versões para o cinema, além da ópera La Traviatta. Tais histórias seduzem porque tratam do tema Amor e morte, a combinação que mais profundamente sensibiliza o ser humano em qualquer época.
Como bem o diz Denis de Rougemont, O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o fato fundamental..( Ob. cit., p. 17) 

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1- Maria Elizabeth G. Vasconcelos. O homem no sentido latente do mito do amor-paixão, p. 43.(dissertação)
2-Denis de Rougemont, O amor no Ocidente, Rio de Jan. Ed, Guanabara, p.149,151;
3) Camilo C. Branco. Amor de Perdição, Porto, Porto ed.,s/d, p.35.
5. C.C.Branco, Ob. Cit., p. 36;
6. Idem, p. 148-9;
7. Idem, p. 37;
8. Idem, p. 88-89


CONTINUA...

Declínio e eclipse do mito do amor-paixão (Parte XI)



No século XVII “racional” os costumes se separam das crenças religiosas e, sem que ninguém perceba, se adaptam às leis da razão do século, renegando o absoluto cristão. A partir de então, o casamento já não é visto como uma instituição de base, as “alianças” privadas são celebradas da mesma forma que os acordos diplomáticos, sem importar as afinidades entre os cônjuges. A medida para um bom casamento era somente a conveniência das classes e a conformidade das “qualidades” e dos “méritos”. Tal forma de casamento viria a ter grandes dificuldades de ser mantido nos séculos seguintes.
A partir do século XVII os casamentos se subordinam às leis do racionalismo, segundo à qual só “os méritos”, e não a graça imprevisível, decidem uma união. Assim, um bom partido é aquele “cuidadosamente escolhido pela razão. Triunfo da moral jesuíta. O barroco aprisiona o sentimento sob o artifício das suas pompas. Do mesmo modo a análise da paixão, tal como a fez Descartes, sua redução a categorias psicológicas perfeitamente distintas, a hierarquias racionais de qualidades, méritos e faculdades, conduziria necessariamente à dissolução do mito e de seu dinamismo original. E que o mito só exerce seu poder precisamente onde desaparecem todas as categorias morais – para além do Bem e do Mal, no transporte e na transgressão do espaço onde a moral prevalece. 
Spinoza definiu o amor como um sentimento de alegria acompanhado da idéia de uma causa exterior. Tal causa exterior seria um Deus com o qual a nossa alma poderia se identificar. “ Todavia, entre a alegria e sua causa exterior há sempre alguma separação, algum obstáculo: a sociedade, o pecado, a virtude, nosso corpo, nosso eu distinto. Daí o ardor da paixão. E daí que o desejo de união total se ligue indissoluvelmente ao desejo da morte que liberta. Por não existir sem a dor, a paixão faz com que desejemos nossa perda. “(11) Exemplifica bem esse desejo de perda, esta espécie de volúpia da dor, o que diz a religiosa portuguesa Soror Mariana Alcoforado, em uma das cartas que escreveu ao homem que a seduziu: “Agradeço-vos do fundo do coração o desespero que me fazeis sentir e desprezo a tranqüilidade em que vivia antes de conhecer-vos...Adeus! Amai-me sempre, fazei-me sofrer ainda os piores tormentos!” (12)
No século XVIII, as qualidades e méritos exigidos ao cônjuge já não são de ordem moral, mas sim de ordem intelectual e física, a divisão do ser já não é em espírito e carne, mas em inteligência e sexo. Já não há obstáculos ao prazer, à paixão. E, “quando todo obstáculo é destruído, a paixão não tem onde se agarrar. O deus do Amor já não é o destino severo, mas uma criança impertinente. Já quase nada é proibido. Dá-se , então, o apogeu das idéias de Meung, o realismo sobrepõe-se ao idealismo, o cinismo devasso ao platonismo pleno de fidelidade. O que se vê é a profanação do mito de Tristão e Isolda. 
Ora, esse século da Volúpia não é o da sensualidade saudável, embora se julgasse curado do mito. “As mulheres desta época não amam com o coração, amam com a cabeça, entregam-se à licenciosidade sem freios.Contudo esta espécie de donjuanismo feminino em vez de lhe proporcionar a satisfação do amor sensual, enche-a de inquietação, leva-a à busca de novas experiências, em busca de um “mentira ideal” de amor-paixão. 

Don Juan: a imagem invertida de Tristão.. 

Por outro lado, o eclipse do mito daria lugar ao aparecimento da mais absoluta antítese de Tristão: Don Juan. “Se Don Juan não é, historicamente, uma invensão do século XVIII, ao menos esse século imprimiu nesta personagem os dois traços tão típicos da época: a maldade e a perfídia. Antítese perfeita das duas virtudes do amor cavalheiresco: a candura e a cortesia.
O personagem mítico de Don Juan exerce fascínio sobre mulheres e homens, sem sombra de dúvidas. Tal fascínio talvez tenha o seu fundamento na natureza contraditória desse aventureiro amoroso.
Como esclarece Rougemont, “Don Juan é ao mesmo tempo a espécie pura, a espontaneidade do instinto, o espírito puro em sua dança desvairada sobre a imensidade do possível. É a infidelidade perpétua, mas também a procura perpétua da mulher única, jamais encontrada pelo erro incansável do desejo.”
A imagem de Don Juan que nos interessa aqui considerar é a que o teatro ( ou a ópera de Mozart) nos oferece: como a imagem invertida de Tristão.
“Antes de mais nada, o contraste está na aparência exterior das personagens, em seu ritmo. Sempre imaginamos Don Juan numa atitude altiva e ameaçadora, prestes a investir mesmo quando por acaso interrompe sua perseguição. Ao contrário, Tristão entra em cena com aquela lentidão sonambúlica de alguém que hipinotiza um objeto maravilhoso, cuja riqueza ela jamais esgotará plenamente. Um possuiu mil e três mulheres, o outro uma só mulher. Mas pobre é a multiplicidade, enquanto num ser único e possuído ao infinito se concentra o mundo inteiro. Tristão já não precisa do mundo – porque ama! Enquanto Don Juan, sempre amado, não pode jamais retribuir com amor. Daí sua angústia e sua busca desenfreada.
Um procura no ato do amor a voluptuosidade de uma profanação, o outro realiza a “proeza”divinizante permanecendo casto. A tática de Don Juan é a violação e, uma vez obtida a vitória, abandona o terreno e foge. Ora, a regra do amor cortês fazia da violação precisamente o crime dos crimes, a felonia sem remissão, e da homenagem um compromisso até à morte. Mas Don Juan ama o crime em si, tornando-se assim tributário da moral de que abusa. Ela é imprescindível para que Don Juan sinta o gosto de a violar, enquanto Tristão se sente livre do jogo das regras, dos pecados e das virtudes, pela graça de uma virtude que transcende o mundo da Lei.
Enfim, tudo se resume nesta oposição: Don Juan é o demônio da pura imanência, prisioneiro das aparências do mundo, o mártir da sensação cada vez mais decepcionante e desprezível _ enquanto Tristão é o prisioneiro da infinitude do dia e da noite, mártir de um encantamento que se transforma em pura alegria com a morte.
Voltando aos romances de Camilo e Eça, antes referidos, podemos dizer que Amor de Perdição filia-se à “linha do espiritual” e O Primo Basílio” segue a “linha do material”, o primeiro é herdeiro das idéias de De Lorris, foi escrito sob o sentido latente do mito do amor-paixão, do qual recupera muitos conteúdos míticos, dentre eles O amor ligado a morte, o amor eterno, etc. Enquanto isso, o romance de Eça radica nas idéias de Meung., repete o mito de Dom Juan e promove a profanação do mito. Enquanto Simão aproxima-se de Tristão, Basílio assemelha-se a D. Juan.
Simão e Teresa têm um objetivo comum a atingir, um mesmo sentimento a uni-los. Com Basílio e Luísa dá-se o contrário, nada em comum os une, nem na área dos sentimentos, nem na área dos objetivos a alcançarem: ela, com a cabeça cheia de sonhos, os sentidos insatisfeitos e ávida de viver as aventuras que lia nos romances românticos, de viver um grande e apaixonante amor, não resiste à corte que Basílio lhe faz , tornando-se a sua amante. Por sua vez, Basílio apenas deseja uma aventurazinha picante com Luísa, um passatempo enquanto está de passagem por Lisboa. Não há sentimento amoroso em sua relação, apenas desejo. Ele obtém o que quer, ela não se vê contemplada com o que sonha: ser amada por Basílio, ao contrário disso percebe que o "amor”do primo em nada se assemelha aos que conhecera nos romances. Conquistada a prima, Basílio abandona-a para não ter de assumir maiores responsabilidades. Luísa morre, Basílio cinicamente dá continuidade à sua vida de conquistador leviano. O caso amoroso de Basílio e Luísa não traz nenhum aperfeiçoamento para ela, apenas a degradação. Trata-se de um amor que avilta e rebaixa o ser. Só um ganhador teve esta história: o vilão Basílio. antítese de Tristão.
Já em amor de perdição, Simão e Teresa têm o mesmo aperfeiçoamento a obter: enquanto Simão deseja ser amado eternamente por Teresa, esta deseja o mesmo com referência a Simão. No processo para alcançar a realização do desejo recíproco de amor eterno, Simão luta contra os preconceitos familiares e chega a matar o rival; Teresa, por sua vez, recusa o casamento com o primo e prefere ir para o convento. O que eles desejam é obtido pelos dois de forma idêntica: Teresa morre de amor e promete encontrar Simão no céu e Simão morre de amor e promete encontrá-la no céu.
Há também a referir o caso das cartas que, em Amor de perdição, propiciaram a criação do mundo de Simão e Teresa, levando-os a uma união espiritual crescente, enquanto em O Primo Basílio são as cartas de amor que precipitam a separação dos amantes.
Na verdade Luís foi apenas a ROSA de MEUNG que deveria ser colhida. Basílio nada mais foi que o duplo de Don Juan, a antítese de Tristão.
Lembrar que os princípios morais da burguesia não admitia o adultério, considerado crime passível de punição com a cadeia e o desprezo do meio social. Por outro lado, vale salientar que Eça, ao escrever o romance O Primo Basílio, intencionava criticas a dissolução dos costumes, amora, a decadência da família e a crise do casamento em razão do adultério. Lembrar também que cada grupo social tem as suas normas de conduta, os papéis que cada um deve desempenhar, o lugar marcado que cada qual deve ocupar para que se mantenha o equilíbrio do grupo. A cometer o adultério, Luísa infringiu o código estabelecido, desafiando, assim, o equilíbrio do grupo social, não podia continuar viva. Tinha que ser punida com a morte.
Encerrando os estudos acerca da expressão do mito na literatura do século XIX, propomos a LEITURA da peça de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, obra prima do teatro romântico português.
Lida a peça, procuraríamos estabelecer a relação entre a história das personagens Manuel de Sousa Coutinho e D.Madalena de Vilhena, com o mito de Tristão e Isolda,( ou o mito do amor-paixão), bem como com a história de Abelardo e Heloísa, apontando os conteúdos míticos presentes na tragédia do Frei Luís de Sousa .
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09- Cleonice Berardinelli, Para uma análise estrutural da obra de Eça de Queirós, Colóquio, Lisboa, Junho,1971, p. 26.
10- Denis de Rougemont, O amor e o Ocidente, Rio de Jan° , Ed, Guanabara, p. 127-128.
11- Idem, ibidem, p. 149.
12- Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, Lisboa, Morais, p.17.

O Mito do Amor-Paixão no Ultra-Romantismo (XII))



Como já o dissemos antes, a burguesia foi a responsável pelo não aparecimento do adultério, bem como a punição de tal delito ( o adultério era considerado crime, passível de prisão, tal como ocorreu com o próprio Camilo e Ana Plácido) , nos romances da primeira metade do século XIX. Portanto, se havia adultério no romance, este era severamente punido, tal como o faria a sociedade e a justiça.
Já no século XVIII, ocorre a ascensão crescente da burguesia endinheirada que se tornava a maior consumidora da literatura. No século XIX, a obra literária não é mais que um objeto de consumo, exposto às leis do mercado capitalista, ou seja, a lei da oferta e da procura, portanto, para sobreviver com o fruto do seu trabalho, o artista tem que produzir  obras que satisfaçam às exigências do público consumidor.
Por isso, ao lado de obras que recriavam o mito do amor-paixão, surgem outras em que se dará o aburguesamento da história com a modificação do final, que não será mais trágico, mas um final feliz. Assim, para atender à solicitação da burguesia, cada vez mais poderosa, a filha de um escrivão casa com o filho do patrão ( Uma família Inglesa de Júlio Dinis), duas órfãs casam com ricos herdeiros de terras ( As pupilas do Senhor Reitor de Júlio Dinis), pois para a burguesia, a mais importante aspiração era o nivelamento social. Tais obras não apresentam punições, no plano sociológico, como o mito, pois os que se amam, embora encontrem obstáculos à realização do amor, conseguem superá-los. O final do romance, que termina em matrimônio, com a fórmula “Foram felizes e tiveram muitos filhos”, faz supor que o novo casal dará, em futuro próximo, sua contribuição ao grupo social. Estes romances eram publicados, geralmente, em folhetins, juntamente com as Óperas e as operetas, foram para o século XIX, o que as novelas de televisão e o cinema são para o público do século XX.

O Ultra-Romantismo nos oferece também nos domínios da poesia manifestações da presença de conceitos míticos.
No que pese à conotação pejorativa que durante muito tempo recaiu sobre o Ultra-Romantismo, principalmente através da visão que dele tinham os primeiros historiadores da literatura portuguesa, hoje esta tendência do Romantismo já está reabilitada aos olhos da crítica.
Em 1880, Teófilo Braga  formulou  o conceito de Ultra-Romantismo, que o considerava uma expressão da decadência do Romantismo, um mero fenômeno da degradação a que tinha chegado a literatura romântica em Portugal, invadida pelos excessos sentimentalistas e funéreos, a partir dos derradeiros anos da década de quatenta do século XIX.
A cidade do Porto, berço de Camilo Castelo Branco, Soares de Passos e Maria Brawne, os mais fieis cultores dão Ultra-Romantismo, era o lugar onde predominava , notadamente na poesia, o que a crítica mordaz de Gomes de Amorim rotulava de “poético-mania”  ultra-romântica que traça o perfil caricatural do poeta infeliz com o nos “tenebrosos subterrâneos”dos romances “góticos”de Ana Radcliffe ( autora pertencente ao Pré-Romantismo inglês), acabando por caricaturar o inevitável “amor no cemitério”.
Todavia o fenômeno do chamado Ultra-Romantismo na literatura do século XIX não foi tão simples como poderia parecer. A sua gênese deve ser procurada na influência tardia que as obras dos autores do Pré-Romantismo anglo-germânico  exerceram sobre os autores do Romantismo português. Edward Young, com as suas Noites, que puseram em moda em toda a Europa a poesia noturna e sepulcral; Tomás Gray, com a sua célebre Elegia escrita em um cemitério de aldeia; James Hervey, com a sua obra Meditações entre os túmulos; Richard Blair , com Le Tombeau; Parnell com seu poema Noturno sobre a  morte. Mais tarde, o poeta inglês Lord Byron, que, com a sua morbidez e o seu satanismo, seduzia as mentes românticas, propensas ao cultivo do lado sombrio e pessimista da vida. Esta literatura que tanto sucesso fizera no período pré-romântico, em razão da proibição da censura civil em Portugal, nas últimas décadas do século XVIII e primeiras do século seguinte, eram praticamente desconhecidas do público e dos escritores de então. Somente com a suspensão da censura, após dos anos vinte do século XIX, tais obras podiam ser trazidas para o país. Daí certos traços definidores da estética pré-romântica surgirem nas producões poéticas ultra-românticas, notadamente, o gosto pela poesia noturna e sepulcral, das elucubrações sobre a morte e o destino do homem, ao qual se mesclam determinados conceitos míticos, como o do amor ligado à idéia da morte, do amor eterno que se realiza ou que prossegue após a morte.  O que isto parece significar é a evidência de que a literatura amorosa do Ocidente está presa, no plano existencial, ao mito do amor-paixão, ou seja, à história de Tristão e Isolda, sempre retomada, adaptada às circunstâncias, aos tempos, mas sempre revivida e revitalizada, como a provar que o homem do Ocidente vive no sentido latente do Mito e do fascínio que exerce sobre os anseios amorosos inerentes à sua condição humana.


Antes de fazermos a leitura dos textos, lembremos alguns traços definidores do Ultra-Romantismo.

Este estilo assinala um forte desequilíbrio do pensamento, da expressão das emoções e dos sentimentos, na medida em que os exprime de forma hiperbólica e excessivamente dramática. Manifesta um predomínio da emoção, da exaltação do espírito, da melancolia, da melancolia que vai levar ao tédio da vida e, consequentemente ao desejo da morte, ao fatalismo. Aqui se volta a sentir a presença do masoquismo, expresso no gosto da própria dor, do desejo de fartar o coração de tristeza, de buscar lugares apartados e sinistros.
A Natureza é pintada com cores tristes e vai até o domínio do tétrico, do macabro, com fantasmas, sepulturas, ajustando-se, assim, ao estado de alma do poeta. (tudo isto tão tipicamente pré-romântico!).
Afirma-se o gosto pelo melodrama tão longe do equilíbrio do drama romântico. Aqui e ali, sente-se certa religiosidade que está muitas vezes ligada à magia, à crença num regresso das almas a este mundo.
Vejamos, a guisa de exemplo, o poema que se segue.

  NOIVADO NO SEPULCRO

Vai alta lua!  Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranqüila!  Dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou
                         II
Que paz tranqüila!...  Mas eis longe,  ao longe,
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma, semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
                        III“
“Ergueu-se,  ergueu-se! ... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
Do mocho pia na marmórea cruz.
                         IV
Ergueu-se,  ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre os campos arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
                       V
Chegando perto duma cruz alçada,
Que, entre os ciprestes, alvejava ao fim,
Parou,  sentou-se e, com voz magoada,
Os ecos tristes acordou assim;
                    VI
“Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?
                     VII
“Amor!  Engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?
                     VIII
“Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai!  Quão pesada me tem sido a lousa
Sobe este peito que bateu por ti!
                   IX
“Ai!  Quão pesada me tem sido!” E, em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
                  X
Talvez que, rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro d’infernal prazer,
E o ouvido cobrirá meus ossos
N aterra fria, sem vingança ter !
                     XI
 - Oh!  Nunca, nunca!  de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
“ -Oh! nunca, nunca! “ repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem,
                 XII
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor,
Singela c ‘roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
                XIII
“Não,  não perdeste meu amor jurado
“Vês este peito? Reina a morte aqui...
“E já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas inda pulsa com amor por ti.
               XIV
Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
“Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... Que importava o mundo,
“Um mundo em trevas, sem a luz do amor?
                XV
“Saudosa ao longe vês no céu a lua?
“Oh! vejo, sim...  recordação fatal!
“Foi à luz dela que jurei ser tua,
“Durante a vida e na mansão final.
                   XVI
“Oh!  vem!  se nunca te cingi ao peito,
“Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
“Quero o repouso do teu frio leito,
“Quero-te unido para sempre a mim!”
                      XVII
E ao som dos pios do cantar funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d’infeliz amor.
                    XVIII
Quando risonho despontava o dia,
Já deste drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignara mão,
                  XIX
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


SOARES DE PASSOS  ( grifos nossos)