10 de abr. de 2011

Maneirismo: O termo e o conceito

O Maneirismo foi uma lúcida e deliberada rebelião contra o legado racionalista do Renascimento.
                                                              (Vítor Serrão )


Proveniente da palavra italiana maniera, o termo Maneirismo passou a ser usado na terminologia dos críticos e historiadores da arte italianos da segunda metade do século XVI, com o sentido de estilo que lhe fora atribuído por Giorgio Vasari, em 1550. Para este, ter a maniera era ter um estilo próprio, individualizado, era ser dotado de uma personalidade artística particularizada. 
Nos finais do século XVII, G. P. Bellori, crítico italiano, atribuiu ao termo maniera o sentido de mera habilidade técnica, despojada de talento artístico e voltada para a imitação servil dos grandes mestres da pintura. Esse novo e depreciativo significado rapidamente ganhou terreno, estendendo-se aos derivados estrangeiros de maniera, como maneirista e maneirismo. 
Ao longo de dois séculos, a partir daquela época, o termo Maneirismo tornou-se uma espécie de sinônimo de exagerada afetação, de excessiva artificialidade e extremado requinte, adquirindo, assim, uma conotação altamente pejorativa, da qual derivou a formulação e a divulgação do equivocado conceito de Maneirismo, que o considerava um estilo de qualidade discutível, um testemunho da aflitiva decadência a que chegara a expressão artística pós-renascentista. 
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, historiadores e críticos da arte italianos deram continuidade às idéias dos seus antecessores seiscentistas. Na avaliação destes estudiosos da arte, após a grandeza e o caráter de excepcionalidade do período que ocupou as duas primeiras décadas do século XVI, no qual sobressaíram os mais notáveis mestres das artes plásticas, principalmente na Itália, estas penetraram numa zona de obscuridade, de autêntica crise de talentos artísticos. 
O ano de 1520, data da morte de Rafael, passou a balizar o final do Renascimento italiano, e o ano de 1620, que assinala o aparecimento de Rubens no cenário artístico, como marco inicial do período Barroco na Itália. O lapso de tempo, correspondente a cem anos, que separa estas duas datas, era relegado ao desprezo e considerado uma espécie de limbo artístico povoado por poucas figuras de reconhecido valor, como Tintoreto, Miguel Ângelo, El Greco, Bruëghel e outros. 
Os artistas italianos que pintavam empenhados na imitação “à maneira” de Rafael ou de Miguel Ângelo eram rotulados desdenhosamente de maneiristas, ou seja, discípulos retardatários e subservientes destes dois grandes mestres, e cujos trabalhos eram considerados de qualidade duvidosa e, portanto, inferior. Esta interpretação prevaleceu até finais da segunda década do século XX, quando historiadores da arte germânicos resgataram os cem anos de arte maneirista injustamente banidos da história da arte, ao longo de três séculos. 
Max Dvorák foi o primeiro historiador a conferir ao Maneirismo um conceito significativo e a comprovar que este não teria sido apenas mais uma escola italiana, e sim um movimento de dimensão européia, no qual estariam inseridos artistas e escritores célebres de diversas nacionalidades. O termo Maneirismo passou, desde então, a revestir uma conotação positiva e a dar nome ao estilo arquitetônico, artístico e literário situado entre o Renascimento e o Barroco. 
Vale salientar que, enquanto no âmbito da história da arte, o conceito de Maneirismo foi legitimado desde os finais da segunda década do século XX, nos domínios da história geral da literatura, ele levou bem mais tempo para ser reconhecido e acatado. Somente em 1948, com a publicação da obra de Robert Ernst Curtius, Literatura européia e Idade Média latina, o conceito de Maneirismo foi inserido no esquema estilístico e periodológico desta mesma história. 
Depois dessa obra, outras foram publicadas em vários países europeus onde o Maneirismo vicejou, constituindo nos dias atuais uma vasta bibliografia sobre o assunto, mais concentrada, no entanto, na área específica das artes que na da literatura, ainda carente de estudos mais diversificados e aprofundados acerca de obras de autores maneiristas. 
Em Portugal, por exemplo, os estudos de Jorge de Sena, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva e, mais recentemente, o de Maria Isabel de Almeida, constituem, praticamente, as únicas fontes de consulta sobre o assunto. 
No âmbito dos manuais de história da literatura, com exceção das edições mais recentes da História da literatura portuguesa, de António José Saraiva e Oscar Lopes, a maioria dos autores portugueses e brasileiros continua silenciando sobre o Maneirismo. Todavia, malgrado as desconfianças e protestos de alguns e a indiferença de outros tantos em relação ao conceito de Maneirismo, este sobrevive espantosamente bem na terminologia da arte e da literatura. 
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Zenóbia Collares Moreira. A poesia Maneirista Portuguesa. Natal: EDUFRN-Editora da UFRN, Parte I, p. 13/14. 1999.

Imagem: Desenho do pintor maneirista português Fernão Gomes, que retrata Camões no ano de 1570. Pertencente ao acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.

Maneirismo, Renascimento e Barroco: Relações.





Só uma época que tivesse experimentado a tensão entre a beleza e a expressão como seu próprio problema vital, podia postar justiça ao Maneirismo e à verdadeira natureza de sua individualidade em contraste com o Renascimento e o Barroco.
                                                                             Arnold Hauser 


O Maneirismo tem a sua gênese em um processo de transformação e de recriação verificado no âmbito das formas e temas da tradição clássico-renascentista que denunciam a sua radical oposição e transgressividade em relação ao cânone estético do Renascimento. 
Desprezando quase todos os legados da herança greco-latina cultuados à exaustão pelos humanistas ao longo do período renascentista, os maneiristas buscaram eliminar o hiato que o Renascimento estabelecera com a Idade Média, mercê do restabelecimento e da inclusão em sua poética de elementos estéticos da tradição medieval, inclusive da poesia lírica do poeta italiano Francesco Petrarca. 
Enquanto nos domínios das artes plásticas, a iconografia renascentista voltava-se equilibradamente tanto para os temas religiosos, quanto para os temas profanos, inclusive os mitológicos, nos domínios exclusivos da literatura, a religiosidade cristã não constituía assunto poético. O fascínio pelos temas profanos e mitológicos provocou o seu alastramento nos domínios da poesia, o amor passou a ser tematizado em termos sensuais e eróticos com uma liberdade sem precedentes. O humano sobrepunha-se ao divino, o esforço era no sentido de exalçar e valorizar a dignidade do espírito humano, conforme a lição do Humanismo. 
É oportuno lembrar que o Humanismo, uma das vigas mestras do Renascimento, radica na redescoberta do conjunto de elementos constitutivos da cultura da Antigüidade greco-latina (literatura, artes, história, ciência, filosofia, etc.), através de uma nova forma de estudá-los, livre dos fundamentos da escolástica, com o objetivo de resgatar o genuíno pensamento dos antigos, seus valores éticos, filosóficos, pedagógicos e estéticos cujos fundamentos se assentam na extrema valorização do homem e das suas obras. 
Os humanistas do Renascimento, em seu apaixonado culto à Antigüidade greco-latina, não se contentavam somente em reverenciá-la. Deslumbrados com o esplendor da cultura, da arte e da filosofia dos antigos, eles não mediam esforços em copiá-los, imitá-los, seguí-los pari passu, adotando artisticamente as suas modas, os seus exemplos, os seus modelos e a sua linguagem. 
Os maneiristas tomaram atitude absolutamente oposta à dos seus antecessores renascentistas perante a mesma herança e os valores humanistas do Renascimento. Assim, se nos domínios das artes plásticas maneiristas os temas religiosos, embora bem mais privilegiados na escolha dos artistas, passaram a conviver pacificamente com os profanos, o mesmo não se verificou nos domínios da literatura. Esta assumiu os rigores do ascetismo, no qual radicavam não apenas a prática de uma poesia voltada para assuntos morais e religiosos como o crescente desprestígio da poesia dedicada a assuntos profanos, principalmente a partir das duas últimas décadas do século XVI, quando a religiosidade exacerbada dos poetas passou a fazer da poesia um ato de fé, de contrição, de exaltação a Deus e de celebração ao amor divino. 
A tematização do amor humano, mesmo nos moldes neoplatônicos, foi combatida e evitada na mesma medida em que os temas mitológicos. O próprio petrarquismo, que tanto apaixonara a primeira geração de poetas maneiristas, passou a ser execrado e lançado ao ostracismo. 





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A compreensão precisa desta mudança, tão radical, exige que se examinem atentamente as diferentes condições históricas em que se instauraram ambos os estilos de época. 
O Renascimento originou-se do entusiasmo dos humanistas pela descoberta de um tesouro artístico e cultural até então desconhecido, que, em razão de sua excelência, renovaria e elevaria a arte em geral ao mais alto nível de qualidade que a liberdade e o requinte artísticos admitem, enquanto o Maneirismo emergiu dos escombros do mundo renascentista, da tristeza, do espanto e da insegurança gerados pela devastadora intolerância religiosa e pela crise sócio-política da época. Não há, portanto, entre Renascimento e Maneirismo senão antinomias, porquanto os traços definidores do estilo renascentista, o sistema de valores ideológicos que enformavam a atitude dos escritores desse período perante o homem e o mundo eram praticamente o reverso dos encontrados no estilo maneirista. Todos os valores existenciais positivos, a perspectiva otimista nas potencialidades do homem, a conciliação entre as coisas do corpo e as do espírito, a revivescência da herança clássica resgatada pelos humanistas, tão tipicamente renascentistas, desapareceram completamente no período maneirista. 
Não seria, portanto, fora de propósito considerar o Maneirismo “a estética do humanismo angustiado, do humanismo agônico”, de que fala José Guilherme Merquior, posto que a experiência fundamental do Maneirismo foi, sem dúvida, o dilaceramento, a cisão íntima entre o desejo de fidelidade ao utopismo do ideal clássico-heróico forjado na Alta Renascença e a sensibilidade a um mundo que negava cada vez mais brutalmente o nobre idealismo da paidéia humanista”.[i]
Uma das conseqüências do processo de mudança levado à prática pela estética maneirista foi a revivescência de um lirismo que o Classicismo renascentista inibira, rejeitara e entravara por força do próprio racionalismo e da contenção da subjetividade que lhes eram adstritos, ambos subjacentes às normas estabelecidas para a expressão poética. 
Além da ressurgência desse lirismo, tão praticado na poesia medieval portuguesa, também observam-se outras alterações nos domínios da expressão poética, como uma abertura sem restrições à exteriorização espontânea dos sentimentos e emoções sob a égide do subjetivismo individualista. Há ainda que referir à valorização da tradição poética medieval, na qual se inclui e se destaca a lírica de Petrarca, ambas bem representadas na lírica de Camões e de poetas seus contemporâneos que compuseram as suas obras na fase inicial da história do Maneirismo, quando ainda era possível a prática de uma poesia dimanada do encantamento dos poetas com as concepções do amor hauridas do neoplatonismo. 
Efetivamente, é no fecundo terreno dos princípios neoplatônicos que se estabelecem as bases filosóficas do Maneirismo, daí “a presença, em vários poetas maneiristas, de um persistente neoplatonismo, que, aliado ao catolicismo rigorista e penitencial, reforça e difunde a idéia do mundo e da vida terrena como efemeridade, sonho, fumo e sombra”.[ii]
O pessimismo, juntamente com a melancolia e a angústia existencial, constituem o tripé que sustenta o lado sombrio da visão do homem e da vida dos maneiristas. O pessimismo está em conexão com a crise do Renascimento e do Humanismo, ponto de partida para o esvaimento da atitude otimista e positiva perante o homem e o mundo que prevalecera no período renascentista, como já foi mencionado. 
O quadro geral da poesia da segunda metade do século XVI está bem distanciado do protótipo renascentista; em nada se assemelhando aos modelos oferecidos pela tradição clássica, resgatados pelos humanistas italianos, dos quais assimilaram a lição otimista da fé no homem, na vida e no mundo. Ao contrário disso, o que ressalta na poesia da segunda metade da centúria, principalmente nas suas derradeiras décadas e prolongando-se até ao eclipse do Maneirismo, é a expressão de uma imagem do homem e do mundo tenebrosamente deformada pelo pessimismo, pela tendência a encarar tudo e todos pelo lado negativo, que acentua, de modo dramático, a efemeridade da vida, a incoerência e o conflito presentes no mundo e no homem, o que assinala um decisivo distanciamento em relação aos pressupostos do cânone clássico-renascentista. 
O problema das divergências entre o Maneirismo e o Barroco se equaciona de maneira mais pacífica. Apesar de cada qual preservar a sua individualidade estética e as diferenças dela decorrentes, não chega a haver oposição entre ambos os estilos vizinhos, observando-se, inclusive, que muitos elementos temáticos e estilísticos próprio do estilo maneirista transitaram para o Barroco, quando da passagem de um estilo para o outro. Todavia, tais elementos, ao se transferirem para o novo estilo, não conservaram as mesmas significações que lhes eram atribuídas quando integrados no estilo maneirista, significando, assim, que a realidade que buscam comunicar já não é a mesma. 
A propósito das relações entre os três estilos de época, é oportuno chamar a atenção para a estranha forma de aproximação e de distanciamento que o Maneirismo e o Barroco estabelecem com o Renascimento, na medida em que se apropriam de temas e formas exclusivas do estilo renascentistas, que, como bem observa Aguiar e Silva, “intensificam, distorcem, transformam e recriam, de acordo com a visão diferente do homem e do mundo”, em consonância com seus particularizados princípios estéticos, “até chegarem à oposição ou à contradição com o estilo renascentista. E é nessa medida que se afirmam e se definem como estilos de época irredutíveis ao sistema de normas e padrões temáticos e formais do Renascimento”.[iii] Isto quer dizer que ambos os estilos epocais, apesar de instaurados em momentos e por motivações distintos, se afirmam como respostas diferentes, mas igualmente opostas, ao sistema de normas e padrões do Renascimento. 
Comentando as relações entre e Barroco e o Maneirismo, escreve Maria Lucília Gonçalves Pires que o primeiro, em certos aspectos temáticos e estilísticos, dá continuidade ao segundo, mas que dele “se distingue por essenciais diferenças de atitude perante o mundo e perante a literatura”.[iv] Por sua vez, Emílio Orozco Diaz entende que, se o poeta maneirista utiliza os elementos, temas e formas do Classicismo, de acordo com uma nova concepção estética que contraria o espírito de equilíbrio, de serenidade e de harmonia, próprio do Renascimento, “não será estranho que o Barroco faça a mesma utilização das formas, temas e motivos dessa tradição clássica, somada à persistência de todas as complicações e artifícios introduzidos pelo Maneirismo”.[v]
No âmbito da história da arte, como já foi dito, são muitos os autores que abordam o Maneirismo em suas obras; todavia, alguns dentre eles, além de não o definirem com clareza e precisão, ainda discrepam em relação a muitos dos seus aspectos. Arnold Hauser, por exemplo, critica, principalmente, a tese sustentada por Robert Ernst Curtius que considera o Maneirismo uma “manifestação de um elemento permanente no espírito ocidental e, em suma, que é uma possibilidade independente do tempo”.[vi]
Esse ponto de vista de Curtius, acatado por outros estudiosos do assunto, vê o processo histórico como um fenômeno que se repete ciclicamente, retomando no presente o que já ocorreu no passado, de forma regular. Tal concepção é tão pouco provável quanto a que vê no Maneirismo um mero período de transição entre o Renascimento e o Barroco, com a função fazer a ponte entre os dois estilos de época. 
Surgido no seio de um Renascimento moribundo, rompendo com as normas e padrões do Classicismo renascentista, o Maneirismo impôs-se como estilo autônomo, dotado de fisionomia própria, não podendo, portanto, ser considerado um mero processo de transição do Renascimento para o Barroco, da mesma forma que, em virtude da peculiaridade dos seus traços definidores, não se confunde com nenhum desses estilos vizinhos. 
É, portanto, de suma importância que fique bem clarificada a questão não apenas da oposição do Maneirismo ao Renascimento, mas antes e principalmente a legitimidade do seu conceito e o reconhecimento de sua autonomia como unidade estilístico-periodológica integrada no esquema da periodização da história literária portuguesa.
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NOTAS
i] José Guilherme Merquior, “Os estilos históricos na literatura ocidental”, in: Teoria Literária, p. 46.
[ii] Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, p. 312.
[iii] Id. Ibid., pp. 469-470.
[iv] Maria Lucília Gonçalves Pires. Poetas do período barroco, pp.15-16.
[v] Emilio Orozco Diaz. Maneirismo Y barroco, p. 174.
[vi] Robert Ernst Curtius, op. cit., p. 281.


Zenóbia Collares Moreira. A poesia Maneirista Portuguesa. Natal: EDUFRN, 1º Edição, p. 15-19, 1999.


Imagem na postagem: Santa Maria Madalena. Óleo do pintor maneirista Venegas.