12 de out. de 2012

O Barroco Português no Feminino- Parte I


Não temos profissão das Sciências, nem a obrigação de sermos sábias, mas também não fizemos voto de sermos ignorantes. 
Tereza Margarida da Silva e Orta. 

Podemos dizer que a afirmação do Barroco português, nos finais da segunda década do século XVII  assinalou também a abertura de um espaço triunfante para a escrita feminina no cenário literário lusitano, no qual algumas mulheres escritoras notabilizaram-se pelas obras que produziram. 
Após dois séculos em que a participação da mulher na literatura portuguesa havia sido reduzidíssima e praticamente insignificante, deu-se a irrupção de excepcionais talentos literários femininos, principalmente no terreno fecundo da poesia, no qual quase todas se projetaram. Além das poetisas religiosas Violante do Céu, Maria do Céu, Magdalena da Glória, revelaram-se, fora dos muros conventuais, poetisas do quilate de Bernarda Correia de Lacerda, Maria de Lara e Meneses, além de outras escritoras, como Mariana Alcoforado e Antónia Margarida Castelo Branco, que abrilhantaram o período barroco com a qualidade das suas obras nas áreas da epistolografia, da prosa autobiografica. 
As poetisas surgidas ao longo do período barroco, por meio da obra que produziram, comprovaram e justificaram o sucesso que alcançaram em uma época na qual a poesia era “concebida como arte da palavra, criação de beleza verbal, jogo segundo técnicas complexas visando à exibição do engenho do poeta e o deslumbramento do leitor.” [1] Tratava-se, portanto, de uma prática poética que exigia muito da inteligência e da habilidade dos poetas. [2]


A POESIA BARROCA FORA DO CLÁUSTRO.

Fora dos claustros doa conventos, com suas bibliotecas e acesso ao saber, poucas mulheres recebiam uma instrução que lhes permitisse ir além de ler mal e escrever pior ainda. Somente as meninas nascidas em famílias abastadas ou pertencentes à aristocracia tinham acesso aos livros e ao aprimoramento de suas capacidades intelectuais. Essa realidade explica a rara aparição na cena literária de escritoras vindas das camadas sociais economicamente menos privilegiadas. Para estas, a via de acesso ao saber e à cultura teria que ser buscada nos claustros de alguma ordem religiosa. 
Vale acentuar que tal situação não é exclusiva do período barroco; ela pode ser observada ao longo dos períodos literários, desde o século XV, ou seja, desde a entrada da mulher na literatura, através de D. Filipa de Almada. Foi, portanto, nos salões do palácio real que as mulheres fizeram a sua estréia na poesia, na literatura do país. 
Dentre as poetisas religiosas que se destacaram na cena literária fora dos conventos, figuram os nomes de Bernarda Ferreira de Lacerda, Maria de Lara e Meneses e Feliciana de Milão, todas três muito celebradas em sua época e freqüentadoras da corte. 
__________________________________________

[1] Maria Lucília G. Pires, Op. cit., p. 31. 
[2] Nem toda a poesia barroca é arte para deleite do intelecto, pois, contrastando com esta, coexistia uma versalhada satírica, jocosa, que visava ao entretenimento, à ludicidade, tal como fora praticada por grande parte dos poetas do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Muitas dessas composições, segundo informa Oscar Lopes, surgiram em “concursos e outros passatempos das academias, em outeiros ou torneios poéticos realizados junto de conventos femininos, e conseqüentes amores freiráticos, que aliás constituem um dos predilectos objectos de sátira desbocada.



A Poesia Fora do Cláustro. PARTE II



Ai! Melindrosa flor agonizada,
Despojado Jasmim de qualquer vento,
Que quando pasce traz na mesma alvura
Gala, mortalha, berço, e sepultura.
(D. Maria de Lara e Meneses)

Fora dos claustros doa conventos, com suas bibliotecas e acesso ao saber, poucas mulheres recebiam uma instrução que lhes permitisse ir além de ler mal e escrever pior ainda. Somente as meninas nascidas em famílias abastadas ou pertencentes à aristocracia tinham acesso aos livros e ao aprimoramento de suas capacidades intelectuais. Essa realidade explica a rara aparição na cena literária de escritoras vindas das camadas sociais economicamente menos privilegiadas. Para estas, a via de acesso ao saber e à cultura teria que ser buscada nos claustros de alguma ordem religiosa. Vale acentuar que tal situação não é exclusiva do período barroco; ela pode ser observada ao longo dos períodos literários, desde o século XV, ou seja, desde a entrada da mulher na literatura, através de D. Filipa de Almada. Foi, portanto, nos salões do palácio real que as mulheres fizeram a sua estréia na poesia, na literatura do país.
Dentre as poetisas religiosas que se destacaram na cena literária fora dos conventos, figuram os nomes de Bernarda Ferreira de Lacerda, Maria de Lara e Meneses e Feliciana de Milão, todas três muito celebradas em sua época e freqüentadoras da corte.

BERNARDA FERREIRA DE LACERDA
(1595 – 1644)

Viver, por merecer mais,
N´este sagrado deserto,
D´onde o céu tendes tão perto,
Quão longe da terra estais.

Nascida no Porto, em 1600, Bernarda Ferreira de Lacerda pertencia a uma família aristocrática, sendo filha do Dr. Inácio Ferreira Leitão, chanceler-mor do reino. Muito religiosa, a poetisa pretendia ingressar no convento, porém desistiu de professar para atender ao pedido do seu pai para que se casasse com Fernão Corrêa de Sousa, de quem ficou viúva oito anos após o casamento, com seis filhos pequenos. Pelo conjunto das suas qualidades literárias, pelos seus dotes intelectuais, Bernarda Ferreira de Lacerda gozou de grande prestígio em sua época, tornando-se célebre em Portugal e em outros países europeus. A maior parte de sua obra foi escrita em língua espanhola, conforme o uso generalizado entre os escritores portugueses de seu tempo. É autora consagrada do longo poema épico Espanha libertada e do livro de poesias líricas Saudades de Bussaco, as duas principais obras que escreveu, revelando grande habilidade e desenvoltura tanto no gênero épico quanto no lírico.
Depois de uma curta e atormentada vida, Bernarda Ferreira de Lacerda morreu em 1º de outubro de 1645, aos 45 anos de idade, nos braços de sua filha. Ela mesma expõe a dolorosa vida que suportou, numa das estrofes do seu poema Saudades de Bussaco:

Ali nos crespos troncos
Com lágrimas suaves
A minha escreverei trágica vida.
Ali no mar os roncos,
A música das aves,
O murmurar das fontes, que convida
A amorosa saudade,
Roubarão para o céu minha vontade.

As Saudades do Bussaco, segundo a autora, tiveram a sua gênese por ocasião de um passeio que ela fez ao Bussaco, atraída pela fama do lugar serrano, afastado da cidade, dotado de uma estupenda paisagem. A extraordinária beleza região fascinou-a e, seduzida pela atmosfera mágica daquele espaço privilegiado, a poetisa não conseguia aceitar a idéia de abandoná-lo, como confessa nas estrofes do poema:

Oh! Se minha ventura,
Eliano deserto,
Tão desejado bem me concedera,
Que na densa espessura
Do teu céu encoberto
Em ócio branco e doce paz vivera,
Gozando de um retiro
Por quem suspiros dou, e em vão suspiro;

Que ufana, que contente
De tudo me apartara
Por chegar a gozar tal paraíso,
Onde, do mundo ausente
Segura sempre andaria,
Dando ao bosque alegria, aos campos riso,
Livre de sobressaltos,
Porém não livre o céu de meus assaltos!

Quem de pombas tivera
As asas voadoras,
Que sobre teus penedos subira!
Quem n´elles estivera,
Não momentos, mas horas,
Não horas só, mas annos, sem que vira
Fim a tão feliz sorte,
Senão com o da Parca mortal corte!

Os altos medronheiros,
Que com corado fructo,
Estão seus verdes ramos inclinando
Por cima dos outeiros,
Me dariam tributo
Para que fosse a vida sustentando,
O que hervas ajudaram,
Quando fructas agrestes me faltaram.

As fontes crystalinas,
Que rindo se despenham
Por entre musgo pardo e grama verde,
Abrindo ricas minas
De prata com que despenham
A quem ganhando alento sede perde,
De néctar excelente
Me dariam docíssima corrente.

As frescas espadarias,
Que os lírios se cobrem,
Me puderam servir de branco estrado,
E as relvas que ufanas
Mil boninas encobrem,
De livro, onde vive deixado
Do autor da Natureza
A providência, amor, graça e beleza.

O poema Saudades do Bussaco é formado por um conjunto de quadros esplêndidos, nascidos do encantamento da poetisa pela formosura que brota de cada elemento da paisagem, de cada recanto, tudo captado por seu delicado sentimento, pela sedução que exerce sobre a sua sensibilidade a aquarela de cores, os aromas das flores e das ervas, os sons das aves e das fontes cristalinas que despencam pela serra. As descrições da autora se sucedem em cascata, numa tentativa reiterada de retratar tudo quanto naquele recanto isolado a deixa maravilhada. Todavia ela sabe que só com a sensibilidade, com o sentimento estético da natureza tudo aquilo pode ser percebido:

Retratar-vos intentei,
Ó deserto peregrino;
Porém, como sois divino,
Em vão mil linhas lancei.
Confesso enfim que não sei
Juntar vossa formosura.
E assim por mais que procura
Meu amoroso desejo,
Das perfeições que em vós vejo,
Difere muito a pintura
Se em graça sois sem igual,

E mora em vós sempre a Graça,
Quem haverá que vos faça
Um retrato natural?
Quis mostrar, como em cristal,
N´este debuxo, a riqueza
Que encerra vossa pobreza;
Porém nada tenho dito
Pois nem as sombras imito
De vossa rara beleza.

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A Poesia Fora do Cláustro= PARTE III







MARIA DE LARA E MENESES 
(1610 – 1649) 

Este pesar sentiste em teus amores, 
Que não posso dizer, que neste emprego 
Estavas, linda Ignez, posta em sossego. 
Maria de Lara Resende 

D. Maria de Lara e Meneses foi casada com o Infante D. Duarte, irmão de D. João I. Nascida de pais pertencentes à nobreza de sangue, recebeu uma esmerada instrução na área da cultura humanística. Escreveu várias obras de caráter moralizante e de poesias. Seu livro Saudades de Donna Ignez de Castro, escrito em duas partes, com 140 estrofes em oitava rima, foi publicado várias vezes entre 1732 e 1824, além de correr manuscrito em várias coletâneas. Em alguns casos o poema leva também o título de Sentimentos de D. Pedro e de Dona Ignes de Castro, ou ainda Suspiros de D. Inês de Castro e Sentidas queyxas do Princepe D. Pedro. O mesmo volume inclui ainda poesias de sua autoria reunidas sob o título de Obras de sentimento. 
O poema Saudades de Donna Ignez de Castro foi o que teve mais ampla divulgação dentre os produzidos por poetas do período barroco. Claramente inspirado no texto de Camões, tanto na forma, em oitava rima, como na intertextualização que faz dos versos do episódio inesiano, em Os Lusíadas: “Estava, linda Ignez, posta em sossego” e “Aconteceu da mísera e mesquinha, / Que depois de ser morta foi Rainha;” estes dois últimos usados para encerrar o poema, com chave de ouro. 
O texto de D. Maria de Lara Resende Saudades de Donna Ignez de Castro avulta como um poema tipicamente lusitano, seja pelo olhar que lança sobre o texto camoniano, cuja seiva o alimenta, da mesma forma como ainda hoje nutre o imaginário dos poetas e ficcionistas portugueses; seja pela invocação, logo no título, do sentimentos expresso pela palavra mais lusitana: saudade. Acrescente-se a isto o modo sui generis como a autora desenvolveu o tema inesiano, imprimindo em seu texto todas as possíveis nuanças e peculiaridades dos sentimentos do par amoroso, através de extensas falas concedidas não apenas a Inês como também a Pedro. Nesse aspecto, o poema de D. Maria de Lara e Menezes é inovador, na medida em que arrasta Pedro do silêncio que lhe é imposto no episódio de Os Lusíadas e em obras de outros autores que a precederam, dando voz ao príncipe e, assim, permitindo que, em dueto com a desditosa amante, expresse também os seus sentimentos. O poema é também inovador por não se deter na questão do assassinato de Inês. Todo o pathos amoroso dos amantes organiza-se em torno da saudade, motivada pela partida de Pedro (“Forçosa foy de Pedro a dura ausência. / Esta ausência cruel, forçosa, urgente”) nos dias que antecedem a morte de Inês, saudade que perdura no príncipe após a trágica morte da amada. 
A dor da separação, o sofrimento causado pela ausência e o gosto amargo da solidão constituem a espinha dorsal do discurso do desditoso casal. Vazado em linguagem própria do estilo barroco, nele se sucedem as metáforas transfiguradoras da realidade quotidiana, gerando esplêndidas metamorfoses. A habilidade com que a poetisa maneja a linguagem culta sem cair nos exageros do gongorismo, o uso equilibrado de figuras retóricas, como a hipérbole e a antítese, o domínio que revela no uso de elementos estilísticos como a enumeração e a bimembração, a forma como articula os jogos de palavras e de idéias justificam os louvores em torno do seu fazer poético e a fama que logrou alcançar entre os seus contemporâneos. à guisa de demonstração, segue-se a primeira parte do longo poema:

SAUDADES DE DONNA IGNEZ DE CASTRO
Era na meia idade, a que chegava 
Em fraguas de safir o Sol, que ardia, 
E nas asas do tempo, que passava, 

Icario de seus rayos era o dia: 
Quando pois cõ as chãmas se abrasava, 
Que morrer incendido então queria, 
Sendo por renascer com novo alarde, 
Em cinzas de rubim Fénix da tarde. 

II 
Na lisonjeira planta se enlaçava 
Cortez o vento com gentil porfia, 
E nos jardins a Rosa, que encalmava, 
Em berços de esmeralda adormecia: 
A simples avesinha se banhava 
No murmúrio correr da fonte fria, 
Renovando na vista o doce alento, 
Narciso nos cristais, Orfeo no vento. 

III 
Mas Ignez só, que por penar vivia, 
Naufragava em soluços cada instante, 
Ignez, aquela Ignez, que amor fazia 
Por lhe dobrar as mágoas mais constante: 
Aquela, em cujas graças competia 
Ser formosa, discreta, e ser amante, 
Em cujas prendas não tiveram parte 
Artifícios da indústria, invenções da arte. 

IV 
A que nos dotes da alma tão possante, 
Discreta, grave, terna, e generosa: 
Tinha por menor prenda o ser formosa: 
Nos donaires do talhe tão galante 
Nos alinhos da graça tão vistosa, 
Que topando na culpa do Narciso, 
Fora sem culpa seu discreto aviso.

Mas qual passarinho descuidado, 
Lisonja mais gentil da tenra idade, 
Foi das mãos do menino aprisionado, 
Que lhe roubou no laço a liberdade: 
Que quando dele mais galanteado, 
Exp´rimenta no mimo a crueldade: 
E quando a cor das penas lhe contenta, 
Nas que lhe tira, mais lhas acrescenta. 

VI 
Tal Ignez na manhã dos ternos anos, 
Nas primeiras Auroras da esperança, 
Deu nos laços de amor doces enganos, 
Do vendado rapaz linda vingança; 
Mas os golpes da Parca desumanos 
A beleza por flor em flor alcança. 
Exp´rimentou na sempre amarga sorte 
Por mãos do Deus do amor armas da morte.

VII 
Eram gentil emprego a seus cuidados 
As finezas de Pedro, que a beldade 
Nele soube trazer aprisionados 
O ceptro, coroa, vida, e liberdade: 
Entre ambos tinham amor já tão ligados 
Os soltos alvedrios da vontade, 
Que foi neles baldado, e foi partido 
Nascer Anteros por crescer Cupido. 

VIII 
Mas oh tirana dor amor inventa! 
Forçosa foi de Pedro a dura ausência, 
Atropos da alma, que da pena isenta 
Nela sabe sentir mortal violência: 
Como preso, partir-se Pedro intenta, 
E sente na alma, Ignez, nova inclemência; 
Que quer a sorte, pois amor ordena; 
Onde não chega a morte, ofenda a pena. 

IX 
Quantas vezes, Ignez, no pensamento 
Este desar notastes a teus favores? 
Quantas vezes, Ignez, na mão do vento, 
Os viste, e vês agora, e verás flores: 
Tanto nas afeições, gosto avarento, 
Este pesar sentiste em teus amores, 
Que não posso dizer, que neste emprego 
Estavas, linda Ignez, posta em sossego. 

Entre os braços de Pedro, ardente fragoa 
Se encosta Ignez sem vida, e sem sentido, 
Que multiplica a dor, e dobra a mágoa 
Lograr presente o bem, que he já perdido: 
Dos olhos solta dois chuveiros de ágoa, 
Oceanos de neve; onde Cupido 
Quis da beleza já colhendo as velas, 
Chegasse a tempestade até as estrelas. 

XI 
Qual em berços de púrpura vistosa, 
Delícias de manhã, da tarde empresa, 
Dos melindres de flor enferma a Rosa, 
Desmaiado o verdor, murcha a lindeza; 
Pois a que foi de Abril pompa lustrosa, 
Livro do amor, emblema da beleza, 
Perde a graça, por ver que o Sol lhe talha 
Do mesmo carmesim gala, e mortalha. 

XII 
Tal do fogo de amor na imensa calma 
A cor Ignez perdeu, que amor ordena, 
Os desmaios, que tinha impressos na alma, 
Trasladasse no rosto a viva pena: 
Já despojo da dor, da mágoa palma, 
Com respirar de flor, arde Açucena, 
Exala nova dor ao pensamento, 
Em saudosos ais o doce alento. 

XIII 
Ai! Caduco prazer, diz lastimada, 
Esperança de um bem, doce tormento, 
Ai! Que por verde murchas apressada, 
Primavera do amor, da dor portento: 
Ai! Melindrosa flor agonizada, 
Despojado Jasmim de qualquer vento, 
Que quando pasce traz na mesma alvura 
Gala, mortalha, berço, e sepultura. 

XIV 
Ai! Que chegas, oh dia! Em que amor tira 
Duas almas de um peito, oh noite fria! 
Oh noite, digo, porque a quem suspira, 
Foge a luz, morre o Sol, acaba o dia: 
A boca, de que um ai, outro ai, retira. 
Parai, Senhor; mas um soluço ardente, 
Sufoca o par, repete o ai somente. 

XV 
Parai, torna a dizer, meu gosto amado 
Glória desta alma, enquanto glória tinha; 
Mas ai alívio meu! Ai meu cuidado! 
Como podeis parar, se glória minha! 
Mas se destina o Céu, e manda o Fado 
Esta alma castigar, que amor mantinha, 
Deixai-me a vossa, porque a sorte ordene, 
Mais almas tenha, porque assim mais pene. 

XVI 
Mas não, que he contra amor esta porfia: 
Mas não, que deixo amor nisto agravado; 
Muitas almas não quero, que seria 
Repartir o tormento a meu cuidado: 
Mas se a pena permite a companhia 
Nesta ausência cruel, o triste Fado! 
Antes que a dor ma roube da partida, 
Levai-me, vida minha, a minha vida. 

XVII 
Só com vosco, Senhor, irá segura, 
Sem que mortal achaque lhe aconteça; 
Porque talvez do Fado a sorte dura 
Fora deste meu peito a desconheça: 
Nem poderá temer minha ventura, 
Que sombra de pesar vos entristeça; 
Pois farei no tormento mais esquivo 
Correr por conta da alma o sensitivo.

XVIII 
Se só para viver na lei de amante 
Forçosa seja a vida repetida; 
Ai! Senhor, que não pode ser bastante 
Para viver ausente uma só vida: 
Porém se amor de vidas tão possante, 
Uma nos deu para ambos repartida, 
Posto que a dor entre ambos se acomoda, 
Melhor vos partireis levando-a toda.

XIX 
Cá me fica outra vida, que não passa, 
Com que padeça morte repetida, 
Que quer amor tirano, que renasça 
Uma vida das cinzas de outra vida: 
Que como tão cruéis penas me traça, 
Como me traz em fogo convertida, 
A acabar, outra Fenix, me condena, 
Morrendo em cinzas, renascendo em pena. 

XX 
Ah! quem cuidara, amor, que meus amores 
Fossem fingidas sombras mentirosas? 
Ah! quem cuidara, amor, que em seus favores 
Fossem mais as espinhas do que as Rosas? 
Mas depois, que triunfo a teus ardores, 
Foram de Marte as armas generosas; 
Tão guerreiro ficaste, ufano, e forte, 
Que bem podes matar a própria morte. 

XXII 
Nas remontadas penhas, nas vizinhas 
(Se restar a meus ais penhasco possa) 
vos buscarão, Senhor, lágrimas minhas, 
minhas se pode ser, sendo a alma vossa: 
de meus anos a flor entre as espinhas 
passarei, sem perder esta fé nossa; 
mas antes perderão seu bruto alento 
o mar, o fogo, o ar, a terra, o vento. 

XXIII 
Mas oh! Que he tal a dor de meus retiros, 
E tão firme na lei da tirania, 
Que vendo, que me assistem meus suspiros, 
Talvez deles me roube a companhia: 
Mas inda mais, e mais acerbos tiros 
Contra mim fulminar amor porfia; 
Pois sem dar atenções à minha queixa, 
Por mais só me deixar, sem mim me deixa. 

XXIV 
Qual quando na manhã naufraga o dia 
Nos undosos cristais, que o Céu desata, 
O Jasmim desmaiado se agonia 
Dos achaques da gota, que o maltrata: 
Em desares trocando a galhardia, 
Ícaro já nas águas se retrata, 
O que lisonja foi tão prateada, 
Se no prado jasmim, nas ondas nada. 

XXV 
Tal Ignez já de lágrimas banhada, 
De seus olhos gentis mortais desares, 
Que quis a natureza acautelada 
Que o Ocaso de dois Sóis fossem dois mares. 
Exalava de todo agonizada 
O suspiro final a seus pesares: 
Que com vir entre lágrimas undosas, 
Inda na boca achou maré de rosas. 

XXVI 
Já Pedro enfim rendido a seu cuidado, 
A dor quer disfarçar a seu retiro; 
Que como o coração tem já quebrado, 
Um pedaço lhe traz cada suspiro: 
E como em fim no peito agonizado 
Sente da mortal flecha o novo tiro, 
Notando Ignez no pranto de seu rogo, 
Exala em água, quanto bebe em fogo. 

XXVII 
Não chores, diz, formosa Ignez, agora 
Ficar ausente ser partir comigo, 
Que se es vida minha, que te adora, 
Na alma te levo por viver contigo; 
Não pretendo ausentar-me hoje Senhora, 
Suposto que partir-me enfim prossigo; 
Que se alma trocar amor consente, 
Nem tu só ficas, nem me parto ausente. 

XXIII 
O corpo só se ausenta, a alma não parte, 
Que em fim não vivo de potências suas, 
Que como me alimento só de amar-te, 
Bastam para viver memórias tuas: 
E porque amor nos tiros, que reparte, 
Fulmina contra mim flechas mais cruas, 
Quando a vida me rouba, outra me ordena, 
Que fora em fim matar me a menor pena 

XXIX 
Mas nota, Ignez formosa, esta fineza, 
A fazer impossíveis of´recida, 
Pois que contaminando a natureza, 
Teu mesmo amor me mata, e me dá vida: 
Mas como amor notou nesta belleza 
Os impossíveis só de merecida, 
Quis tomar por razão força infalível. 
Obrar por alcançá-la outro impossível. 

XXX 
Bem vês agora, Ignez, como abrasado 
Nos vivos holocaustos de meu peito, 
Meu coração consagro a teu cuidado 
Em víctimas de lágrimas desfeito: 
Agora alcançarás, como alentado 
Todo me sacrifico a teu respeito, 
Pois chega a consagrar-te em viva calma 
Sangue do coração, relíquias da alma. 

XXXI 
Suceda à Primavera o fresco Estio; 
À serena manhã terde calmosa, 
Seja manso regato, quem foi rio, 
Sejam secas relíquias, quem foi rosa: 
Seja, quem cravo foi, cadáver frio, 
Seja quem foi jasmim, cinza olorosa; 
Seja tudo à mudança enfim sujeito, 
Que amor firme será dentro em meu peito. 

XXXII 
Nessas gentis madeixas da beldade, 
Em cuja luz do sol o sol se nega, 
Onde feito pirata da vontade 
Nas crespas ondas sempre amor navega: 
Nessas, digo, captiva a liberdade 
Em reféns minha fé por fé se entrega: 
Nelas deixo por fim com meus alentos 
Alma. cuidados, vida, e pensamentos. 

XXXIII 
A Deus delicia minha, a Deus cuidado; 
A Deus Senhora, a Deus, que amor consente, 
Que para enfim nas mágoas sepultado, 
Se partir posso de mim mesmo ausente: 
A Deus, que amor nos tinha decretado 
Esta ausência cruel, forçosa, urgente; 
Mas ai! Formosa Ignez, que em vão me queixo, 
A Deus, que enfim me parto, enfim te deixo. 

XXXIV 
Já se remonta Pedro a seus retiros, 
E já de morte em morte Ignez discorre, 
Que como entrega a vida a seus suspiros, 
Quantas vezes suspira, tantas morre: 
O coração sentindo acerbos tiros 
Pelos olhos sangrados em cristais corre, 
Mas oh! Que no sangrar-se em vão se cansa, 
Porque em cada sangria uma alma alcansa. 

XXXV 
Qual na seca vergóntea desfolhada, 
Que despojo restou da tempestade, 
Se lamenta em requebros lastimada 
A casta Rosa posta em soledade; 
Soluça, pasma, e geme agonizada, 
Chora, suspira, anela em crueldade; 
Que seu pesar lhe tem no peito unidos 
Rigores, mágoas, lastimas, gemidos. 

XXXVI 
Tal lastimada chora Ignez saudosa; 
No seu mesmo tormento sepultada, 
Nos desvelos do dia cuidadosa, 
Nos descuidos da noite desvelada: 
Já se queixa em suspiros lastimosa; 
Forma razões dos ais agonizada: 
Que fez para queixar-se em seus retiros, 
Embaixadores da alma seus suspiros. 

LIV 
Mais duro sentimento, mais nocivo 
No ser da alma pedaços vos confesso, 
Pois se levais a parte com que vivo, 
A parte me deixais, com que padeço: 
Que como neste mal por excessivo 
Repartida minha alma reconheço, 
Se levais uma parte não pequena, 
A vida pode ser, mas nunca a pena. 

LVII 
Mas oh! Parai razões, tornai gemidos, 
A dor interpretai, que o peito sente, 
Que talvez em meus ais por repetidos 
Os ecos ouça de quem choro ausente: 
Ai! Doce ausente meu, não dos sentidos, 
Ai! Quem pudera amor ter-vos presente! 
Mas deixai-me falar, talvez que possa 
Ouvir na minha voz ecos da vossa. 

LVIII 
Aqui, meu doce amor, meu bem querido, 
Se me duplica a dor ao pensamento, 
Pois quando em vós me falta meu sentido, 
Não me pode faltar meu sentimento: 
Em vós lamenta a dor meu bem perdido, 
Em mim renova a dor novo tormento; 
Mas creio, doce amor que sentir possa 
Menos a minha dor, que a falta vossa. 

LIX 
Menos dor, menos dano enfim tivera, 
Menos cruel sentira o meu cuidado, 
Quando neste rigor, que padecera, 
Me pudera esquecer do que hei logrado: 
Mas ai! Que nesta dor outra me espera, 
E um mal outro me traz apensionado; 
Pois chego a padecer em meu sentido 
O mal, que passo, o gosto, que hei perdido. 

LX 
Bem conheço, que posso na lembrança 
Vossas prendas lograr, meu doce esposo, 
Mas o bem, que se perde na esperança, 
Fica, quando lembrado, mas penoso: 
Mas nesta triste dor, dura esquivança, 
Se me duplica amor mais rigoroso; 
Pois só quer meu sentido avincular-se, 
Para mais padecer, a mais lembrar-se. 

LXI 
Assim chorava Ignez, e assim gemia, 
Mas oh trágica dor! rara estranheza! 
Que já topa nas mãos da tirania 
Armas sempre mortais contra a beleza: 
Nas mãos de dois tiranos já se via, 
Entre cruéis espadas, tosca empresa! 
Mas que Rosa no campo Aurora molhas, 
A que não falte a vida, e sobrem folhas. 

LXVI 
Oh! Suspendei sentença tão penosa; 
Mitigai por um pouco a crueldade, 
Que não podeis dar morte rigorosa, 
Que possa matar mais que a saudade: 
Mas já que minha dor menos piedosa, 
Vos não pode causar nova piedade, 
Não roubeis meus filhos, tão queridos, 
Única prenda só de meus sentidos. 

LXVII 
Ai! Claras prendas minhas tão queridas; 
Relíquias de amor, da alma pedaços; 
Ai! Como sentireis em mim perdidas 
As mimosas delícias de meus braços: 
Mas pois não pode ser entre homicidas 
Lograr, amores meus, vossos abraços, 
A Deus, ficai-vos, já gostos amados, 
A Deus alma, a Deus vida, a Deus cuidados. 

LXVIII 
Mais quisera falar enternecida, 
Mas oh! Indigna acção de um peito forte! 
Um tirano cruel, torpe homicida, 
Nos fios de um punhal lhe tece a morte: 
Inclina o lácteo colo amortecida, 
Avassalada já da infausta sorte, 
Exala a vida o corpo de alabastro, 
Fenece amor com Donna Ignez de Castro. 

LXIII 
Qual nas tecidas silvas da espessura, 
Labirinto de espinhos intrincado 
Com balidos se queixa da ventura 
O simples cordeirinho aprisionado: 
Já soluça em melindres com ternura 
Das maternas delícias apartado: 
O que mimos achou na branda ervinha, 
Acha mortal rigor em cada espinho. 

LXIV 
Tal lastimada Ignez troca em gemidos, 
Quantas vozes no peito articulava, 
Enquanto ou dois algozes fementidos 
As mãos lhe prendem, com que amor matava: 
O soluçar as vozes lhe embargava: 
Mas oh! Que amor lhe deu no pensamento 
Razões ao pranto, voz ao sentimento. 

LXV 
Ai tiranos cruéis! Oh sorte dura! 
Entre suspiros, diz agonizada, 
Que delicto comete a formosura, 
Com que possa a beleza ser culpada? 
Oh! Deixai-me esta vida em pena escura, 
Se me quereis a morte dilatada; 
Que nesta triste dor tão repetida 
Menos me mata a morte, do que a vida. 

LXIX 
Qual a branca açucena, que cortada, 
Sente do ferro, ou tempo, a crueldade, 
Em seu mesmo candor amortalhada, 
Defunta flor em flor na flor da idade: 
À qual ficam somente de engraçada 
Os antigos rascunhos da beldade: 
Tal fica a bela Ignez amortecida 
Sem gala, luz, sem cor, graça, nem vida. 

(Fim da primeira parte) 

Não foi apenas no manejo do poema épico que D. Maria de Lara Resende foi notável, também na composição de poemas líricos revelou-se dotada de habilidade especial, como pode ser visto em seus sonetos e glosas. 
A poesia constituída por mote e glosa, tão do gosto dos poetas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, tem continuidade no período renascentista, atravessa a circunscrição do Maneirismo e tem uma triunfante continuidade nos domínios do Barroco, como bem documentam as duas Oitavas de D. Maria de Lara Resende. Todavia essa forma poética passou por significativa mudança na lírica do Maneirismo, na qual se tornou comum uma nova modalidade de glosa poética, que consistia em tomar um soneto como mote a ser glosado em quatorze oitavas. Os poetas do período barroco herdaram e cultivaram a nova forma de glosa criada pelos maneiristas sem, contudo, abandonarem o “modelo” consagrado pela tradição medieval. D. Maria de Lara cultivou as duas formas. 
Nas oitavas que se seguem, a poetisa desenvolve as glosas lançando mão da mesma estrutura bimembre e antitética do mote “Não cabe a mesma paz, na mesma guerra”. Esse texto é interessante sob vários aspectos: a linguagem é sem afetação, despida de ornamentos e de aparatos cultistas, resvalando para uma graciosa simplicidade, para uma clareza familiarmente coloquial, não deixando dúvidas de que se trata de uma composição exemplarmente conceptista, bem nos moldes do figurino barroco. 
É oportuno notar que o soneto é quase exclusivamente uma enumeração de coisas impossíveis de serem realizadas porque se opõem às leis naturais. Esse tipo de construção tem uma função hiperbólica, na medida em que representa o mote que serve de tema a ser glosado como mais impossível que todos os impossíveis enumerados. Todavia o mais importante nessa construção é que nela não se pretende apenas fazer referência a acontecimentos cuja realização é impossível; o importante é o fato de nela serem associados conceitos logicamente incompatíveis. 

OITAVAS 
Que fez dirigidas a sua magoa, (...) mostrando quanto perturbado tinha com penas o seu coração sobre que glosou o Mote seguinte: 

Não cabe a mesma paz, na mesma guerra. 


GLOSAS

Não pode ser a chama quente, e fria, 
Na tempestade estar o ar sereno, 
Na noite escura ver-se o claro dia, 
O fogo abrasador sentir-se ameno, 
Achar-se na tristeza a alegria, 
E poder ser mezinha, o que é veneno, 
Não se pode ajuntar o Céu com a terra, 
Não cabe a mesma paz, na mesma guerra. 

II 
Não se acha pelo mar caminho aberto, 
A Lua não se vê nunca constante, 
Nem pode o que é desordem ser concerto, 
Na incerteza achar-se o tempo certo, 
Nem ser um mesmo sábio, e ignorante, 
Ninguém na pátria fica, e se desterra, 
Não cabe a mesma paz, na mesma guerra. 

III 
Não pode ser piedoso, o que é tirano; 
Ninguém em seu tormento, tem sua glória 
Em seu proveito pode achar seu dano, 
E sua destruição sua victória, 
Não mora o desengano, no engano, 
Não é a vida eterna transitória, 
Não sobe o vale nunca, mais que a serra; 
Não cabe a mesma paz, na mesma guerra. 

IV 
Não pode ser prudente o vicioso, 
Solícito, sagaz, o descuidado, 
Nem manso pode ser o furioso, 
Nem pode estar contente o magoado, 
Não é o temerário temeroso, 
Ninguém em um mesmo tempo acerta e erra, 
Não cabe a mesma paz, na mesma guerra. 

O texto que vem a seguir é interessante sob vários aspectos: a linguagem é sem afetação, despida de ornamentos e de aparatos cultistas, resvalando até uma simplicidade, uma clareza familiarmente coloquial, não deixando dúvidas de que se trata de uma composição exemplarmente conceptista, bem nos moldes do figurino barroco, especialmente por estar inserido numa forma de intertextualidade muito difundida na lírica barroca, a que diz respeito à imitação amplificante. 
A notória preferência dos poetas barrocos pela hiperbolização, pelo excesso de elementos decorativos, é concretizado, de vários modos, dentre os quais pode ser apontada a amplificação como figura da intertextualidade. 
Na imitação amplificante o processo intertextual recai na construção da glosa, que deve desenvolver um texto poético de outro autor, em um número de estrofes de oito versos (oitavas) correspondente à quantidade de versos da poesia intertextualizada, devendo vir repetido cada um dos seus versos em lugares fixos das estrofes da glosa, preferencialmente no último verso de cada oitava. É este tipo de composição que D. Maria de Lara desenvolve ao glosar o soneto de Diogo Bernardes, “Horas breves do meu contentamento”: 

OITAVAS 
Que fez dirigidas a sua magoa, (...) mostrando quanto perturbado tinha com pennas o seu coração sobre que glosou o Mote seguinte: 

Horas breves do meu contentamento 

GLOSAS 
Agora que meu mal trouxe a meu dano 
Mil anos se detém um duro inverno, 
Que quem em um só momento acha um ano, 
Um ano lhe parece tempo eterno; 
Assim por castigar meu cego engano, 
Por quem já me não vejo nem governo, 
As horas mudam em anos de tormento, 
Horas breves de meu contentamento. 

II 
O gosto por algum tempo me destes, 
Porque vindo o desgosto mais durasse, 
Que se no falso bem me detivestes, 
Foi por manchar o mal quando chegasse. 
Logo me pareceu quando vistes, 
Que nunca longos anos vos lograsse, 
Mas que só sei agora a pena minha, 
Nunca me pareceu quando vos tinha. 
III 
E como me parecer que vos detinheis; 
O vosso vão sujeito me mostrava, 
Ser tão certa a mudança do que tinheis 
Como a posse do bem que então lograva: 
Cuidei, ó horas breves, quando vinheis, 
Que o tempo por algum tempo vos dava,
Mas nunca presumiu esta alma minha, 
Que vos visse mudadas tão asinha 
IV 
Bem podes em breve tempo conhecer; 
Que por discursos as coisas vais sabendo, 
Que a brevidade oculta do prazer, 
Da vida dele está nascendo; 
Mas como a paixão tira o saber, 
Não pude nesse tempo ir entendendo,
Que vos mudasse o vil contentamento 
Em tão compridos anos de tormento. 
Não julga o vão juízo apaixonado, 
Com segunda razão, alta, e profunda, 
Que quando o fundamento vai errado, 
Errado há-de ficar quanto se funda; 
Assim para ficar mais magoado, 
E porque o erro meu mais se confunda, 
Em vento resolveu meu fundamento, 
As minhas torres, que fundei no vento. 
VI 
Não pode ser contente a esperança, 
Fundada sobre um falso pensamento, 
Porque a constante, e firme segurança 
Procede de ser firme o fundamento: 
Por isso vi tão cedo esta mudança, 
Porque as torres que fiz fundei no vento, 
E como eu no vento as torres tinha, 
O vento mas levou, que mas sustinha. 
VII 
Culpa de meu perverso, e vão sentido. 
Que vendo só mal uma sombra boa, 
Mais estimou o mal pelo vestido, 
Do que estimou o bem pela pessoa: 
Mas posto que me veja hoje perdido,
Em pena que a razão tanto magoa, 
Como buscar o bem só a mim convinha, 
Do mal que me ficou a culpa é minha. 
VIII 
Por culpa só morre, e padece, 
Quem quer que as armas deu a seu amigo, 
Bem mostra que seu mal não aborrece, 
Quem deste mesmo mal o perigo; 
Pois logo se a razão isto conhece, 
Justo tormento foi, justo castigo, 
Que tudo me levasse o leve vento, 
Pois sobre coisas vãs fiz fundamento. 
IX 
Sente o cego amador em seus amores; 
A paga do serviço ser o engano, 
Converterem-se os bens em puras dores, 
Ser o proveito pouco, muito o dano, 
Mentirosas lisonjas os louvores, 
O fim de seu trabalho um desengano, 
Porém nestas verdades que conhece, 
Amor com falsas mostras aparece. 
Tudo o que vê cruel, mostra amoroso; 
Tudo o que é puro, mal finge bem puro, 
Tudo o que certo é, faz duvidoso, 
E tudo o que se vai, dá por seguro; 
Tudo que doce é, diz que é penoso, 
Tudo o que é manifesto, mostra escuro; 
Tudo confunde amor, tudo mistura, 
Tudo possível faz, tudo assegura. 
XI 
Mostra que pode dar contentamentos, 
Aquele que de tais mostras se fia, 
E mostra que é remédio de tormentos, 
Instrumento do bem, e da alegria; 
Mostra que faz seguros fundamentos, 
E que leva segura, e reta via, 
Mostra que a vida toda permanece, 
Mas logo no melhor desaparece. 
XII
Mas ó razão perversa, e infernal, 
Pois tens a eleição tão cega, e injusta; 
Que queres dar um bem que tanto val, 
Por um perverso mal, que tanto custa: 
Que por iguais teu bem, queiras teu mal, 
E que aborreças tanto a vida justa? 
Que ames mais que a vida a morte dura, 
O grande mal, estranha desventura. 
XIII 
Nesta alegria falsa, a qual eu douro, 
Com minha razão torpe, e com meu erro; 
Onde as promessas são de fino ouro, 
E as dádivas são de duro ferro; 
Trocava o rico preço, e o tesouro, 
Que me levava à pátria do desterro, 
Trocava o eterno bem que permanece, 
Por um breve prazer que desfalece. 
XIV 
Só o torpe Juízo, e insensato, 
A quem verdades tais são odiosas, 
Das coisas preza mais o aparato, 
Do que preza, e ama as mesmas coisas; 
Só este a quem por falso já não trato, 
Pode por falsas mostras, mas fermosas, 
Por uma breve, e vã desventura, 
Aventurar um bem que sempre dura. 

O poeta maneirista Diogo Bernardes, em seu soneto intitulado “Horas breves do meu contentamento”, reconhece que o amor humano não passa de um engano, de um contentamento fugaz. Essa meditação do poeta acerca do caráter falacioso do amor humano adquire um sentido moral, na medida em que o leva a concluir que, além de ter desperdiçado seu tempo com a ilusão dos efêmeros prazeres do amor (Que sobre coisas vãs fiz fundamento) na crença em seus projetos falidos de felicidade (as minhas torres que fundei no vento, / o vento mas levou que as sustinha), pois nada se realizou, restando-lhe apenas assumir o peso da culpa pela dor que lhe ficou do desengano e do arrependimento, por ter acreditado em um sentimento falso, efêmero e fugaz (Mas dês que dentro n´alma reina, e manda, / Como na minha fez, quer que se veja, / Quão fugitivo é, quão pouco dura). 
Tomados pelo pessimismo e pela descrença na ventura terrena, os poetas maneiristas, dentre os quais se inclui Diogo Bernardes, consideravam o mundo em que viviam uma teia de enganos e ilusões, da mesma forma que concebem “o amor entre homem e mulher o engano por excelência, o engodo que impele os homens a confundirem perigosamente a verdade e o erro, buscando contentamentos falazes que afastam a salvação eterna”.[1] Alguns poetas, como Camões, em vários sonetos que mencionam as mentiras e perfídias do amor, e Bernardes, no soneto em análise, principalmente, não deram às suas queixas contra os enganos do amor uma conotação moral e religiosa, mas sim um sentido psicológico que atribui a tais enganos e desenganos as causas dos sofrimentos e da tristeza que atormentam o poeta. Todavia, glosado por outros poetas maneiristas, como André Falcão de Resende e Baltasar Estaco, o soneto “Horas breves do meu contentamento”, foi desenvolvido numa perspectiva moral e religiosa que intensificou a execração do amor terreno, ao qual contrapõe o amor divino: 

E triste quem por baixo amor malino 
Alto e divino amor trocar quisesse, 
E de vão bem por uma vã figura 
Aventurar um bem, que sempre dura). 

D. Maria de Lara Resende glosa esse soneto bernardiano de forma exemplar, desenvolvendo com segurança e adequação o tema do desengano, das ilusões falazes e das perfídias do amor humano, dando, no entanto, ênfase aos efeitos morais e psicológicos do desengano amoroso, haurido no texto de Diogo Bernardes bem como aos efeitos morais e religiosos, coincidentes com as glosas de André Falcão de Resende, que desenvolve e acentua a condenação do amor terreno ao qual contrapõe, nos versos das duas últimas estrofes (o eterno bem que permanece ao breve prazer que desfalece): 

Nesta alegria falsa, a qual eu douro, 
Com minha razão torpe, e com meu erro; 
Onde as promessas são de fino ouro, 
E as dádivas são de duro ferro; 
Trocava o rico preço, e o tesouro, 
Que me levava à pátria do desterro, 
Trocava o eterno bem que permanece, 
Por um breve prazer que desfalece. 

Continuando a verbalizar as suas reflexões acerca da insensatez dos que recusam - por razões inconfessáveis - e execram tais verdades, preferindo enlear-se nas falsas aparências e nas enganosas promessas do amor perjuro, a poetisa reitera o seu propósito de não se deixar embair pelos acenos do falso amor humano, “a quem por falso já não trato”, pois não pretende que, seduzida por uma breve, e vã desventura, venha a arriscar-se a perder um bem que sempre dura: 

Só o torpe Juízo, e insensato, 
A quem verdades tais são odiosas, 
Das coisas preza mais o aparato, 
Do que preza, e ama as mesmas coisas; 
Só este a quem por falso já não trato, 
Pode por falsas mostras, mas fermosas, 
Por uma breve, e vã desventura, 
Aventurar um bem que sempre dura. 

É curioso notar que a poetisa não repete fielmente no final de cada estrofe o verso bernardiano, fazendo algumas alterações, mais de acordo com o sentimento que deseja expressar, sem com isso deturpar o sentido geral desses versos. Alguns versos chegam a ser substituídos por outros diferentes. No final da derradeira estrofe, o verso que encerra a glosa é substituído pelo que André Falcão de Resende criou na glosa que fez do mesmo soneto de Bernardes, ou seja: Aventurar um bem que sempre dura, acrescentado ao texto original para dar à sua glosa um sentido religioso. 
Essas fugas da poetisa ao texto original não desmerecem o valor da sua imitação amplificante ao texto de Diogo Bernardes. Ao contrário disso, as variantes que impôs à recriação do texto do poeta maneirista que intertextualiza ou tornaram-na mais enriquecida, tanto por esses desvios quanto pela extensão intertextual que realizou com o texto de André Falcão de Resende, concretizando, assim, um diálogo entre o seu texto, barroco em suas raízes, e os dos poetas maneiristas legitimamente apropriados através do processo intertextual. 
Considerando o fato de que o tema do desengano transitou para o Barroco como herança do Maneirismo, é natural que, na poesia barroca, essa temática tenha adquirido “novas características e novas ressonâncias, permitindo-nos concluir que o sentimento existencial que se comunica é já bem diverso”[2] do que é comunicado no soneto de Bernardes. Daí ser inevitável que haja diferenças na maneira como o tema é desenvolvido pela poetisa barroca, pois, enquanto a meditação de Bernardes sobre o desengano é dominada por intensa melancolia e sofrimento, que dão conta de uma atitude penitencial e ascética verdadeiramente sentida, na abordagem de D. Maria de Lara Resende o desenvolvimento do tema do desengano nas glosas tanto intertextualiza as meditações e as conclusões de Bernardes acerca da efemeridade do amor e da fugacidade dos momentos de felicidade quanto se aproxima da concepção tipicamente maneirista que opõe ao amor humano (enganoso, fugaz) e o amor divino (autêntico, eterno). Apesar da abordagem desse tema ensejar a adoção dos mais rebuscados torneios hiperbólicos para expressar a intensidade do desengano e a execração da falsidade na relação amorosa, a poetisa não sobrecarrega a expressão do seu sofrimento com imagens hiperbólicas. Apenas, na estrofe X, a autora lança mão de um processo anafórico no qual as antíteses se sucedem, num esforço reiterativo de denunciar as artimanhas do amor fingido, que, através de uma série de falsas aparências e mentirosas lisonjas e louvores vai convertendo o que é enganoso e ilusório em falsas verdades, e mascarando em verdade o que é falso - Amor com falsas mostras aparece, resultando desses engodos e falácias a conversão dos falsos bens em puras dores: 

[...] 
Ser o proveito pouco, muito o dano, 
Mentirosas lisonjas os louvores, 
O fim de seu trabalho um desengano, 
Porém nestas verdades que conhece, 
Amor com falsas mostras aparece. 
Tudo o que vê cruel, mostra amoroso; 
Tudo o que é puro, mal finge bem puro, 
Tudo o que certo é, faz duvidoso, 
Tudo o que se vai, dá por seguro; 
Tudo que doce é, diz que é penoso, 
Tudo o que é manifesto, mostra escuro; 
Tudo confunde amor, tudo mistura, 
Tudo possível faz, tudo assegura. 

O poema chega ao final sem atingir uma expressão clara da emoção religiosa que o tema do desengano suscitaria, principalmente quando está em jogo a tensão gerada pela oposição entre o amor humano e o amor divino. Em alguns versos a clareza da linguagem é sacrificada pelos jogos de palavras e de imagens. 
Apenas duas poetisas, dentre as que vicejaram fora dos muros dos conventos, tiveram as suas obras publicadas e preservadas nos acervos bibliotecários portugueses, o que possibilitou serem localizadas e levadas ao público do dos nossos dias. Todavia é possível que outras tenham existido, como é o caso de D. Feliciana de Milão, poetisa e prosadora que teve sua obra destruída por ordem real, ficando dela apenas algumas cartas, hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa, das quais transcreveremos alguns trechos. 

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[1] Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Op. cit., p. 296-297. 
[2] Id. Ibidem, p. 399.
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Zenóbia Collares Moreira. O Barroco no Feminino. Ensaio

A Polígrafa D. Feliciana de Milão Parte IV



Muito pouco se sabe acerca da biografia de D. Feliciana de Milão. Algumas informações foram recolhidas por Barbosa Machado e D. Antonio da Costa, a partir das quais tentamos traçar o perfil dessa escritora tão famosa em seu tempo, tão esquecida nos dias atuais. 
D. Feliciana de Milão nasceu em Lisboa e 1632 e falecida em 1705. Filha de pais ignorados, foi exposta na Roda dos Enjeitados de um convento, no qual, ao que parece, foi criada e educada com esmero. Já adulta e possuidora de razoável fortuna, certamente deixada por algum familiar que preferiu não se identificar, passou a morar em uma bela casa, na companhia de algumas escravas. Costumava freqüentar bailes e festas, igrejas e o passeio da cidade, sempre acompanhada de duas servas. Dotada de notório talento, inteligência e vastíssima erudição, escreveu poesias, cartas e tratados. Foi, portanto, poetisa e ensaísta de reconhecido valor, gozava de grande prestígio na corte e entre a intelectualidade da época. Muito bela, despertou paixões e recebeu vários pedidos de casamento, sendo indiferente a ambas as coisas. De espírito crítico e desenvolto não se eximia de tecer críticas e ironias aos que a molestavam ou incomodavam, chegando à audácia de escrever cartas a uma amiga nas quais criticava o Padre António Vieira e à corte, como veremos mais adiante. Muito afeita à leitura, corria os livreiros da cidade em busca de novidades e de jornais , nos quais se inteirava acerca dos acontecimentos, desde as guerras até à vida social, sendo, assim, uma espécie de crônica vivas das novidades recentes e dos fatos interessantes. 
Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, relata que D. Feliciana compôs poesias, em que a elegância competia com a agudeza. Diogo Ayres de Azevedo, no Portugal Illustrado, diz que o seu Tratado sobre a existência da pedra philosophal é uma obra que testemunha a profundidade dos conhecimentos da autora e que por si só poderia qualificá-la como uma das grandes inteligências do seu tempo. 
Por razões ignoradas este tratado e todo o restante da obra de D. Feliciana foi destruída, por ordem do rei de Portugal, restando da autora apenas, em manuscrito, uma parte das sua correspondência. Em uma das suas cartas à sua amiga D. Margarida, ela faz alusão aos perigos de destruição ou de impedimento de publicação que ameaçam seus escritos, conforme o trecho abaixo revela: 
“Segurem-se os fiscaes, com que, se me der a ociosidade para o tinteiro, não mande imprimir os meus escriptos a Veneza, porque não disse, nem direi nunca, cousa que desminta o nome de D. Feliciana.” 
Infelizmente, a autora não cumpriu o que disse, e, assim sendo, dos seus manuscritos não enviados para fora de Portugal, somente parte das suas cartas escaparam à destruição.  Dentre as cartas da autora, deixadas na Biblioteca de Évora e hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa, há algumas trocadas entre a autora e D. Maria das Saudades, freira no convento da Assunção de Via-longa. A que se segue, da autoria da amiga religiosa, escritas nos lúdicos e intrincados termos próprios dos jogos de linguagem típicos do gosto barroco, é quase indecifrável para leitores dos dias atuais. Todavia, percebe-se que o assunto gira em torno da figura do rei. Consta que D. Feliciana teria sido cortejada pelo monarca, mas nenhuma prova há desse fato: 
"Ora contente-se com a resposta, e saiba que ao jogo do homem hei-de ganhar, porque por homens não me costumo perder. Vamos, parceira, olhe como se destaca, que não seja de rei, sendo que os reis para Vossa Mercê se descartam; e se na mão, como Vossa Mercê quer, me fica um rei secco, como vi que na de Vossa Mercê foi verde, por isso encontrou desgraça; e eu não lhe empato as vasas, nem tenho tenção de lhe furtar os tentos, que sempre trouxe a cara descoberta quem não tem que encobrir nos procedimentos da pessoa. Deus guarde a Vossa Mercê. 
Via-longa- 6ª. feira – D. Maria das Saudades "

Aos 24 anos de idade, em pleno apogeu de sua juventude, beleza e prestígio social, D. Feliciana de Milão, de repente, tomou a decisão de fazer-se freira. Logo, recolheu-se ao mosteiro de Odivelas, tomou o hábito, professou e assumiu o humilde encargo de porteira. 
Do convento, escreveu as cartas que se salvaram, sendo as mais irreverentes as que relata minuciosamente à sua amiga Margarida a deposição do rei D. Afonso VI e a que endereça a D. Maria das Saudades, ironizando os sermões do Pe. Vieira, como se pode ver nos trechos da referida carta: 
"Ora, Maria, não é de valia que aperteis comigo, que me ponhais culpa por padecermos em perigo de murmúrios. Quando me enxergasses vós gênio de Mestre [...] deste mundo, que me mandeis perguntar que censura pode dar-se ao Sermão que me anuíste do Padre António Vieira? Estou certa que naquele grande juízo sempre se há tão delgado que, a sair de Portugal, tivesse estima vantajosa em os teares do Cambray; pois já temos conhecido que nos ensinar a urdir cambray em Portugal. 
Sempre que prega, o entendem poucos, porque para poucos ele estende-os sempre. aonde porém passou a arte de jogos a mostrou inumerável nos pontos, se nesta panegírica história, ou neste histórico Sermão Panegírico que compôs, e não disse. [...] Outros diriam o próprio porque é próprio de más almas terem só parte em maus discursos. E porque da parte deste sermão todas me parecem desta cor, os tomei para passar algumas destas noites enfadonhas, porque se o que é mau por qualidade faz parecer pequeno o que é grande por natureza, como nos persuade neste sermão o seu autor, que melhor meio para encurtar noites compridas que meter-me à lição dos maus discursos deste papel? ".

Zenóbia Collares Moreira. O Barroco no Feminino. Ensaios.


O LIRISMO CONVENTUAL - Parte V




SÓROR VIOLANTE DO CÉU
Apesar de rodeadas de muros conventuais, as mulheres que escreveram ao longo dos anos de seiscentos foram permeadas pelas preocupações dominantes do tempo. 
(Isabel Allegro Magalhães) 

Nem todas as ordens religiosas isolavam do mundo suas professas, propiciando-lhes convivência com pessoas de ambos os sexos no interior dos conventos, nos quais eram organizadas reuniões que atraíam poetas, artistas e intelectuais, seduzidos pelas atividades também culturais que ali eram realizadas, inclusive a boa música, o canto e a recitação de poesias. Exemplifica bem a liberdade que era dada às religiosas o caso de Sóror Mariana Alcoforado e seu ardente amor – por um cavalheiro francês – revelado nas célebres Cartas portuguesas.[1]
Se as poetisas religiosas chegaram aos nossos dias com o prestígio que lograram alcançar no seu tempo, o mesmo não se deu com as demais poetisas, especialmente com Bernarda Ferreira de Lacerda e Maria de Lara e Meneses. Seus nomes e suas obras ficaram relegados ao esquecimento. 
Sóror Violante do Céu nasceu em 1602 e faleceu em 1693, despedindo-se duma longa trajetória existencial, quase toda ela transcorrida entre os faustos da fama conquistada pela qualidade literária de sua obra. Antes de ingressar no convento, atendia pelo nome de Violante da Silveira, ou Violante de Montesino e cultivou a poesia profana, inclusive o lirismo amoroso. Após vestir o hábito, passou a investir o seu talento poético na poesia religiosa, revelando-se uma das mais prestigiadas representantes femininas do Barroco português, conquistando inúmeros prêmios e louvores das academias literárias do seu tempo. Sua produção literária é considerada pela crítica da atualidade um dos momentos altos do conceptualismo barroco português. Dentre as escritoras suas contemporâneas, nenhuma teve a obra mais celebrada que a dela, nem atingiu a culminância do seu sucesso entre os altos representantes da nobreza, da intelectualidade da época e dos próprios soberanos. As sucessivas edições dos seus livros logo se esgotavam, dentro e fora de Portugal.
Sóror Violante do Céu publicou as seguintes obras: Rimas várias (Ruão, 1646); Parnaso lusitano de divinos e humanos versos (Lisboa, 1633, dois volumes); Romance a Cristo crucificado, Solilóquios para antes e depois da Comunhão (Lisboa, 1668); Oitavas a Nossa Senhora da Conceição em aplauso da vitória de Montes Claros (1665); Meditações de missa e preparação afectuosa de uma alma devota (1689), La transformacion por Dios (s/d); El hijo esposo y hermano (comédia, s/d); La vitória por la cruz (comédia, s/d). 
Alguns aspectos biográficos de Sóror Violante do Céu merecem uma atenção especial, notadamente no tocante à sua vida sentimental, que ela mesma relata em um “romance” endereçado a Nise, uma amiga íntima da religiosa e também sua fiel confidente. Tal “romance”, que tanto espicaçou a curiosidade dos biógrafos de Sóror Violante, dá conta da sua mal sucedida relação afetiva com um homem a quem amara desde a adolescência e que ela supunha ser merecedor dos seus sentimentos. Desalentada, tomada pela tristeza, escreve: 

Considero la prudência 
Impossibles lãs venturas, 
Forçosos los precipícios, 
Lãs esperanças defuntas... 

Desiludida com o amor e com os homens, Violante decide entrar para o convento. Ela mesma conta a Nise os sofrimentos que padeceu por causa das decepções amorosas, conflitos, dúvidas, ciúmes e incertezas: 

Hizo loucuras por outra, 
Fue, sino em las astúcias, 
Marcias Ariano em finezas, 
Adonis tambien em culpas. 

Y dexando-me um retrato 
Porque em la muerte futura 
No me faltasse la imagem, 
Fuesse com falsas desculpas... 

Si quede triste, si muerta, 
Tu que lo sabes lo julga, 
Que tantas vezes me hallaste, 
Entre paracismos muda... 

Mas, pensando en los agrabios, 
Tanto me vencio la furia, 
Que admití devertimentos, 
Veras amorosas nunca... 

O retorno do homem amado, depois de uma breve ausência, ao mesmo tempo em que fez renascer o amor no coração de Violante, encheu-a de dúvidas em relação ao destino que tal sentimento daria à sua vida:

Despues de um lustro de ausência, 
Despues de tanta fortuna, 
El que negava respuestas 
Me haze agora perguntas. 

Matarme quiere de nuevo, 
Porque como al fim se oculta, 
No teme ser homicida, 
Y mas de vida que es suya. 

Yo, que sujeta me veyo 
A correspondencias justas 
De un hombre que son finezas 
Triunfar de mi amor procura, 

Renovadas las heridas, 
No sé que elija confusa, 
Si buscar a quien me dexa, 
Si dexar a quien me busca... 

Confrontada com o dilema que exigia de si mesma uma atitude decisória, Violante recorre aos conselhos de Nise, para que consiga livrar-se da indecisão que a angustia: 

Si asseguro quien me olvida, 
Si olvido quien me asegura, 
Obedezco a mis deseos, 
Pero sugetome a culpas. 
[...] 
Oh dame consejo, Nise, 
si de que muera no gustas. 
Dime, que haré, Nise mia, 
Dime, pues mi pena escuchas! 

Se Nise deu-lhe ou não o conselho pedido, não se sabe. Todavia Violante achou a solução para o conflito que a torturava na renuncia ao amor, mesmo com algum sofrimento: 

Determinada em mi daño, 
Em mi ofensa resoluta, 
Para um tumulo de vidas 
Huy de tantas fortunas. 

Ay, que ignorante prudencia! 
Ay, que imprudente cordura! 
Ay, que furioso delirio! 
Ay, que delirante furia! 

Levada a tomar o hábito de freira dominicana, no Convento de Nossa Senhora da Rosa, aos 29 anos de idade, e a exilar-se na vida claustral, não motivada por uma imperiosa vocação, mas para proteger-se dos sentimentos que a arrebataram e fizeram sofrer, Violante voltou as costas para o mundo e para o amor. No entanto, em sua poesia, a temática amorosa desponta aqui e ali, como uma força oculta que não consegue, ou talvez não quer sufocar. Mesmo nas poesias de temática religiosa, nas quais suplica ao Criador o perdão para os seus erros passados, é freqüentemente o amor que emerge do seu discurso.

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O LIRISMO CONVENTUAI - PARTE VI


 SÓROR MADALENA DA GLÓRIA 

Oh! Considera em tão penosa sorte, 
Que a vida é feno, sendo raio a morte! 
(Sóror Madalena da Glória) 

Nascida em 1672 e falecida em 1759, Madalena da Glória ingressou no Convento de Nossa Senhora da Esperança aos dezesseis anos de idade. Com o pseudônimo de Leonarda da Gama, escreveu várias obras, em prosa e verso: Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento (2 tomos, 1739 e 1749); Orbe celeste adornado de brilhantes estrelas e dois ramalhetes.(1742); Reino da Babilônia ganhado pelas armas do Empírio (1749). Os principais poemas da autora estão inseridos ao longo de narrativas alegóricas de função moralizadora 
Se, na composição dos sonetos, Sóror Madalena da Glória revela menos esmero e habilidade do que Sóror Violante do Céu, consegue, no entanto, superá-la no trato com formas poéticas menos fechadas, adequadas, na medida justa, à sua exuberante e solta imaginação lírica, ao seu sereno sentimentalismo. Sóror Madalena da Glória destaca-se, ainda, pela desenvoltura com que maneja o jogo de conceitos típico do conceitismo, despojando esse estilo de exageros e frivolidades, utilizando-o no sentido mais intensamente expressivo de uma discreta densidade que emana dos seus versos. A estrofe que segue, escrita em oitava rima, ressalta a leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, nos quais as metáforas em série vão se sucedendo de verso a verso, para exprimirem o caráter efêmero da vida humana: 

Esse monte de fogo, que nascendo 
Em campo de safiras, luz ardente 
Em chegando ao zênite, já vai descendo 
Quando o viste subir do seu oriente: 
Nasceu luz, cresceu sol, porém morrendo 
Nem luz, nem sol se mostra no ocidente. 
Pois se de vida o sol não tem dois dias, 
Mortal, como em instantes te confias? 

A poesia de Sóror Madalena da Glória percorre, praticamente, toda a temática barroca, ocupando lugar de destaque o problema da efemeridade da vida humana, do tempo, da morte e do desengano.
O tema da efemeridade da vida, quase sempre, se desenvolve em conexão com o da transitoriedade do tempo e da inexorável ação destrutiva que ele exerce sobre o físico e a mente do homem, arrastando-o para a morte:

Esse sono, em que cego vás passando, 
Essa vida mortal, em que confias, 
Já nas asas do tempo vai voando 
Porque da vida instantes são os dias: 

Já que o tempo da vida vai correndo, 
A flor da formosura descaindo, 
Do sol o resplendor desfalecendo, 
E a luz do desengano vem ferindo: 

Quando tudo da vida vai morrendo, 
E tudo enfim a morte desunindo; 
Oh! Considera em tão penosa sorte, 
Que a vida é feno, sendo raio a morte! 

No livro da poetisa, Orbe celeste, o tema da morte, sempre presente na lírica barroca, é desenvolvido em vários poemas dentre os quais figura o soneto a seguir, dedicado A uma caveira pintada em um painel que foi retrato, associado à meditação acerca da efemeridade dos valores terrenos: 

Este que vês de sombras colorido 
E invejas deu na primavera às flores, 
Do pincel transformadas os primores 
Desengano horroroso é dos sentidos. 

Ídolo foi do engano pretendido 
A que a cega ilusão votou louvores 
Estrago é já do tempo e seus rigores 
O que então foi ao que é já reduzido. 

Foi um vão artifício do cuidado, 
Foi luz exposta ao combater do vento, 
Emprego dos perigos mal guardado; 
Foi nácar reduzido ao macilento, 
O culto ali nos medos transformada, 
Mortalha a gala, a casa monumento.[1]

É certo que a consciência de que o tempo flui, arrastando o homem, em sua passagem, não está presente apenas no Barroco; ela está presente na literatura desde sempre, intensificando-se no período maneirista, do qual transitou para o Barroco trazendo consigo o mesmo caráter obsessivo que lhe imprimiu o Maneirismo. 
O teor subjetivo da poesia de Madalena da Glória, a expressão de estados melancólicos, suscitados pela saudade de um bem ausente, pelo desengano e pelos ciúmes, é bem estranha, considerando-se tratar-se da obra de uma freira: 

Aves que o ar discorreis, 
No vôo as asas batendo, 
E por vossas penas conta 
Às minhas meu sentimento. 

Compadecidas ouvi 
De minha dor os excessos, 
Mas em dizer que é saudade, 
Digo o que posso dizer-vos. 

Triste padeço, e ausente 
Os golpes dos meus receios 
Nas batalhas da distância, 
Nos desafios do tempo. 

Nas violências, do que choro, 
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa, 
Quando a desperta o desvelo. 

Esmoreceu a esperança 
Nas dilações do desejo, 
Prognosticando a ruína 
Frenético o pensamento. 

Se meu mal são sintomas, 
Mortais ausências, e zelos, 
Era o remédio esquecer-me, 
Se em mim houvera esquecimento. 

Mas se faz no meu cuidado 
Operações o veneno, 
Viva de senti-lo quem, 
Não morre de padecê-lo. 

Já que morro, ingrata sorte, 
Às mãos da tua porfia, 
Deixa-me inquirir um dia 
A causa da minha morte: 

Se amor com impulso forte 
Me rendeu, como me aparta 
Do bem, que na alma retrata 
Minha doce saudade, 
Que em lágrimas persuade, 
Como dá vida o que mata. 

A religiosidade encontra na poesia barroca muitas formas de expressão. O sujeito poético apresenta-se quase sempre como um ser fraco, arrastado para o pecado e assumindo uma total dependência ao amor e da misericórdia de Deus. No soneto abaixo, inserto no livro de Sóror Madalena da Glória, Reino da Babilônia, o ser que nele fala posta-se suplicante perante a graça divina, contrito e consciente da sua situação de pecador penitente. Todavia, fica clara a relação amorosa que se estabelece entre a alma pecadora e o Criador, pautada numa reciprocidade que faz da criatura não apenas uma fonte de amor por Deus como o objeto do amor divino:

OITAVAS 
Já, Senhor, despertaram meus cuidados 
Em tanta ingratidão adormecidos; 
Nasceram a querer-vos destinados 
E em cega idolatria os vi perdidos. 
Vossa mesma fineza lhe deu brados 
Por que a tanto favor agradecidos 
Confesse o coração com rendimento 
Que é de vosso amor doce sustento. 

Dos aparentes bens a prisão dura, 
Que o gosto cativaram com violência, 
Venceu a vossa luz a sombra escura 
Para maior vitória da clemência. 
Constante a minha fé vos assegura 
De Babilônia às leis a resistência, 
Que é certo pouco faz quem obedece, 
Se chegando a vos ver o mais lhe esquece. 

Primeiro se verá da Quarta Esfera 
Apagado o monarca refulgente 
Que no palácio etéreo reverbera 
A luz que os montes doura no oriente, 
Que meu amor vos falte quando espera 
Que acendais vós com fogo o fogo ardente, 
Que o peito, que das chamas tem inveja, 
Um coração de chamas ter deseja. 
Venham formosos lírios, venham rosas, 
Maçãs e jasmins venham, que ferida 
Minha alma está das setas amorosas 
Que quanto mais me ferem me dão vida. 
Cubram-me de açucenas, que cheirosas 
Fragrâncias vão inspirando à fé unida. 
Arda o peito no fogo em que suave 
Imite o coração a imortal ave. 

Não é a tematização do amor o que centraliza os interesses dos poetas barrocos. Muitas vezes o tema amoroso é abordado como mero exercício poético, como sátira ou como ludicidade. Talvez seja nesse último caso que se inclui a composição de Sóror Madalena da Glória que segue, considerando-se que o poema é desenvolvido a partir de um mote, o que aponta para o caráter lúdico do texto: 

MOTE E GLOSA 
Tenho amor, sem ter amores.

GLOSAS 
Este mal que não tem cura, 
Este bem que me arrebata, 
Este rigor que me mata, 
Esta entendida loucura 
É mal e é bem que me apura; 
Se equivocando os rigores 
Da fortuna aos favores, 
É remédio em caso tal 
Dar por resposta ao meu mal: 
Tenho amor, sem ter amores. 
É fogo, é incêndio, é raio, 
Este, que em penosa calma, 
Sendo do meu peito alma, 
De minha vida é desmaio: 
E pois em moral ensaio 
Da dor padeço os rigores, 
Pergunta em tristes clamores 
A causa da minha aflição, 
Respondeu o coração: 
Tenho amor, sem ter amores.

A leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, o equilíbrio e a habilidade com que maneja o conceitismo, o a vontade com que trabalha o verso, dando expressão aos sentimentos e sua imaginação lírica, faz da autora uma das mais qualificadas expressões da poesia barroca portuguesa. 

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[1] Sóror Madalena da Glória, Op, cit., p. 265),
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Zenóbia Collares Moreira. O Barroco no Feminino. Ensaios