11 de out. de 2012

O lirismo erótico dos pré-romanticos



Era muito comum, nos séculos XVIII e XIX, que os poetas não publicassem suas obras, especialmente quando desempenhavam funções que julgavam incompatíveis com a atividade poética. Os poetas não eram bem vistos pela sociedade de então. José Anastácio da Cunha era lente de Matemática na Universidade de Coimbra, onde Felinto Elísio era estudante de Direito e pertencente à aristocracia brasileira. Seu nome civil era José Bonifácio de Andrade, o mesmo que ocuparia importante papel junto a D. Pedro II. Foi tutor deste e, pela influência que exerceu em prol da libertação da Corte Imperial brasileira do domínio português, ficou conhecido como “o Patriarca da Independência”. Somente em 1949, sua obra poética foi publicada por seus herdeiros. As poesias de José Anastácio da Cunha foram publicadas por Almeida Garrett, muitos anos depois da morte do poeta.
O erotismo de José Anastácio da Cunha e Felinto Elísio, largamente manifestado, teria, decerto, ferido a susceptibilidade do puritanismo da época, se tivessem publicado as suas poesias dedicadas às mulheres que amavam. O trecho, que se segue, do poema O abraço, diz bastante da forma espontânea como José Anastácio comunica a sua apaixonada relação amorosa com a sua Marfisa:

Não vês inda, de gosto sufocados,
Um noutro nossos peitos esculpidos?
Não sentes nossos rostos tão chegados
E ainda mais os corações unidos?

Oh! Mais, mais do que unidos!
Tu fizeste, Doce encanto, que eu fosse mais que teu.
Lembra, lembra-te quando me disseste:
- Meu bem, eu não sou tu?... Tu não és eu?

Goza, de todo goza o teu amante;
E unidos ambos... –Oh!... e estás tão perto!...
Meu bem, deliro, sonho ou estou desperto?
Ambos unidos em mimoso laço,

Faces, bocas unidas... Ah! que faço?...
É ar... Quando que a abraço me parece,
A mim me abraço e em ar de desvanece.
Mas que duvido com abraço estreito
Cingir-me?... Dize, não és seu, meu peito?...
[...]
Goza, meu bem (enquanto a Sorte avara
Com tanta crueldade nos separa)
Goza do alívio, que nos concedeu,
De dizer com certeza: É minha! - É meu!...

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Américo Elísio é ainda mais explicito na exteriorização da paixão pela mulher com quem se casou, Eulina, a quem dedica vários poemas inflamados de desejo e sensualidade. Em sua “Ode à Eulina”, o poeta revela o tumulto interior, o elétrico tremor, que o corpo inteiro em convulsões o abala, ao tocar os seios desnudos da amada:

As nítidas maminhas vacilantes
Da sobre-humana Eulina,
Se com férvidas mãos ousado toco,
Ah! que me imprimem súbito
Elétrico tremor, que o corpo inteiro
Em convulsões me abala!
O sangue ferve: em catadupas cai-me...
Brotam-me lume às faces...
Raios vibram os olhos inquietos...
Os ouvidos zunem!
Fugir me quer o coração do peito...
Morro de todo amada!
[...]
Deixa com beijos abrasar teu peito:
Une-te a mim... morramos.

Estes dois poetas desenvolvem um tipo de lirismo absolutamente diferente do cultivado pelos sombrios pré-românticos portugueses, revelando, em suas obras, uma outra face do Pré-Romantismo, caracterizada por uma visão positiva do amor, da vida e do mundo. Voltam-se, portanto, para o que Maurice-J. Lefèbve denomina “sentimentalisme rose” em oposição ao “sentimentalisme noir”.
No primeiro caso, o poeta liberta-se dos entraves da razão e passa a valorizar o sentimento, o amor e todas as verdades ditadas pelo coração. No segundo, os pré-românticos cultuam a infelicidade, a melancolia, as paixões fatais, destrutivas, enfim, alçam a um primeiro plano o lado negativo do amor e da vida.
Na vertente sombria do Pré-Romantismo português irrompe o talento poético privilegiado de Bocage, o mais pré-romântico dentre os poetas de sua época. Dele foram selecionados alguns sonetos nos quais aflora o seu irreprimível erotismo. E é justamente no erotismo do poeta, na explosiva sensualidade que irrompe dos seus versos, ou na ousada expressão do desejo e da paixão – inadmissíveis na poesia dos árcades – que se revela mais uma dentre as múltiplas facetas do lirismo pré-romântico bocageano.
Observe-se como o poeta verbera a tibieza da amada que não lhe corresponde, com o mesmo ardor que o inflama, à vibração dos sentidos, à efervescência da sua paixão:

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo,
Paixão requer paixão; fervor e extremo
Com extremo e fervor se recompensa,

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo; 
Em sombras a Razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso,
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo, e não me faz ditoso.

Em outro soneto, o poeta implora à noite, amiga de Amor, calada, escura, que recolha os seus véus, os seus horrores, enquanto vai gozar de mil favores:

Em deleitoso e tácito retiro,
Suspensa entre o temor, entre o desejo,
Flutua a bela, a cuja posse aspiro
Ah! já nos braços meus a aperto e bejo!
Já, desprendendo um lânguido suspiro,
No seio do prazer se absorve o pejo

Em outro soneto, atormentado pelo voraz ciúme, Bocage execra a impotência da Razão que não consegue pôr freios aos seus excessos amorosos:

Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) esclarecendo,
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizei-me que sossegue, eu peno, eu morro!

Outros poetas deram expressão poética ao amor sensual. José Maria da Costa e Silva, em dada passagem do seu longo poema O Passeio, lembra um momento de delirante transporte amoroso vivido com a mulher amada, descrevendo-o em termos tais que lembram as expansões eróticas de José Anastácio da Cunha:

E vi n’hum riso precursor d’hum gosto
Sellar minha ventura!
Inda ver creio
Em doce languidez correr teu braço
Em torno ao collo meu, e os róseos lábios
Esta meiga expressão do peito abrirem:
“O teu amor me apraz, és meu, sou tua!”
qual fiquei, justos Céos! Que fiz! Que disse!...
Morro!... ressurjo!... de prazer deliro!..

Também as mulheres fazem incursões na área da sensualidade. Francisca de Paola Possolo da Costa e a Viscondessa de Balsemão ultrapassam certos limites impostos ao seu sexo, pelos códigos morais oitocentistas, ao expressarem os movimentos dos seus férvidos desejos e ao fazerem, abertamente, apologia dos prazeres da carne. A primeira dedica ao seu marido Jónio todos os momentos de confissão amorosa:

Que me sucede. Oh Céus! Eu reclinada
Nos braços do meu bem! Eu apertando
Ao peito a sua mão, seu rosto amado,
Em amantes transportes enlevada!

Ventura, posso crer-te? Eu abraçada
De Jónio, por quem vivo suspirando!
Já a mimosa esperança me figura
O som de tua voz... alguns espaços,

Já cuido ouvir-te as frases de ternura.
Meu bem... que te suspende? Apressa os passos,
Oh!... vem antes que chegue a noite escura,
Vem suspirar de amor, entre os meus braços.

Não menos ousada, para uma época em que à mulher não era permitido sequer a menor alusão aos seus desejos, é a Viscondessa de Balsemão. Uma amorosa toda entregue aos sentimentos que, já nos anos de declínio, ousou escrever estes versos:

Que importa a longa série de mil anos,
Passados na inacção e na tristeza,
Sem gozar, sem sentir
O bem mais superior da natureza.
Trazei pois a meus olhos desejosos
Aquele objecto que minha alma inflama:
Apagai nos seus braços

Do ardente amor a viva chama;
Lerei nos olhos seus que me feriram
impaciente o meu fatal destino
Beberei ou veneno
Ou nos seus lábios o prazer divino.

Com a liberdade e o atrevimento próprio da meia idade, ignorando a passagem do tempo e os seus efeitos sobre a aparência física, a Viscondessa atreve-se a exprimir sua sensualidade, confessando que o amor no antigo gogo inda a minha alma aquece e que

Entre brancos cabelos encobertos
Se geram pensamentos amorosos
Que os meus desejos ainda tem despertos.
Inda vejo com olhos invejosos
Os ricos cofres do prazer aberto
Donde saem instantes deleitosos.

Vale acrescentar que esta tendência para os temas sensualistas são próprios da poesia que floresce na segunda metade do século XVIII e irrompem na literatura sob a tutela do Neoclassicismo e da revivescência da poesia erótica greco-latina. Se os árcades, tão contidos e racionais em suas expressões amorosas, não se deixaram seduzir pela lição de Safo e Ovídio, os pré-românticos estabeleceram elos de identificação à medida das suas tendências para a expressão dos sentimentos sem os artifícios impostos pelas conveniências sociais. Todavia, poetas como José Anastácio da Cunha, Américo Elísio e a Viscondessa de Balsemão nunca publicaram as suas poesias em vida. O primeiro teve sua obra manuscrita levada ao público postumamente, por Almeida Garrett, em 1839. As obras dos outros dois ficaram no ineditismo até o século XX. As poesias de Américo Elísio foram publicadas em 1947. Em vida seria impossível trazê-las a público. Ele era José Bonifácio de Andrade, conhecido como o Patriarca da Independência do Brasil, a quem D, Pedro I confiou a guarda e a educação do príncipe D. Pedro II, quando retornou a Portugal para assumir a coroa. A obra da Viscondessa foi publicada por mim, em 2001, após ter sido incluída em minha tese de doutoramento sobre o Pré-Romantismo Português, defendida na Universidade Nova de Lisboa em 1993.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira


Notas

1- Américo Elísio, Poesias, p. 7.2
- Maurice-J. Lefèbve. Histoire approfondie des littératures romaines- Le Pré-eromantisme, p. 8-9

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