12 de out. de 2012

A PROSA CONVENTUAL - PARTE IX

 A prosa conventual - Parte IX
ANTÓNIA MARGARIDA DE CASTELO BRANCO 
( Sóror Clara do Santíssimo Sacramento)

Filha de António de Albuquerque, brasileiro, natural de Pernambuco, e de Joana Luísa de Castelo Branco, nasceu Antónia Margarida no Lavradio, em 4 de agosto de 1652. Em 1618, António de Albuquerque sucedeu na capitania do Maranhão a seu pai, o lendário Jerónimo de Albuquerque. Em 1670, Antónia Margarida casou-se Brás Teles de Meneses e Faro, por imposição de sua mãe, apesar da má reputação do noivo. O casamento foi um desastre. Brás Teles, além de perdulário era homem de péssimo caráter e submetia a mulher a constantes maus tratos, servícias e humilhações. Após, dois abortos, Antónia Margarida deu a luz a um filho, batizado com o nome de Brás Manuel. Aos 37 anos, após 8 anos de vida tumultuada, durante os quais a autora suportou toda espécie de perseguições, calúnias e violências por parte do marido, resolveu divorciar-se e ingressar como noviça no Convento da Madre de Deus, em Lisboa, onde um ano mais tarde professou com o nome de Sóror Clara do Santíssimo Sacramento.
No convento, Antónia Margarida foi obrigada pelo Padre Confessor que a assistia a escrever e reescrever a sua Autobiografia, minuciosamente, a sua biografia, como sacrifício a ser cumprido ao longo de sua existência. Várias vezes quis a autora destruir os manuscritos, parar de escrever, sem obter permissão para ambas as coisas. Escreveu-a, portanto, em obediência a Frei Filipe de Santiago que em 1681 era seu orientador espiritual. Era desejo desse religioso que ela escrevesse a obra, praticamente como uma espécie de pratica penitencial. Assim a autora faz referência à exaustiva e interminável tarefa de autobiografar-se:
Louvado sejais, Amor eterno, por tudo o que usais comigo! Os Anjos, Santos e Bem aventurados vos louvem por mim, pois, sendo tã ingrata, me castigais com misericórdias. Dou-vos muitas graças por me ajudares a obedecer a vossos ministros, escrevendo este livro até o tempo presente que é o penúltimo de Dezembro de 1703 em que fazem 23 anos que o principiei e 19 que o tornei a renovar. Eu vos ofereço o que me tem custado e peço a vossa divina Majestade que, se moveste a quem mo mandou escrever, sejais seu protector e se não foi monção vossa buscar modo com que se extinga, que eu, fiada na vossa amorosa fidelidade, estou sem sustos neste particular, pois o meu fim foi obedecer-vos em vossos servos, pois em vosso nome mo mandaram.[1]
Culta, inteligente e privilegiada com extraordinária sensibilidade, a autora faz de sua biografia uma obra dotada de qualidade literária. Desenvolvida no período Barroco, a Autobiografia, apesar da fé e da submissão religiosas que movem as ações e os pensamentos da autora, não se perde em tematizações próprias da escrita de cunho religioso cultivada na literatura da época, que inclui, forçosamente, os discursos moralizantes, o valor da ascese, da contrição e da submissão a Deus. Por outro lado, também não sofre a sobrecarga de elementos ornamentais cultistas que prejudicariam a clareza das idéias. Destituída das filigranas verbais tão do gosto da retórica barroca, o texto de Antónia Margarida revela uma nítida preocupação da autora com a clareza e o despojamento do discurso. Todavia, A autobiografia pode ser considerada um expoente da literatura seiscentista, e como tal nela se encontram forçosamente recursos estilísticos característicos do barroco português, embora expressados através de um léxico e de uma sintaxe hauridos no comedimento e na leveza do estilo consagrado pela tradição clássica.
O relato dos fatos de sua vida, principalmente os que se referem à fase de sua vida anterior à sua entrada para o convento, não é contaminado por pieguices religiosas ou por excessiva dramatização das suas vicissitudes, como pode ser observado no trecho que se segue referente ao 14º capítulo do livro:
Em o mesmo mês de Junho, alguns dias antes do São João, fui uma sesta recolher-me ao meu quarto como costumava e enquanto não vinha meu companheiro, por não perder tempo, me pus a cortar as unhas, sentada detrás de uma janela que caía para umas vinhas. Estando nesta ocupação, ouvi, a um criado daqueles Senhores, chamar de uma varanda ao filho mais velho, e ao mesmo tempo entrar meu companheiro na câmara com o rosto enfiado, e dobrar-se sobre a cama como quem queria ver o que estava debaixo dela.
Eu, por me não vir ao pensamento a malícia daquela acção, lhe disse: “Ai, senhor, não vos deiteis assim!” Ao mesmo tempo que eu proferia esta(s) palavra(s), senti rumor ao pé da janela; o que ele, também ouvindo, se foi a ela de um pulo e falou dela abaixo, sem eu saber com quem porque o não inquiri, nem me deu isso cuidado, por não me vir ao pensamento a tramóia que o demónio tinha urdida.
Acabando esta criatura de falar, virou para mim fechando a janela e me disse: “Boa a tem feito você!” eu crendo que o dizia por o cortar das unhas, em que me estava detendo, lhe disse: “Não fecheis que já acabo.” Com o que se enfureceu de maneira que me levou aos empuxões até o cabo da casa e sem rodeios me declarou que a pessoa com quem falara era o mesmo fidalgo que chamavam; o qual estivera ali comigo e saltara da janela tanto que se ouviu procurar: e que as palavras que eu disse quando se debruçou do leito, foram sinal para o outro fugir; e ultimamente que me não tirava logo a vida por não fazer estrondo, mas que se vingaria em melhor ocasião; e tudo isto disse tão afirmativamente, como quem o cria pela maior verdade.
A turbação que me causou este sucesso não é fácil de explicar, mas o interior ficou sereno e com muito sossego lhe disse só estas palavras: “Muitas graças estudou a Deus por me não dar nem pensamentos dessas matérias.” A minha serenidade foi tão grande incentivo da sua ira que o obrigou a usar comigo indecentes acções, indignas de se dizerem, e só dignas de se sentirem. Como viu que nada me alterava o ânimo nem a cor do rosto, que inda foi mais: tornou a dar-me novo assalto com uma adaga nua, fazendo menção de ma querer cravar; e vendo que eu nem mostrava defender-me nem assustar-me, ficou tão confuso que, considerando um pouco o que faria, saiu da câmara e, fechando-me por fora com a chave, não tornou senão à noite.
Eu estava tão alienada com este caso que a mim mesma me perguntava por mim e recobrando mais de ânimo dei lugar aos discursos e movida da aflição presente, fazia estas perguntas a Deus: “Que é isto, Senhor, que me sucede? Que é o que passa por mim? Vós permitis que me julguem culpada não o estando? Quereis que fique com esta mancha não tendo tal culpa? Vós, meu Senhor, sois justo? Daí-me a isto remédio, pois vós o podeis dar!” Estas queixas eram acompanhadas de actos de conformidade e paciência, perdoando pelo amor de Deus aquele aleive e até a morte, se dali se me originasse.
[...]
toda a tarde até à noite que veio o meu caluniador, passei desta sorte fechada na câmara sem falar com nenhuma criatura e, achando-me aquela Senhora menos, mandou saber se tinha eu alguma coisa; porém, vendo a porta fechada por fora, com chave, se foram confusas as criadas; e de temor nem quiseram assistir na casa de fora; e não poderiam deixar de ouvir alguma palavra (conforme eu entendo), pois as obrigou a este reparo.
À noite, e bem noite, que eram já horas de ceia, veio ele abrir a porta, e ficou passeando na outra casa, enquanto me traziam luz e davam um recado da Senhora da casa, que mandava saber o que eu tinha; até ela o vir saber que já mandara pôr guardas na sala para poder passar a cear comigo, porque se não atrevia a fazê-lo só (e eu depois soube que tudo aquilo foram traças para me vir fazer comer).
[...] Pôs-se a mesa, ceamos, e ela pensativa de me ver chorosa, inquiriu o motivo daquele excesso, a que respondi que estava maltratada de um desmaio que me sobreveio e como eu tinha então causa exterior, mostrou que o creu e se despediu de mim cortesmente para dar lugar a que me deitasse. 1
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Nota
[1] Antónia Margarida de Castelo Branco, Op. Cit. , p. 98-100.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira. O Barroco no Feminino - Ensaios.


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