10 de ago. de 2011

Ana Luísa Amaral - A poesia feminina no limiar dio século XXI - Continuação






Poetisa, ficcionista e professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Ana Luísa é autora de vários livros de poesia, publicados a partir de 1990. O seu livro de estréia – Nossa senhora de quê – a estabelece um diálogo com o livro da poetisa Maria Teresa Horta, Nossa senhora de mim (1974).

Em um certo sentido, Ana Luísa Amaral faz um reinvestimento temático do livro de Maria Teresa Horta. Esta tenta recuperar a identidade da mulher, devolvendo-lhe a voz que o homem lhe havia usurpado nas “Cantigas de Amigo” medievais, fazendo-a assumir-se em sua inteireza, resgatando-lhe a sexualidade reprimida, tornando-a, enfim, parceira ativa na relação amorosa com o homem.

Ela recria a convenção sob um ponto de vista decididamente feminista. Ana Luísa Amaral parece questionar o posicionamento de Maria Teresa Horta, com a eliminação do pronome possessivo logo no título do livro (minha senhora de quê) e no primeiro verso do poema que leva o mesmo título (dona de que; dona de mim nem sou). A poetisa “reinventa a reinvenção de Maria Teresa Horta no “nada” de “ser” que todos somos, afinal, homens e mulheres”:




MINHA SENHORA DE QUÊ




dona de quê

se na paisagem onde se projectam

pequenas asas... deslumbrantes folhas

nem eu me projectei

se os ventos apressados


me nascem sempre urgentes:

trabalhos de permeio refeições

doendo a consciência inusitada



dona de mim nem sou


se sintaxes trocadas

o mais das vezes nem minha intenção

se sentidos diversos ocultados


nem do culto nascem

(poética do Hades quem me dera!)

Dona de nada senhora nem


de mim: imitações de medo

os meus infernos. [ii]



Esse gosto pelo reinvestimento temático, pela prática de uma “poética do avesso” é uma constante desde o primeiro livro da poetisa. Além do exemplo evidente desse trabalho pelo avesso calcado no livro de Maria Teresa Horta, há muitos outros, como um poema do livro Epopéias (1994) curiosamente intitulada Orfeu do avesso, no qual Eurídice, contrariando a tradição mitológica, recusa-se a morrer:




De pé sobre o abismo


E não morri;

Canto gregoriano

muito limpo

não me chegou;

o fim

Catedral

sobre o risco,

sobre um azul tão grande

que afundar-me podia

Ao fundo do mais fundo

mergulhei

e não morri;

amei



A temática da realidade quotidiana também transita livre pelos poemas de Ana Luísa Amaral, um quotidiano bem feminino, mas bem distanciado das abordagens feministas, como pode ser observado no poema Ritmos e em outros que virão, a seguir. Em alguns casos, a poetisa ironiza o universo doméstico feminino:




RITMOS




E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:

a prosódia da mão, a ervilha dançando

em redondilha.

Misturar ritmos em tela apertada: um vira

bem marcado pelo jazz, pas

de deux: eu, ervilha e mais ninguém

De vez em quando o salto: disco sound

o vazio pós-moderno e sem sentido

Ah! Hedónica ervilha tão sozinha

debaixo do fogão!

As irmãs recuperadas ainda em anos 20


o prazer da partilha: cebola, azeite

blues desconcertantes, metamorfoses em

refogados rítmicos

(Debaixo do fogão

só o silêncio frio) [iii]



Nas poesias Fingimentos poéticos e Aniversário a poética do avesso é posta em prática, para parodiar textos de Fernando Pessoa. Em Fingimentos poéticos, a autora intertextualisa Autopsicografia:




FINGIMENTO POÉTICOS




“finge tão completamente”

Faz-me falta a tristeza

para o verso:

falta feroz de amante,

ausência provocando dor maior.

Tristeza genuína, original,

a rebentar entranhas e navios

sem mar.

Tristeza redundando em mais

tristeza, desaguando em métrica

de cor.

Recorro-me a jornal, mas é

em vão. A livros russos (largos

e sombrios).

Em provocando rio de depressão,

nem zepellin: balão

e ervas rente.



Um arrastão sonhando-se


navio.

Só se for o que diz o que

deveras sente.

A sério: o Zepellin.

Mas coração:

combóio cuja corda

se partiu.



Em Ás vezes o paraíso, livro publicado em 1998, é a tradição judaico-cristã que é desconstruída, subvertida. Em um dos poemas Caim escapa do castigo indo construir seu próprio “Paraíso” (A leste do paraíso), implodindo, assim, os alicerces de um dos mitos religiosos que mais incidem na questão moral, um dos ex-libres da retórica do Bem e do Mal.






NOTAS


[i] Ana Luísa Amaral. Minha senhora de quê, Lisboa: Quetzal Editores, 1999. p. 58.

[ii] Id. Ibidem, p. 58.

[iii] Ana Luísa Amaral, Op. cit., p. 58.





Zenóbia Collares Moreira. "A poesia feminina no limiar do século XXI. In: O Itinerário da Poesia Feminina Portuguesa : Século XX
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4 de ago. de 2011

A POESIA FEMININA NO LIMIAR DO SÉCULO XXI.

 Os últimos anos da década de 80 viu surgirem várias vozes femininas talentosas que levaram para a década seguinte uma rica produção poética, à qual somaram-se as de várias outras surgidas ao longo dos anos 90 e 2000. Dentre tantas, sobressaem os nomes de Agripina Costa Marques, Ana Luísa Amaral, Ana Marques Gastão, Ana Paula Inácio, Graça Pires, Inês Lourenço e Maria do Rosário Pedreira. Apesar de já ter decorrido mais de quatro anos neste início de milênio, ainda é cedo para se definir alterações e mudanças no panorama poético desta primeira década. Todavia, a diversidade e o contraste que caracterizaram as produções poéticas das gerações de 80 e 90 parecem ter continuidade entre as representantes da poesia mais recente.




AGRIPINA COSTA MARQUES 




A poesia de Agripina Costa Marques, lançada ao público em 1993, é produto de um trabalho que de há muito tempo vinha sendo desenvolvido e exilado na escrivaninha da poetisa. Na década de 80, a coleção de poesias escritas por Agripina já era suficiente para constituir um magnífico livro que, no entanto, era sempre adiado para uma data imprecisa. A poetisa não tinha pressa. Casada com o poeta António Ramos Rosa, dedicava-se mais ao prazer de secretariar o trabalho do marido, de quem sempre foi e é uma admiradora ardorosa, do que se preocupar com a publicação da própria obra.


A recepção calorosa da crítica ao livro de estréia da poetisa – Instantes. Permanências - confirma o talento da autora e a qualidade do seu trabalho.



O poema de abertura do livro, Ciclos, Fragmentos, Idades, anuncia a “sabedoria sossegada”,[i] que conduz o discurso poético da Agripina Costa Marques, ao longo dos poemas reunidos no livros:



Que me tome a serenidade

que sobre mim se verta

em generosa dádiva.

Que ante as dissonâncias

que ferem a minha mente

lhe consagre uma leveza de asa

imune: a ameias que sitiam

ou a iníqua voragem.



Comentando as poesias da autora, publicadas no livro Ciclos, Fragmentos, Idades, Fernando Martinho Guimarães diz: “Ao amontoado desertificante das coisas do mundo, a poesia de Agripina Costa Marques propõe e celebra a origem fundadora da consubstanciação. Mas sem liturgia nem homilia que no seu procedimento ritualista nega o que afirma”:[ii]



Quando se vela a luz numa penumbra

mais fundamente no teu conhecimento

evocas a Presença em recíproco apelo.

Com o olhar renovado na abolição do tempo

De novo acedes à invisível luz que em ti dispersa

Sob a expansão de um dilúvio solar.



A realidade, o quotidiano não é dado de forma mimética, mas transfigurado, interiorizado e filtrado pela percepção particularizada da autora:



Na rara limpidez, a fragância

mais pura consagra o dia pleno

a floração das rosas.

Rompem a obscuridade, de coração

vibrante. Deslumbram:

os raios solares, a seiva ardente.

Cálices em avidez fruindo a luz.



A poesia de Agripina Costa Marques não se institui como espaço para confessionalismo ou desabafo das inquietudes pessoais da autora, tampouco de faz como arma de protesto. Nela a palavra não tem a missão fundadora e nomeadora do real, pois , para a poetisa, “nome é prece que em recolhimento/ se murmura. Em fervor concentrado/ no nome se nomeia o que o nome/ mediatiza quando nele se identifica/ nome e nomeado na extrema contensão/ de nomear por dentro do nome”. Como diz Fernando Martinho Guimarães: “se fosse o caso de reconduzir a poesia de Agripina Costa Marques a uma cosmogonia confrontadora, seria à de Anaximandro pela recusa em nomear explicitamente a origem e horizonte de inteligibilidade a partir do qual tudo acede ao ser”.[iii]



Zenóbia Collares Moreira

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Notas

[i] A expressão é de António Cândido Franco.

[ii] Fernando Martinho Guimarães, “Recensões” in Letras & Letras, 1999, p. 3.

[iii] Id. Ibidem, p. 4.