23 de mai. de 2011

A poesia feminina portuguesa na viragem do milênio.

A partir dos anos 80 o panorama poético português começou a sofrer alterações com a irrupção de novas e expressivas vozes femininas que traziam em suas poéticas os elementos definidores da poesia fin-de-siècle, principalmente aqueles que põem em evidência a alternância entre continuidade e ruptura. Caracteriza a poesia desta geração a pluralidade de tendências poéticas, algumas herdadas das décadas anteriores que se foram estendendo por vários caminhos, ora se orientando por paradigmas opostos, ora se articulando em torno de alguns aspectos de interesse comum.

Daí a instauração, por um lado, de uma maneira nova de perspectivar o real através da revalorização do quotidiano e, por um outro lado uma espécie de resgate da tradição que busca recuperar linguagens e modelos do passado. O interesse comum pela introdução de elementos renovadores na abordagem do real quotidiano está bem evidente na poesia de Teresa Rita Lopes, Rosa Alice Branco, Adília Lopes, dentre outras. Todavia, cada poetisa faz uso de linguagens diferenciadas para referenciar este real.

À essas vozes femininas que estrearam nos anos 80, somam-se outras na década de 90: Agripina Costa Marques, Ana Luísa Amaral, Ana Marques Gastão, Ana Paula Inácio, Graça Pires, Inês Lourenço, Maria do Rosário Pedreira, dentre outras. A diversificação de poéticas tem continuidade na obra das estreantes. Com a geração de 90, tem continuidade intensificadora alguns aspectos pressentidos nas gerações anteriores, nomeadamente, o de uma poesia dominada por uma negatividade melancólica, por um sentimento de despedida e de perda de uma modernidade que se despede, que caminha para o seu momento crepuscular.

O novo milênio, ainda dando os seus primeiros passos, vem dando continuidade a muitas linhas e tendências poéticas que transitaram para o ano 2001, abrindo caminhos para muitas outras, de acordo com o espírito da liberdade de expressão que caracteriza a poesia desde a instauração do Modernismo. Todavia, a poesia feminina portuguesa contemporânea caminha para uma aceitação da tradição, para um relacionamento harmonioso com a vasta herança dela recebida, promovendo, assim, uma articulação entre tendências diversificadas que se situam tanto nos legados do passado poético quanto nas inovações do presente, estabelecendo um maior equilíbrio entre tradição e novidade.

Não obstante a ocorrência de tendências dominantes na poética feminina dos vinte anos que antecedem a viragem do século, não se pode afirmar que chegaram a formar uma nova corrente. O que se pode observar e constatar são as grandes diferença e diversidade de poéticas coexistentes, afirmando o individualismo que preside a criação literária contemporânea. Contudo, tais diferenças não significam a ausência de pontos em comum entre as diversas e variadas poéticas finisseculares, notadamente no que diz respeito ao gosto pela realidade exterior, ao quase abandono do uso da metáfora, do culto do objetivismo e, principalmente, por uma tendência a se deixar seduzir pela recuperação e redimensionamento de elementos da tradição eleitos e depois relegados ao esquecimento pelas gerações anteriores.

Em seu conjunto, as poéticas que irrompem na cena literária das duas últimas décadas do milênio assinalam o advento de um ciclo inovador que reafirma e consolida as mudanças que já vinham sendo processadas desde a década de 60, através de poetisas como Maria Teresa Horta, Salette Tavares, Fiamma Hasse Pais Brandão, Ana Hatherly, Luisa Neto Jorge, dentre outras.

O itinerário do lirismo feminino, iniciado no longínquo século XV, aproxima-se do presente da história literária, da contemporaneidade mais imediata trazida pelo terceiro milênio, para a qual as poetisas que se estrearam a partir dos anos 60 transitaram. Parte das poetisas pertencentes à novíssima geração fin-de- siècle que atravessaram as fronteiras do milênio, levaram para o século XXI, através das suas obras, novas visões, novas formas de estar na poesia e no mundo, deram todo o conjunto de inovações, de mudanças e de vivências literárias que caracterizaram o universo multifacetado da modernidade novecentista, constituído por todas as contribuições estéticas que fizeram do século XX uma das épocas mais prodigiosas da literatura. 
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Autora: Zenóbia Collares Moreira. In O Itinerário da poesia feminina em portugal: Século XX, s/d.




3 de mai. de 2011

O lirismo feminino sob o signo do modernismo: Estudo de poesias


ANA HATHERLY 

Ana Hatherly, pseudônimo literário usado pela poetisa Ana Maria Rocha Pereira, nasceu no Porto em 1929. Em 1958 estreou na cena literária com a obra Caminhos da moderna poesia portuguesa. Neste, como nos demais livros escritos entre 1958 e 1962, a poetisa ainda não atingira o nível de excelência que revelaria nos poemas de Sigma, livro publicado em 1965, sob o influxo da de movimentos de vanguarda, dos quais participou ativamente, principalmente o Grupo Poesia Experimental Portuguesa. Com este livro a poetisa inaugura uma nova fase de sua produção poética, até então ainda presa às formas poéticas mais tradicionalistas, mais comedidas em relação às novidades vanguardistas, que já haviam conquistado direito à cidadania nas letras lusitanas,desde o movimento Orpheu. Nos livros que se seguiram à publicação de Sigma, Ana Hatherly dá continuidade às incursões poéticas nos domínios do experimentalismo, fazendo uso de uma linguagem mais instigante, por vezes sutilmente irônico que, em alguns casos, parece incorporar ecos da poética de Álvaro de Campos, aliados a determinados artifícios do imaginário surrealista, aos quais imprimiu sua marca pessoal, conseguindo atingir resultados bastante expressivos. Tais peculiaridades conferem ao fazer literário da poetisa “um vigor e uma audácia que não são qualidades comuns a muitas das personalidades masculinas de poetas do mesmo período”.[1] Ana Hatherly publicou uma grande quantidade de livros de poesias, novelas, crítica literária e ensaios. 
Os dois textos que se seguem foram coligidos na obra de estréia da autora – Um ritmo perdido, no qual se revela inclinada a um tipo de discurso de tendência filosófica e moralizadora que, conforme foi dito antes, é muito distanciada da poesia que surge a partir de 1965, com Signo, o seu livro mais bem conseguido: 


MAS QUE BRANCURA... 


Mas que brancura impressionante 
De estátua idealizada... 
Acaso o tempo nos branqueia
Os ossos e o sentir? 

Sai daí, 
Humanidade pertuante do meu sonho! 
Queres ser alma e corpo 
De matéria que nem sequer existe? 


AQUELE QUE PROCUROU 
Aquele que procurou 
E não encontrou, 
É o homem desiludido. 
Aquele que não procura 
E tudo encontra 
E nada pode fazer do que achou, 
É mais que infeliz: 
Sabe a verdade. 

Com o livro Eros frenético, publicado em 1968, Ana Hatherly assume o exercício da poesia erótica, também praticadas por muitas outras personalidades femininas da poesia contemporânea incluídas neste ensaio. Comparando-se os dois poemas anteriores com os que serão dados a seguir, observa-se, logo à primeira leitura, a grande diferença entre as duas fases da poesia da escritora, antes referidas. A poesia que aparece a partir de 1965 perde o tom conceituoso e moralizador, cedendo lugar a uma expressão poética revitalizada por uma força dramática e lírica, por um ímpeto de paixão que perpassam os versos, na ânsia de exprimir a linguagem do corpo, a ardência do desejo, seus segredos, sua busca de consumação e êxtase: 

VOLÚPSIA

O corpo fala
na muda voz da idéia cruamente pura
seus poderes são pensamento-acto.
Oh sombra impaciente
ardes sem limite
O desejo tem espaços próprios
seus segredos
seus exaltados erros
Oh impúdico
Teu furor é inquieto
e imenso
Emaranhados neste anseio-sonho
nesta precisa-aposta


Tu – Eu
Neste ardente ardor
só tu és pausa
fuga
além-palavra
O nosso corpo freme
na adoração do grande olvido
Vagas sucessivas submergem
este ser-não ser
este querer-já-não querer
esta renovada festa-febre

Oh exultante
exaltante festa do tumulto
Sorri
Sorri-me
Eis o momento:
todas as penas imagináveis
te dissolvem nesta adoração
cruel
sem busca
abolida
Amor é fogo que arde e se vê
em ti
em mim
em tudo o que consome
Cegos
surdos
apenas te sabemos
apenas te queremos
fatal fome

Bataille ensina que pelo erotismo se transforma a atividade meramente sexual (esta concernente a todo animal) em uma “busca psicológica, em um momento de auto conhecimento e de questionamento do ser, configurando-se, assim, o erotismo, como um aspecto da vida interior do ser-humano, que é sempre vivenciado como transgressão e enriquecimento”.[1]
Na poesia do século XX, poetas e poetisas lançam-se nessa busca psicológica sobre a qual escreve Bataille ou simplesmente na busca transgressiva de desafiar os tabus culturais que durante tantos séculos cercearam, através dos mais variados mecanismos da censura, a expressão da sexualidade e do erotismo na poesia. Qualquer poesia que ousasse transpor os limites desses tabus servia de argumento para rotular o como obsceno, libertino e quantos epítetos servissem para relegar o autor e a obra ao mais desprestigiado nível da escala da valorização estética. As mulheres, principalmente, não ousavam abordar tais intimidades senão veladamente, através de um discurso que girava em torno da expressão amorosa do sentimento, sem alusões ao corpo, às pulsões do desejo e, menos ainda à fruição do amor sensual, dos prazeres da carne.

FERNANDA BOTELHO 


Natural no Porto, em 1926, Fernanda Botelho, além de poetisa talentosa, é romancista de primeira linha, consagrada dentro e fora do país. Sua vida literária iniciou-se com a colaboração que deu às folhas de poesia da revista Távola Redonda. Seu livro de estréia, As coordenadas líricas (1951), teve excelente recepção no meio literário. 
A poesia de Fernanda Botelho é desconcertantemente antilírica, dura e pontilhada de sarcasmo, notadamente quando visa comunicar a sua estranha e particularíssima visão de mundo, quase sempre filtrada pelo crivo da ironia e do cinismo mais escancarado. Estas são afinal as armas de defesa que a poetisa utiliza para ocultar amordaçar a sua natureza emotiva, o seu latente lirismo, os quais rejeita e esconde. 
Seguem-se algumas poesias da escritora coligidas em seu livro de estréia, As coordenadas líricas, 1951: 


AS COORDENADAS LÍRICAS 

Desviou-se o paralelo um quase nada 
E tudo escureceu: 
Era luz disfarçada em madrugada 
A luz que me envolveu. 
A geometria forma de meus passos 
Procura um mar redondo. 
Levo comigo, dentro dos meus braços, 
Oculto, todo o mundo. 
Sozinha já não vou. Apenas fujo 
Às negras emboscadas. 
Em cada esfera desenho o meu refugio 
- as minhas coordenadas. 

LEGENDA 

Como quem sente 
na legenda do presente 
o fim duma história breve, 
vou vivendo um sonho intacto 
num pesadelo crescente 
-uma luz fecunda e leve 
nos olhos pardos dum gato. 


MENTIRA 
Mentira passada, 
Foi enredo? 
Oi, medo? 
Não foi nada 
Agora, tem afluências 
E confluências. 
Carta hidrográfica incoerente 
E sem fim. 

Do rio-mentira com sua nascente, 
Do rio-ameaça 
Que se abraça 
Em mim. 

AMNÉSIA 
Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas 
que apenas obtenho este desenho pardo 
que a lâmpada de vinte e cinco velas 
estende no meu quarto. 
Posso pedir, em vão, a melodia, a cor, 
e uma satisfação imediata e firme. 
(A lúbrica face do despertador 
é quem me pesa e oprime.) 
e peço, em vão, uma palavra exacta 
numa fórmula sonora, que resuma 
este desespero de não esperar nada, 
esta esperança real em coisa alguma. 
E nada consigo, por muito que peça! 
E tamanha ambição de nada vale! 
-que eu fui densa e tive uma amnésia: 
esqueci quem era e acordei mortal. 


FERNANDA LEAL 

Maria Fernanda Leal nasceu em Lisboa, e 1942. Seu livro de estréia, Do outro lado do ar,data de 1983.Nela a concisão da expressão poética está ao serviço de um estilo depurado, construído pelo viés de uma rigorosa síntese, sustentada pelo uso da palavra exata, da expressão precisa, sem volteios retóricos ou floreados metafóricos. 
Apesar da brevidade de alguns textos, estes, no entanto, abrem-se para diversas leituras e múltiplas interpretações. 

ALELUIA 
Sou pássaro santo 
Ovo de Páscoa 
No meio da família. 
Fecham-me viva 
À força 
Nos beijos. 
Só cheiros 
A saliva 
Aleluia! 

ANOITECER 
Um mundo nascido 
Dentro do meu quarto, 
Ao som refractado
Do canto do sol 
Deslizam por mim 
Cheios de penumbra 
Os nós destacados 
Da noite a chegar. 

Despedida 
É sentir que a alma se entristece 
Por deixar um amigo ao fim do dia 
É beijar em cada dia o sol que desce 
Sem deixar o sol da véspera que nos grita 
É correr sem ver a praia rente ao mar 
E sentir a brisa branda na corrida. 

Despedida
É ver fugir o vento na cortina 
Quando ele se revolta ao pé da gente 
É ficar à beirinha do passeio 
E fechar o ar da noite em nosso peito 
P´ra apagar um candeeiro em cada esquina.

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Nota 

[1] G. Bataille, O erotismo, p. 56.

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Zenóbia Collares Moreira. "O lirismo feminino sob o signo do modernismo". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Cap. II.






Fiama H. P. Brandão, Isabel Aragão, Leonor de Almeida.


FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Poetisa e teatróloga, Fiama Hasse Pais Brandão nasceu em Lisboa em 1938. Com o livro Ao chapéu de chuva ganhou o prêmio Revelação 1951, de Teatro, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1977 recebeu o prêmio Adolfo Casais Monteiro, pela obra O texto de João Zorro.
Fiama é um dos maiores talentos da dramaturgia e da poesia em Portugal, uma das mais fortes referências dentre as melhores poetisas de sua geração. Participou ativamente no grupo “Poesia 61”. No domínio da linguagem poética vem sustentando durantes décadas um lugar de destaque.
Na poesia que se segue, a poetisa intertextualiza a “Cantiga” Barcas Novas de João Zorro de uma forma singular: pois, além de iniciar o seu poema com a transcrição do texto integral do poeta medieval, com o qual estabelece um diálogo permeado de crítica ao contexto histórico contemporâneo, também usa a forma medieval pararelística:

BARCAS NOVAS
(João Zorro)

Em Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!

Em Lixboa, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai, mia senhor velida![1]


Lisboa tem barcas
Agora lavradas de armas.

Lisboa tem barcas novas
Agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terras

São de guerra as barcas novas
Ao mar mandadas com homens

Barcas novas são mandadas
Sobre o mar

Não lavram terra com armas
Os homens

Nelas mandaram meter
Os homens com a sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
Novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
Armas novas são mandadas

É oportuno lembrar que o pararelismo é um dos traços definidores da poesia dos cancioneiros medievais, prodigamente usado nas Cantigas de Amigo, nas quais coplas (estrofes) de dois versos (dísticos) repetem intencionalmente versos de outros dísticos que as antecedem. “O pararelismo é, assim, uma característica estrutural que se pode manifestar tanto fonética como semanticamente. Nesse sentido é de se notar que esse recurso, por vezes em formas não imediatamente evidentes, constitui o esqueleto de muitos textos da poesia barroca”.[2] Na poesia contemporânea, tais repetições assumem um outro significado, como se pode constatar nos textos poéticos neo-realistas e na poesia concreta. O poema Barcas novas, de Fiama Hasse Pais Brandão, exemplifica muito bem esse trânsito de elementos próprios da poética medieval para a poesia contemporânea, na qual a forma pararelística e a repetição de uma parte do verso no verso seguinte, bem como o jogo permutativo entre as palavras barcas, armas e homens, guerra e terra, veiculam a crítica ao contexto sócio-político da época.
A intertextualidade na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão é de suma importância para a expressão de sua visão particularizada da história de Portugal. A poetisa tanto projeta o discurso histórico no seu poema como estreita as relações intertextuais entre o seu texto e os textos de autores do passado. Esse debruçar-se sobre os fatos históricos para criticá-los faz parte dos interesses da geração “Poesia 61”, da qual Fiama fez parte.  No poema dado a seguir – Inês de manto - a poetisa resgata a imagem de Inês de Castro através de um hábil processo de desocultação da máscara com que a hipocrisia histórica vem recobrindo a face da hediondez trágica que envolve a morte da amante de D. Pedro.

INÊS DE MANTO

Teceram-lhe o manto
Para ser de morta
Assim como o pranto
Se tece na roca

Assim como o trono
E como o espaldar
Foi igual o modo
De a chorar

Só a morte trouxe
Todo o veludo
No corte da roupa
No cinto justo

Também com o choro
Lhe deram um estrado
Um firmal de ouro
O corpo exumado

O vestido dado
Como a choravam
Era de brocado
Não era escarlata

Também de pranto
A vestiram toda
Era como um manto
Mais fino que a roupa

O poema Inês de Manto focaliza de uma forma crítica a figura histórica de Inês de Castro. Já no título pode-se ver a metáfora da célebre frase “a que depois de morta foi rainha”, ou seja a Inês que foi assassinada não tinha manto, não tinha a realeza (teceram-lhe o manto / para ser de morta). De manto (morta e rainha), Inês entra para a história, torna-se um mito. Inês de manto é a Inês encoberta pela mitificação histórica de um “amor”, quando o que se tem de fato é uma bem urdida trama (teceram-lhe o manto/ para ser de morta) política que se armou pelo poder que teia do mito( assim como o pranto / se tece na roca) disfarça.


ISABEL ARAGÃO

Nascida no Porto em 1964, Isabel Aragão formou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade do Porto. Em 1985 foi galardoada com o Prêmio Nacional de jovem literatura atribuído pela Associação dos Estudantes da Faculdade de Medicina do Porto, com a coletânea Sabor a madrugada. No mesmo ano foi contemplada com o Prêmio Manuel Laranjeira atribuído ao livro Cantos do Corpo, prefaciado por Maria Teresa Horta que não poupa a jovem escritora que considera uma de enorme talento e qualidade de estilo. Cantos do corpo, como o título sugere, aborda a questão do “desejo feminino como palavra que de escrita passa como desejo e corpo até ao outro, a quem lê, quem imagina – projectado no écran da escrita”.[3]
A poesia de Isabel Aragão inscreve-se na vertente erótica do lirismo português, desenvolvendo a temática do corpo liberto dos espartilhos da repressão. Ela segue pelos caminhos libertários dos que fazem uma literatura transgressiva em relação aos tabus culturais e religiosos que interditam, principalmente, à mulher a expressão da sua sensualidade. Com efeito, Isabel Aragão busca exatamente realizar uma literatura que se erga como um libelo em favor da liberdade de expressão. Enfim, o que ela faz e defende com muita ousadia é o mesmo que Alexandrian também advoga, na convicção de que “uma literatura cujo fim é afirmar os direitos da carne é perfeitamente legítima. Mas exige, se não se quiser comprometer o equilíbrio humano, que se mantenham perante esta os direitos do espírito, criticando-a objetivamente”.[4]
É com a sabedoria da palavra que a sensibilidade do espírito que Isabel Aragão vai em busca “do corpo feminino da poesia”, para usar a expressão de Maria Teresa Horta. No prefácio do livro Cantos do Corpo, esta escritora, comentando a escrita de sua autora, exalta a ousadia com que ela faz a exposição do corpo em seus textos e a habilidade com que deixa a dúvida entre o imaginado e o vivido. “E é esta suspeita que perturba - é esta a ousadia: o corpo sexuado da mulher. Ou a mulher, igualmente, como corpo sexuado. Vivo – vivido...”

como remos os braços
projectam atlânticos
na rua íngreme do teu corpo
e há uma charrua no ventre que me despe
nos ermos compactos que crescem
entre as pernas peço-te o mar
numa qualquer ilha de viagens em regresso
quando perto do escuro nascemos

escrevo – a mesa é o teu corpo roçando
as palavras –
as mãos como que a lavarem santuários
no branco sujo dos teus beijos
ouço teus paços plantarem árvores
no azul da chuva e os rios descerem
na luta dos meus braços com as pernas

tenho-te dentro das pernas soltas
escrevo os dias com as pontas dos troncos
morena de pedaços tardios em tuas horas
e quero-te – mergulho de peixe no voar das pedras
quando te faço nas dunas – o corpo do silêncio

o teu corpo emigra no meu
como rios surdos de paisagens
e és cúmplice da carne nua
e as docas enroladas são as margens
de cardumes em viagem contra o cais

As poesias de Isabel Aragão, constróem-se no percurso de uma busca incessante de dar expressão que dê conta exata da linguagem do corpo feminino (corpo roçando as palavras), a linguagem da paixão (quero-te – mergulho de peixe no voar das pedras / quando te faço nas dunas – o corpo de silêncio).


LEONOR DE ALMEIDA

Poetisa, nascida no Porto em 1915, viveu longas temporadas no estrangeiro. Tem vários livros publicados em Portugal. Sua poesia revela uma identificação indisfarçável com a de José Régio, por um lado, e a de Florbela Espanca, por um outro lado, o que empresta um caráter híbrido à sua produção poética. Como Régio, a autora, em grande parte dos seus textos, se expressa com forte eloqüência dramática; como Florbela se espraia no domínio de Eros e da escrita do corpo. O texto que é dado a seguir, colhido no livro de poesias Caminhos frios, publicado em 1947, exemplifica bem a referida identificação da autora com a expressão poética florbeliana:

POSSE

Vem cá! Assim, verticalmente!
Achega-te... Docemente...
Vou olhar-te... E, no teu olhar, colher
Promessas do que quero prometer,
Até à síncope do amor na alma!
Colemos as mãos, palma a palma!
A minha boca na tua, sem beijo...
Desejo-te, até o desejo
Se queixar que dói.
E sou tua, assim, como nenhuma foi!

Dentre as poesias que revelam as aproximações entre expressão poética de Leonor de Almeida com a expressão poética regiana, foram selecionadas as duas que se seguem:

ENTRONIZAÇÃO

Tenho o braço cansado,
A mão dorida, trôpega...
Mas uma espécie de ânsia sôfrega
Ordena:
Empurrar tudo!
- Não quero, nem passado,
Nem presente,
Nem futuro! –

O braço faz de muro,
A mão abre caminho, coerente...
Quero uma estrada cá dentro... lisa, plana,
Para a tua palavra mágica, profética,
Bela e magnética,
Passear livremente,
E demoradamente!...

Portanto, a poesia de Leonor de Almeida é erótica em suas bases, mesmo quando não se trata de uma abordagem na qual o amor não é o móvel principal do discurso poético. A sua visão pan-erótica do mundo dá um toque muito pessoal e suave a expressão da sensualidade irreprimível de sua lira.


[1] Cantiga medieval. Barcas Novas, de João Zorro, intertextualizada por Fiama Hasse Pais Brandão.
[2] E. E. de Mello e Castro, O próprio poético, p. 93.
[3] Maria Teresa Horta, “Prefácio” :in Cantos do corpo, p. 5.
[4] Alexandrian, História da literatura erótica, p. 07.

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Zenóbia Collares Moreira. "O lirismo feminino no Modernismo". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Capítulo II.

CONTINUA...

2 de mai. de 2011

Maria Alberta Menères, Maria Amélia Neto, Maria Teresa Galveias,

 




MARIA ALBERTA MENÉRES



Poetisa, ficcionista e tradutora nascida em Vila Nova de Gaia, foi casada com o poeta Ernesto Emmanuel de Mello e Castro, com quem organizou e publicou a Antologia da Poesia Portuguesa –1940-1977. tradutora, tem vasta colaboração em jornais e revistas literárias. Foi diretora do Departamento de Programas Infantis e Juvenis da Radio televisão Portuguesa (1975-1986). Além da sua obra poética, escreveu uma considerável quantidade de livros infanto-juvenis. Com o seu livro Água Memória, recebeu o prêmio Giacomo Leopardi, ao qual seguiram-se outros, como : Prêmio Especial de Teatro Infantil da Secretaria de Estado e Cultura, (1979); Grande Prêmio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças (1986), dentre outros. Como poetisa, revela uma aguçada consciência do mundo e é a este que procura desvendar, interrogar e captar seus mistérios.



RELEVOS

Onde o calor tortura o linho

e uma lenta erupção mastiga o tempo

lembro-me doutras coisas tantas coisas

de que me vou esquecendo



Dodecaedro e só por dizer dode

dedo me ocorre e me socorre

dedo por dentro cheio de mistério

por fora a porta que na unha dorme



Um pisar leve de não acordar

os homens que no mundo vão dormindo

Um talher luminoso Uma cadeira

A hora mais provável do sorriso



Coritibandos não são pregos

mas podem ser mais que pisados

À noite as vozes quando saltam

provocam sinos como passos



Sua poesia acompanha de perto a prática experimentalista dos anos sessenta sem, no entanto, desprezar outras formas de estar na criação poética. Assim, obedecendo quiçá uma sua tendência ao ecletismo, tanto deambula pelo terreno da poesia experimental, quanto se aventura por caminhos mais tradicionalistas, nos quais encontra o soneto e, nele, a forma perfeita para libertar o seu insubmisso lirismo.



Verte rosas teu rosto vês mudado

no tempo resto de tecíveis horas

Teu sentido ou cuidado tido dado

por ti de quem não sabe como foras



Amor porquê no circo só ferência

Alguém de alguém não disse lei nem quando?

Mata-me tanta vez quanta violência

É violeta ou é letra desviolando



Luminados assombros sombras iceis

Por onde Amor? Por onde que remorsos

Nascem dos dedos harpas retangíveis?



Verte rosas teu rosto vês possíveis

um a um tuas lágrimas dos nossos

dias mal soletrados e ilegíveis



A poesia de Maria Alberta Menéres não se constrói enquanto projeção de um estado subjetivo. Seu olhar incide sobre o que está além do seu eu social ou individual, invade as fronteiras de um imaginário transfigurador da realidade. Como outros poetas de sua geração, faz da meta-poesia um dos mais ricos momentos de reflexão poética, daí dizer: As folhas dos livros não abanam/ como as folhas das árvores/ ao sopro do meu pensamento./ E no entanto a aragem deveria ser esquiva/ e infiltrar-se por entre as palavras/ com manhas de lagarto/ estirando-se ao sol de todos os sentidos.



MARIA AMÉLIA NETO


Nasceu em Montijo, a 30 de outubro de 1928. Poliglota, trabalhou como tradutora e como secretária. Manteve-se sempre à margem de grupos e revistas literários. Desde o ano de 1960 vem publicando livros de poesias, que lhe angariam prestígio no meio literário pela indiscutível qualidade do que escreve. Jorge de Sena, referindo-se à obra da poetisa, chama atenção para a sua “dicção hierática e solene, quer no verso curto, quer no verso longo”, a que se somam “uma viva sensibilidade visionária, uma contida melancolia solitária”, postergando para um plano secundário a expressão quase despojada de emoção, o empobrecimento das imagens pelo uso de metáforas banais, animando-os de subterrânea e insólita intensidade[1].



MEDITAÇÃO SOBRE SÍSIFO



Vi-o de novo,

pela alquimia ancestral da solidão.

De novo se afundou no tempo

A pergunta desde sempre murmurada,

E o fogo crepitou suavemente

E queimou, uma a uma,

As horas da noite.



Trazemos na retina a eternidade.

Da aurora

Conhecemos os sinais,

Os planetas adormecidos,

O rio coberto de junquilhos mortos.

Do resto do tempo

Conhecemos o orgulho,

A lucidez desumana,



A tela por pintar

E o ruído subtil do medo.

Aprenderemos a crescer ao lado das roseiras?

A saciar de sol a demência do vazio?

A destruir as velhas raízes?

Fluido, fluido é o cerco da solidão.



O AREAL

Só há areia

E um céu demasiado lúcido.

A transparência intacta feriu o nosso cérebro,

Mutilou os nossos pensamentos,

Fez nascer violetas de fogo no silêncio.

Arrastados pelas torrentes de luz,

Alagamos de solidão os nossos olhos.



Nem silvados, nem pauis,

Nem o pulsar do álamo.

É necessário continuar,

Mas quem descobre o rumo na areia?

Escutei vozes e nem uma conhecia o caminho,

Inventei vultos para me fazerem companhia,

E todos mantiveram os olhos cerrados.

Se eram cegos, porque me sorriam?

E porque havia nos seus dedos

A sugestão da cítara?

E porque me apontou um deles

Um flamingo, um cipreste, um lago,

Que os seus olhos não viamE que os meus tinham começado a imaginar?



A poetisa não se integrou na Poesia 61, seguindo uma linha pessoal, alheada das propostas poéticas relacionadas com a meta-poesia, a questão de gênero e a discussão acerca da identidade feminina. Anti-lírica, a emoção e o sentimento estão submetidos a um filtro intelectual que conduz com rigor os versos dos poemas. Sua linguagem é a do despojamento sentimental.



MARIA TERESA GALVEIAS


Poetisa nascida em Alcobaça, em 1932. Depois de casada, passou a residir em Lisboa.embora desde muito jovem tenha começado a escrever, só veio a publicar o seu primeiro livro de poesias– Fronteira - em 1959, o qual, sendo considerado a melhor obra estreante do ano, foi galardoado com o primeiro prêmio de originais do S.N.I. A poetisa já vinha obtendo prêmios em sucessivos “Jogos florais” realizados em diversas cidades portuguesas e das Ilhas açorianas, além de inúmeras menções honrosas. Suas poesias estão incluídas na Antologia do Prémio Almeida Garrett, editada pelo Ateneu Comercial do Porto. Depois da publicação de Fronteira, escreveu outros livros, dentre os quais Uevu (Ouçam), em 1968.

A seguir, poemas do livro Fronteiras, no qual as poesias são percorridas por um sopro de refinada religiosidade, de sutil moralidade, de apelo por uma paz, fruto de reflexões da poetisa acerca da violência que abala o mundo dos homens, subjugados pela insanidade das guerras:



PROMESSA



De cada céu cruzado

E metralhado,

Por projécteis de fogo e de mistério;

De cada mar sulcado

E penetrado,

Por engenhos sem forma nem destino;

De cada mundo violado

E desmembrado,

De cada olhar sem fé,

Nem luz, nem brilho

É que há-de renascer outro Deus – Filho!



SIBÉRIA



Prenderam-lhe nos pés,

Sem sequer ser julgado,

Uma ignóbil cadeia de grilhetas,

E nos seus olhos calmos, juvenis,

Como um clarão foi lida uma vendeta!

Não sabe se regressa nalgum dia,

Prisão sem grade a neve que o encerra,

A mãe o espera, a noiva o imagina,

Sem lar nem cruz,

Só prisioneiro de guerra.



Em todas as poesias de Fronteira, o discurso de Maria Teresa Galveias surge sempre impregnado de um pessimismo que transita por seus versos, plasmado pelo viés de uma impessoalidade que não deixa entrever a mínima fração do interior do “eu-poético”. Este assume-se como o aporta-voz do tédio e da agonia (nos enche a alma toda de amplidão / no esboço dum bocejo), do niilismo que recobre toda a esperança (procuro ainda, e os meus passos vão / em torno da verdade projectada, / somente os olhos cegos de amplidão / querem cerrar-se em nada) de quem, melancolicamente conclui, que no final da travessia existencial, na “fronteira” que separa as duas realidades do homem – a vida e a morte – este só tem uma certeza: a da sua finitude na vida terrena. O resto é indagação e nada mais, pois como ela adverte:



Quem fez a travessia não voltou

Que outro mundo é lá

E a vida finda.

Deste lado sabemos o que existe,

Triste daquele

Que tenta ainda.



No poema Revelação, depois de fazer todo o inventário das coisas que cantou em seus versos – natureza, o universo, Deus e o homem – conclui que nada disto, “nada foi poesia”, nem poeta era ainda. Pois, como “revela” no fecho do poema: Só quando tu vieste, meu amor / trazendo em ti um cântico diverso / É que nasci poeta em cada verso.



[1] Jorge de Sena, Líricas portuguesa, vol. II, p. 409.



Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa. Cap. II.



CONTINUA

Maria Teresa Horta, Natália Correia, Natércia Freire,









MARIA TERESA HORTA




A poetisa, ficcionista, crítica literária, teatróloga e jornalista Maria Teresa Horta, nasceu em Lisboa. fez parte do movimento literário Poesia 61 e assinou com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa o livro Novas cartas portuguesas. Como poetisa publicou: Espelho inicial (1960), Tatuagem (Poesia 61), Cidades submersas (1961), Verão coincidente (1962), Amor habitado (1963), Candelabro (1964), Jardim de inverno (1966), Cronista não é recado (1967), Minha senhora de mim (1971), Educação sentimental (1975), Mulheres de Abril (1977), Poesia completa (1983, Os anjos(1983). Como ficcionista publicou vários romances e contos.

Os poemas que vêm a seguir foram coligidos dois livros publicados a partir da década de setenta: Minha senhora de mim (1971) [1] e Educação Sentimental (1975). No primeiro, Maria Teresa Horta põe em prática uma recriação de textos buscados na tradição poética lusitana, privilegiando especialmente o cânone próprio da lírica medieval, sem desprezar alguns legados da lírica renascentista. Esse livro afirma-se como abertura uma vertente erótica da poesia de Maria Teresa Horta, espécie de fio de Ariadne a guiar o discurso poético da autora nos labirintos da sensualidade e a auto afirmação femininas que, em sua obra, encontra a mais refinada expressão. A desenvoltura com que a autora faz a abordagem do tema, a franqueza absoluta do seu desinibido discurso são prenúncios das obras que a ele se seguiriam, como Educação sentimental e Rosa sangrenta (1987), bem mais atrevidas e transgressivas. O impacto causado pelas poesias de Nossa senhora de mim torna-se compreensível, sobretudo porque o livro era de autoria feminina, o que potencializou o efeito e a reação da censura. Todavia o que mais pesou foi o fato da poetisa ter-se apropriado das formas e motivos próprios de uma tradição lírica nacional para subvertê-las ao seu bel prazer, despojando-as das suas características mais essenciais ao mudar o discurso da voz feminina das Cantigas de amigo[2] medievais que, embora seja feminina a voz que nelas fala, são compostas por um homem. É justamente esta voz feminina das cantigas de amigo que Maria Teresa Horta faz ressurgir nesse livro, não mais como objeto de um discurso que não é seu, mas como sujeito assumido do seu próprio discurso (Regresso para mim / e de mim falo / e desdigo de mim / em reencontro), com vós própria e assumindo uma atitude reivindicatória bem contrária à da mulher medieval.

No poema Regresso, que abre o livro Nossa Senhora de Mim, vê-se, em seus versos, o anúncio do retorno da mulher, representada nas cantigas medievais, pela voz de Maria Teresa Horta, tornada, ela própria, a voz que assegura o retorno dessa mulher falada pelo homem que se apropriava poeticamente do seu discurso. Todavia, o “reencontro” com o passado lírico de que fala o poema “não pode ser figurado, em última análise, senão como “desencontro”:



Regresso para mim

e de mim falo

e desdigo de mim

em reencontro

[...]

trago para fora


o que é secreto

vantagem de saudade

o que é segredo



retorno para mim

e em mim toda

desencontro já o meu regresso.



No poema, dado a seguir, a autora intertextualiza o verso inicial do poema Cantiga, de Francisco Sá de Miranda, poeta renascentista português (Comigo me desavim / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim). [3] Maria Teresa Horta apropria-se do verso “comigo me desavim”, do poeta quinhentista, para iniciar o poema que leva o mesmo título que nomeia o livro. Nele, o discurso poético é caracterizado pela repetição reiterada de pronomes da primeira pessoa do singular, além de usar a forma pararelística própria da Cantiga de Amigo medieval. Esse uso reiterado de pronomes na primeira pessoa singular, somados à estrutura repetitiva, própria das cantigas medievais paralelísticas, denotam a fixação obsessiva em afirmar a identidade feminina. A reiteração da expressão “de mim” na primeira, terceira e quinta estrofes do poema funciona como uma espécie de refrão:




Comigo me desavim

minha senhora

de mim

sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço



Comigo me desavim

minha senhora

de mim

nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços



Comigo me desavim

minha senhora

de mim

recusando o que é desfeito

no interior do meu peito



Note-se que a concentração exclusiva no elemento masculino ausente, tão típica das cantigas de amigo, é substituída no poema pela atenção igualmente obsessiva dispensada ao eu feminino. O revisionismo que preside o discurso de Maria Teresa Horta em Nossa Senhora de Mim, não se contenta apenas com a exploração de uma dentre as diversas fórmulas líricas oferecidas pela rica tradição poética portuguesa. Ele vai desde a simplicidade das cantigas paralalísticas, e do ludismo conceituoso haurido no figurino do Cancioneiro Geral (como no poema mirandino antes citado), até entrar nos domínios das redondilhas que parecem guardar ressonâncias de um maneirismo haurido, quiçá, no encantatório lirismo camoniano:



Enredada estou de mim

Nesta febre em que me vejo

Já enredada de ti

Não se cura o meu desejo



Em Educação sentimental a poetisa dá uma ênfase especial à desconstrução da feminilidade tradicional, recuperando para o discurso poético a identidade simbólica feminina, através de metáforas do próprio corpo da mulher, dentre as quais ocupa primeiro plano o sangue menstrual (Menstruo do corpo / tão próximo da terra / que se confunde com a / morte e a magia), a partir do qual a poetisa vai construindo associações que dão conta da experiência exclusiva e específica da mulher em qualquer país ou em qualquer tempo.

Não são poucas as poesias, nas quais, ousadamente, Maria Teresa Horta resgata a sexualidade feminina (e a alegria / do corpo sem disfarce), a sua participação ativa na relação amorosa (não tenhas medo / daquilo que te ensino...), o seu direito ao prazer e à realização das suas fantasias eróticas (lambe-me os seios / desmancha-me a loucura / usa-me as coxas / devasta-me o umbigo / abre-me as pernas / põe-nas nos teus ombros / e lentamente faz o que te digo), mais que tudo sua poesia é um canto de exaltação à harmonia do corpo com o amor que impulsiona o desejo, ela promove somente a libertação do discurso poético feminino das amarras que bloqueavam ou interditavam a verbalização da sua sexualidade, a menção de sua intimidade, ela também libera o corpo, as partes do corpo e seus segredos.

O homem, na poesia de Maria Teresa, deixa de ocupar o papel principal na ribalta amorosa, o que conduz o ato sexual e a busca do seu próprio prazer, agora conduzido também pela mulher, pelos caminhos das suas fantasias eróticas e das exigências do seu desejo. Ela já não se coloca como a aprendiz de outrora. Ela conhece o próprio corpo, ela sabe onde o desejo se agita (Afaga devagar as minhas / pernas / Entreabre devagar os meus / joelhos). Com efeito, o homem perde o seu estatuto de parte ativa, a quem cabe conduzir a relação a dois. Ao contrário disto, ele é o parceiro, o cúmplice da mulher na aventura suprema da fruição recíproca dos prazeres da carne e do amor correspondido ou consentido. A mulher coloca-se na posição de defensora do seu prazer, ousando ensinar ao parceiro, conduzi-lo na vertigem da viagem pelo corpo aceso pelo desejo, subvertendo assim a tradição milenar que impunha à mulher uma atitude submissa, a aceitação passiva de mero objeto do prazer masculino. No poema Educação sentimental ela é a ativa agente da relação:



Põe devagar os dedos,

Devagar...

Carrega devagar

Até ao cimo

O suco lento que

Sentes escorregar

É o suor das grutas,

O seu vinho

Contorna o poço,

Aí tens de parar,

Descer, talvez,

Tomar outro caminho...

Mas põe os dedos e sobe,

Devagar...

Não tenhas medo

Daquilo que te ensino...



É de amor que a poetisa fala em seus poemas, mas de um amor total que liga o homem e a mulher por todas as pontas do ser com laços indestramáveis, cujas laçadas seguras fundem e confundem os corpos e os desejos.







NATÁLIA CORREIA



Poetisa, dramaturga, ensaísta e ficcionista, Natália de Oliveira Correia nasceu em 1923 na ilha de S. Miguel dos Açores. Foi Secretária de Estado da Cultura. Natália Correia é uma das personalidades mais destacadas da vida literária, cultural e cívicas de Portugal.É meritório o seu trabalho na defesa da liberdade, da cultura e dos direitos da mulher portuguesa. Em 1947 fez sua estréia no mundo das letras, com um livro de poesias – Rio de nuvens, no qual a expressão poética da autora ainda anda atrelada a um tipo de poesia tradicionalista, cultivada na década de quarenta por poetas que não se deixaram seduzir pelas inovações vanguardistas introduzida pela geração do movimento Orpheu. É desta fase a poesia de Natália Correia, que se segue:



A FEITICEIRA COTOVIA

Cantei uma ária para te dar um tecto

Versos duma rosa para o seu namorado

Bodas naturais de flor e de insecto

Que pousa na flor e fica casado



Passou um amante no vôo directo

Dum corpo para a sua constelação

Com pena de ti roubei-lhe o trajecto

E pus-te uma pomba invisível na mão



Mas pela espiral da antiga insônia

Girou a voluta do crime secreto

De seres cortesã numa Babilônia

Que fechas a chave para ficar mais perto



Depois de cinco anos de silêncio, em 1990, Natália Correia voltou a publicar, trazendo ao público os seu livro Sonetos românticos, logo contemplado com o Grande Prémio de Poesia APE/CTT-TLP, o mais importante no gênero existente em Portugal. Trata-se de uma obra de grande interesse, não apenas por resgatar o soneto do quase esquecimento a que fora relegado após o advento do Modernismo, mas, principalmente por vir nutrido pela mesma força protéica que vem revigorando a expressão poética dos líricos do século XX modernista. No próprio título do livro já se anuncia a intencionalidade da poetisa de fazer do amor o tema dos sonetos, não parafraseando a linguagem dos grandes poetas do romantismo, mas recriando esta mesma linguagem, revestindo-a das concepções e da retórica do amor próprias dos vates modernistas. Todavia o diálogo com os “antigos” mestres do soneto perpassa os sonetos, daí dizer no poema de abertura:



Não ofendas a Santa Sabedoria

julgando de ânimo leve o Romantismo.

Humildemente nele escuta as vozes

Que te dizem:

O itinerário é interior.

Assim dispõem as Leis do Amor

Encontradas no ramo de ouro

Da acácia onde pousou a Pomba.



O livro de Natália é um texto que seduz o leitor mais exigente. Embebido do espírito da modernidade, mas preservando pelo que de excepcional herdamos todos nós da lírica dos antigos quinhentistas: o soneto. O soneto, uma forma tradicional que a lírica portuguesa soube elevar aos mais altos patamares do fulgor criativo, desde Camões, Bocage, Antero, Florbela e que Natália Correia faz reviver de forma brilhante:



Súbita a inspiração faz o convite:

Mais alto, rumo à meta indefinida!

Ofereço o sentimento ao limite

Dos ecos do mistério que intimida.



Rebelde ao senso a Musa não permite

À razão que chegue à chama erguida

O canto aceso, magia que transmite

Remota música noutro mundo ouvida.



A minha ânsia mede-se por versos

E na descida a meus jardins submersos

Vedadas rosas rebentam-me na boca.



Poesia: angústia de querer sempre mais,

Saudoso endereço de termos imortais.

E ao fim de tanto anseio, a vida pouca.



O livro Sonetos românticos assinala mais um testemunho da fecunda capacidade criativa da poetisa. À forma antiga e consagrada do soneto, teve no livro da autora um dos seus mais brilhantes momentos na poesia contemporânea.









NATÉRCIA FREIRE



Poetisa e contista, Natércia Freire nasceu em 1920 em Benavente (Ribatejo). Foi diretora durante quinze anos do suplemento literário do Diário de Notícias, além de ter colaborado e jornais e revistas. A escritora ocupa um lugar relevante na poesia e na literatura portuguesas. Parte de sua obra está traduzida em diversos idiomas. Em sua poesia depreende-se uma forma muito particular de vivência, um sentimento do mundo e uma visão do homem muito pessoais. A expressão poética de Natércia Freire não se filia a nenhuma tendência estética do seu tempo, conduzindo-se apenas por sua sensibilidade e sua experiência. A poetisa fez a sua estréia nas letras portuguesas, em 1938, com o livro de poesias Castelos de Sonho. No decorrer dos trinta anos que escreveu a sua obra, a sua poesia conheceu várias fases. Nos primeiros livros. Mostra-se ainda presa ao convencionalismo literário, aos poços superado até o desabrochar de sua personalidade poética, amadurecida e segura. Em algumas poesias do seu livro – A segunda imagem - percorre um sopro de suave lirismo:



INFIEL

Infiel, o espaço prometido ao sonho.

Repetida fraude

Nos invernos doces.

Leito itinerante. Voador tapete.

De repente o Verão. De repente morro.

Infiel, o pranto que me segue o corpo.

Repetida fraude

Me acompanha à cova.

Leito itinerante. Voador tapete.

De repente Inverno sob a Noite Nova.

Se me creio, existo. Não importa a forma.

Não importa aonde. Se Te creio existes.

Voador tapete que troquei, no Verão,

Pela rotação de universos tristes.

Sob a Noite nova um cortejo tenta

Despedir avisos. Ter-me de refém.

Infiel, me afasto sob a paz cinzenta,

Infiel, também, esqueço-me de alguém...



No livro, Liberta em pedra – publicado em 1964, Natércia Freire desenvolve temas, já abordados em livros anteriores, com mais aguda profundidade, mais das vezes perpassados de filosofia, como, por exemplo, a tematização da própria vida (O sentido da vida não o encontro/ se o não ligar a fitas de infinito); ou quando focaliza o tempo, para ela “fitas de eternidade” (Sou um tempo eterno/ que se volve Inferno/ - para além, eterno,/ -para aquém, eterno), Mais amadurecida ou mais reflexiva, a sua poesia revela uma vontade de Infinito e de Eternidade que nem sempre escapa às contradições:



Se não creio nos homens nem no Tempo,

se desejo a Poesia

sem palavras,

se acho tudo mutável e pequeno

e só no infinito, o infinito

-porque defendo, até ao mais profundo,

o meu quinhão de amar?



Em algumas poesias o lirismo da ausência e da frustração parece uma busca de ocultação de sua latente sensualidade:



Livre, liberta em pedra.

Até onde couber

tudo que é dor maior,

por dentro da harmnonia jacente,

aguda, fria, atroz,

de cada dia.



Não importam feições,

curvas de seios e ancas,

pés erectos à luz

e brancas, brancas, brancas,

as mãos.



Importa a liberdade

de não ceder à vida,

um segundo sequer.

Ser de pedra por fora

e só por dentro ser.



-Falavas? Não ouvi.

-Beijavas? Não senti.

Morreram? Ah! Morri, morri, morri!

Libre, liberta em pedra,

voltada para a luz

e para o mar azul

e para o mar revolto...



E fugir pela noite,

sem corpo, nem dinheiro,

(para ler os meus santos

e os meus aventureiros),

filósofos e nautas,

de tantos nevoeiros.



Entre o peso das salas,

da música concreta,

de espantalhos de deuses,

que fará o Poeta?



Sobre a obra da poetisa, comenta David-Mourão Ferreira: “a poesia de Natércia Freire – das mais densas de toda a nossa história literária – a um tempo formula e soluciona, no plano da problemática e no plano da realização, os mesmos temas essenciais. Dilacerada entre o movente e o fixo, o fluido e o estável, o devir e o ser, ela reflecte poderosamente essa dupla aparência de realidade com o “instrumento de palavras” mais adequado a semelhante empresa (...). Contudo, a expressão de sua mundividência realiza-se por meio de uma linguagem próxima do embate emocional: A que reino pertenço? / em que reino me pões? / sou mineral e penso!? / sou vegetais visões!? / Sou náusea de animal / na vergonha de sê-lo!? / Oh! Espasmo e termo astral / por sobre o meu cabelo!”






 NOTAS:


[1] Ao se tornar do domínio público, o livro provocou reações muito desfavoráveis, sendo retirado das livrarias e confiscado pela censura salazarista, sob a acusação de atentado ao pudor.




[2] As cantigas de amigo medievais são escritas pelo homem, o trovador, mas quem nelas fala é uma voz feminina, expressando seus amores, suas vivências, etc.




[3] Francisco Sá de Miranda, Poesia de Sá de Miranda, p. 193.





Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa - Século XX. Cap. II.


CONTINUA






Olga Gonçalves, Salete Tavares, Sophia M. Breyner Andresen

OLGA GONÇALVES


Poetisa e ficcionista, nascida em Luanda em data que não foi possível precisar. Freqüentou a Universidade de Londres (Queen Elisabethe College e o Ling´s College). Publicou vários romances e livros de poesia. Com o seu romance A floresta em Bremernaven recebeu o prêmio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, em 1976. Teve poesias suas publicadas nos Colecção Círculo de Poesia. Em 1977, foi incluída na Antologia 20 Anos do Círculo de Poesia-20 Anos de Poesia Portuguesa, organizada por Pedro Tamen, publicada pela Editora Moraes. A poesia de Olga Gonçalves tem a palpitação, um vigor retórico de grande significação. Sua linguagem exata é tocada sempre por um íntimo sentido de solidariedade humana,revestida de exemplar dignidade poética:

Como a palavra nua
que partiu sem regresso
a angústia voltou
Nós estaremos lá onde o silêncio fecha
os olhos moribundos     nós estaremos
lá à porta do silêncio.
O sol desmanchará o corpo das sombras
as pedras serão relógios    os lugares voltarão
a ser grandes lugares.
E as lágrimas sem tempo e as lágrimas
traçadas perderão formas definitivas
Nós estaremos lá.

 ***
Qual de nós dois se esquece qual isola
os arquivos do sonho contra a dor
qual se descobre e encobre noutro tempo
já sono e morte já despojamento

Qual sente mais o frio qual de nós
resgata o vento com força maior
qual se reparte e parte na corrente
já combinado ao sangue do silêncio

Qual sente o rosto intenso do desgosto
de nada e de ninguém vestindo as coisas
pulso nocturno a projectar o gesto

Qual redesenha o fim qual de nós dois
prende o amor nos fachos da memória
qual de nós dois se esquece e se enternece

Olga Gonçalves usa o soneto com um à vontade próprio de quem sabe se sabe hábil e seguro para aventurar-se, e de maneira tão bem resolvida, nos meandros de uma forma poética que teve em Camões, Bocage e Antero de Quental sonetistas exemplares.


SALETTE TAVARES

Nascida em 1922 em Lourenço Marques, Salette Tavares, licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade Clássica de Lisboa, em 1948. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian e do Conselho Superior de Investigações Científicas, da Espanha. Publicou vários livros de poesia.
O texto da autora, que vem a seguir, inscreve-se na linha poética da poesia experimental que, como se sabe, não obedece fielmente aos princípios da poesia concreta, da qual se originou, pelo fato de instituir-se como poesia aberta às novas experiências, tanto no que diz respeito aos aspectos visuais, quanto aos morfológico. Poética, de Salette Tavares, inscreve-se na vanguarda, na medida em que rompe o automatismo que respalda a obra de arte tradicional, com o qual o leitor estava habituado. Daí a sua leitura ser um desafio a seguir outros caminhos em sua busca de uma leitura que o conduza a decodificação da mensagem. O texto da poetisa exemplifica com bastante precisão a dimensão da mudança provocada pela poesia experimental.

POÉTICA

Espelho mudo    lugar reflecte
                        o todo que me é dentro
Espelho cego      lugar repete
                        a voz que me é centro.
Espelho mundo    lugar intenso,
                         nos  braços já, te prendo.
Espelho nego      lugar suspenso
                         um vidro só, relendo.

A leitura de Poética, um texto experimental, diferentemente da que se realiza com os textos tradicionais, deve ser feita tanto do ponto de vista do significante, quanto do significado. No primeiro caso, a análise de palavras que são repetidas reiteradamente, como “Espelho” e “lugar”, bem como as que remetem para o significado, apontando para a função do espelho objeto, que se restringe a refletir apenas o que chega ao seu alcance.  Esse poema, produzido na fase inicial do experimentalismo poético, não permite que seja claramente percebida a desconstrução do discurso. Todavia, ao abrir-se para várias leituras, o texto assume a característica fundamental da poesia experimental. Vale observar a forma como é trabalhado o espaço visual no poema: nele há um objeto – o espelho -, que estabelece uma comunicação direta com o que reflete sua lâmina.
O interessante na leitura desse texto é o fato do leitor, confrontado com a sua “decifração”, assumir o papel de espectador ativo, responsável pela compreensão tanto do aspecto visual da poesia, quanto do seu aspecto sonoro, buscado na repetição de palavras e de rimas alternadas, que conferem ao texto uma marcação de ritmo forte, que aponta para o conteúdo crítico do poema.
Não reside no aspecto lúdico, que a forma do texto apresenta, o que motivou a sua composição. A autora, o que interessa é o conteúdo crítico que essa forma veicula, desde a escolha do título “poética”. Este título é o instrumento usado pela poetisa para desmistificar a poética tradicional portuguesa, veementemente rejeitada pelos experimentalistas, sob a acusação de que ela insiste em dar continuidade a um tipo de poesia feita apenas para a fruição prazerosa, para deleite da emoção e do sentimento, sem se dar conta dos graves problemas de ordem cultural, social e econômico que ameaçavam levar Portugal à deriva.
Poética, numa dentre as suas múltiplas leituras, parece sugerir a quebra de um espelho que se restringe a ser um repetidor de imagens (espelho nego / lugar suspenso /em vidro só, relendo), que o poema nega, rejeita, por ser metáfora da criação poética tradicional, sugerindo um outro espelho que, além de refletir, possa, como um prisma, refratar a multifacetada arestas, os diversificados ângulos de visão da poesia (espelho) em sua relação o que reflete (lugar) e refrata.
Na mesma coletânea de poemas- Espelho cego -, de Salette Tavares, várias poesias expressam a linguagem do corpo inflamado pelo desejo (não sei como vais aparecer / presença tão concreta anunciada / vibrando-me o corpo a estremecer.):

Minha cintura dorida
adeus suspenso sem beijo
enchem-me o peito de fome
geme silêncio o desejo
Espremem-se frutas os braços
Bebem-se vinho de Março
grandes e belos cabelos
com vento no regaço.
Alvorecer de um segredo
boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
onde o meu barco se perde.

Mas não é somente a sensualidade que transita nos versos da poetisa, também o amor sentimento se faz presente em sua poesia, expressando os anseios do coração expectante na espera impaciente do ser amado ou do seu gesto de ternura, acariciante (que é que a mim espera quando assim espero? (...) É a carícia da mão na minha face / e o meu olhar repousado / o sorriso que passa / rápido / de mim a ti.), ou ainda da fruição do prazer, o fim da espera (Bebi, / eu te bebi / meu leite vinho destino / meus braços cabelos sonhos / em manhãs de desatino).


SOPHIA DE MELO BREYNER ANDRESEN

Nascida em 1919 no Porto, Sophia de Mello Breyner Andresen faleceu em julho de 2004. Foi participante ativa em revistas literárias, como Cadernos de poesia (1940-1942), Árvore (1951-1953), Távola Redonda (1950-1954). Além de sua vasta obra poética e de um livro de contos, a escritora escreveu vários livros de contos infanto-juvenis. Foi tradutora e ensaísta. Com a publicação do Livro Sexto, em 1964, foi galardoada com o Grande Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores. Mais tarde, em 1977, foi-lhe atribuído o prêmio Teixeira de Pascoais pelo livro de poesias O Nome das coisa. Sophia notabilizou-se na poesia, através da qual conquistou celebridade e um lugar de elevo entre os grandes poetas e poetisas de Portugal. Sua poesia é difícil de ser situada em qualquer movimento ou tendências literárias do século XX. Como ela mesma afirma: “quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de liberdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo”.Essas palavras de Sophia dão o testemunho do quanto ela é lúcida e sintonizada com a realidade.
O amor e a vida ocupam um lugar privilegiado na temática da poetisa, como exemplifica bem o poema, Para atravessar contigo o deserto do mundo, colhido no Livro sexto, da poetisa:

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem

E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua

E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Além do apelo por liberdade e justiça que se nutre o discurso poético de Sophia, interessa-a outras questões que agitam o social e o humano ou que remetem para a ordem cultural e poética. Em suas obras iniciais, por exemplo, a poetisa distancia-se do comum universo cotidiano para derramar seu olhar sobre aspectos da natureza, para evocá-la através de uma linguagem poética iluminada pelo encantamento de quem sabe ver e sentir o mistério essencial que têm as coisas, que revela ânsia serena de infinito, de elevação ao divino pelo viés de um amplexo cósmico imaginariamente possível entre a luz dos astros com a negritude da noite densa e escura:

Ir beber-te num navio de altos mastros
No mar alto
Ó grande noite alucinada e pura,
Brilhante e escura,
Bordada de astros.

Para ti sobe a minha inquietação e sobressalto.
O meu caos, desilusão e agonia,
Pois trazes nos teus dedos
A sombra, o silêncio e os segredos,
A perfeição, a pureza e a harmonia.

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim.
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

No poema que se segue há um transbordamento de imagens que remetem para a celebração de uma comunhão cósmica do eu-poético com os elementos da natureza, o ritual mágico de sua transfiguração nas em tudo quanto, nela, amou. A matéria do poema lembra o soneto camoniano Transforma-se o amador na coisa amada:

FLORESTA

Entre o terror e a noite caminhei
Não em redor das coisas mais subindo
Através do calor das suas veias
Não em redor das coisas mas morrendo
Transfigurada em tudo quanto amei.

Entre o luar e a sombra caminhei:
Era ali a minha alma, cada flor
-cega, secreta e doce como estrelas –
quando a tocava nela me tornei.

E as árvores abriram os seus ramos
Os seus ramos enormes e convexos
E no estranho brilhar dos seus reflexos
Oscilavam sinais, quebrados ocos
Que no silêncio fantástico beijei.

No poema A Paz sem vencedor e sem vencidos, a poetisa evoca a questão, sempre recorrente em sua obra, da liberdade, da verdade, da justiça e da paz. O discurso poético se organiza como uma prece ao Senhor, na qual a súplica dominante é em prol da paz. Mas, não uma paz que se segue a uma guerra, porém a que tem a sua gênese nos princípios da verdade, da justiça e da liberdade:

Daí-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos.

É interessante notar a estrutura anafórica do poema A paz sem vencedor e sem vencidos, da qual resulta o processo repetitivo próprio das ladainhas. Os dois primeiros versos da estrofe inicial vão sendo retomados em cada estrofe, como uma espécie de refrão, enunciado por um agente pluralizado através do pronome da segunda pessoa, como se emanasse de um coro de suplicantes que, como porta-vozes da poetisa, clamasse por verdade, justiça e liberdade, tal como Sophia faz ao longo da sua obra poética e ficcional.

Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa, cap. II


Parte Final do Capítulo II.