3 de mai. de 2011

Fiama H. P. Brandão, Isabel Aragão, Leonor de Almeida.


FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Poetisa e teatróloga, Fiama Hasse Pais Brandão nasceu em Lisboa em 1938. Com o livro Ao chapéu de chuva ganhou o prêmio Revelação 1951, de Teatro, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1977 recebeu o prêmio Adolfo Casais Monteiro, pela obra O texto de João Zorro.
Fiama é um dos maiores talentos da dramaturgia e da poesia em Portugal, uma das mais fortes referências dentre as melhores poetisas de sua geração. Participou ativamente no grupo “Poesia 61”. No domínio da linguagem poética vem sustentando durantes décadas um lugar de destaque.
Na poesia que se segue, a poetisa intertextualiza a “Cantiga” Barcas Novas de João Zorro de uma forma singular: pois, além de iniciar o seu poema com a transcrição do texto integral do poeta medieval, com o qual estabelece um diálogo permeado de crítica ao contexto histórico contemporâneo, também usa a forma medieval pararelística:

BARCAS NOVAS
(João Zorro)

Em Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!

Em Lixboa, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai, mia senhor velida![1]


Lisboa tem barcas
Agora lavradas de armas.

Lisboa tem barcas novas
Agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terras

São de guerra as barcas novas
Ao mar mandadas com homens

Barcas novas são mandadas
Sobre o mar

Não lavram terra com armas
Os homens

Nelas mandaram meter
Os homens com a sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
Novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
Armas novas são mandadas

É oportuno lembrar que o pararelismo é um dos traços definidores da poesia dos cancioneiros medievais, prodigamente usado nas Cantigas de Amigo, nas quais coplas (estrofes) de dois versos (dísticos) repetem intencionalmente versos de outros dísticos que as antecedem. “O pararelismo é, assim, uma característica estrutural que se pode manifestar tanto fonética como semanticamente. Nesse sentido é de se notar que esse recurso, por vezes em formas não imediatamente evidentes, constitui o esqueleto de muitos textos da poesia barroca”.[2] Na poesia contemporânea, tais repetições assumem um outro significado, como se pode constatar nos textos poéticos neo-realistas e na poesia concreta. O poema Barcas novas, de Fiama Hasse Pais Brandão, exemplifica muito bem esse trânsito de elementos próprios da poética medieval para a poesia contemporânea, na qual a forma pararelística e a repetição de uma parte do verso no verso seguinte, bem como o jogo permutativo entre as palavras barcas, armas e homens, guerra e terra, veiculam a crítica ao contexto sócio-político da época.
A intertextualidade na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão é de suma importância para a expressão de sua visão particularizada da história de Portugal. A poetisa tanto projeta o discurso histórico no seu poema como estreita as relações intertextuais entre o seu texto e os textos de autores do passado. Esse debruçar-se sobre os fatos históricos para criticá-los faz parte dos interesses da geração “Poesia 61”, da qual Fiama fez parte.  No poema dado a seguir – Inês de manto - a poetisa resgata a imagem de Inês de Castro através de um hábil processo de desocultação da máscara com que a hipocrisia histórica vem recobrindo a face da hediondez trágica que envolve a morte da amante de D. Pedro.

INÊS DE MANTO

Teceram-lhe o manto
Para ser de morta
Assim como o pranto
Se tece na roca

Assim como o trono
E como o espaldar
Foi igual o modo
De a chorar

Só a morte trouxe
Todo o veludo
No corte da roupa
No cinto justo

Também com o choro
Lhe deram um estrado
Um firmal de ouro
O corpo exumado

O vestido dado
Como a choravam
Era de brocado
Não era escarlata

Também de pranto
A vestiram toda
Era como um manto
Mais fino que a roupa

O poema Inês de Manto focaliza de uma forma crítica a figura histórica de Inês de Castro. Já no título pode-se ver a metáfora da célebre frase “a que depois de morta foi rainha”, ou seja a Inês que foi assassinada não tinha manto, não tinha a realeza (teceram-lhe o manto / para ser de morta). De manto (morta e rainha), Inês entra para a história, torna-se um mito. Inês de manto é a Inês encoberta pela mitificação histórica de um “amor”, quando o que se tem de fato é uma bem urdida trama (teceram-lhe o manto/ para ser de morta) política que se armou pelo poder que teia do mito( assim como o pranto / se tece na roca) disfarça.


ISABEL ARAGÃO

Nascida no Porto em 1964, Isabel Aragão formou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade do Porto. Em 1985 foi galardoada com o Prêmio Nacional de jovem literatura atribuído pela Associação dos Estudantes da Faculdade de Medicina do Porto, com a coletânea Sabor a madrugada. No mesmo ano foi contemplada com o Prêmio Manuel Laranjeira atribuído ao livro Cantos do Corpo, prefaciado por Maria Teresa Horta que não poupa a jovem escritora que considera uma de enorme talento e qualidade de estilo. Cantos do corpo, como o título sugere, aborda a questão do “desejo feminino como palavra que de escrita passa como desejo e corpo até ao outro, a quem lê, quem imagina – projectado no écran da escrita”.[3]
A poesia de Isabel Aragão inscreve-se na vertente erótica do lirismo português, desenvolvendo a temática do corpo liberto dos espartilhos da repressão. Ela segue pelos caminhos libertários dos que fazem uma literatura transgressiva em relação aos tabus culturais e religiosos que interditam, principalmente, à mulher a expressão da sua sensualidade. Com efeito, Isabel Aragão busca exatamente realizar uma literatura que se erga como um libelo em favor da liberdade de expressão. Enfim, o que ela faz e defende com muita ousadia é o mesmo que Alexandrian também advoga, na convicção de que “uma literatura cujo fim é afirmar os direitos da carne é perfeitamente legítima. Mas exige, se não se quiser comprometer o equilíbrio humano, que se mantenham perante esta os direitos do espírito, criticando-a objetivamente”.[4]
É com a sabedoria da palavra que a sensibilidade do espírito que Isabel Aragão vai em busca “do corpo feminino da poesia”, para usar a expressão de Maria Teresa Horta. No prefácio do livro Cantos do Corpo, esta escritora, comentando a escrita de sua autora, exalta a ousadia com que ela faz a exposição do corpo em seus textos e a habilidade com que deixa a dúvida entre o imaginado e o vivido. “E é esta suspeita que perturba - é esta a ousadia: o corpo sexuado da mulher. Ou a mulher, igualmente, como corpo sexuado. Vivo – vivido...”

como remos os braços
projectam atlânticos
na rua íngreme do teu corpo
e há uma charrua no ventre que me despe
nos ermos compactos que crescem
entre as pernas peço-te o mar
numa qualquer ilha de viagens em regresso
quando perto do escuro nascemos

escrevo – a mesa é o teu corpo roçando
as palavras –
as mãos como que a lavarem santuários
no branco sujo dos teus beijos
ouço teus paços plantarem árvores
no azul da chuva e os rios descerem
na luta dos meus braços com as pernas

tenho-te dentro das pernas soltas
escrevo os dias com as pontas dos troncos
morena de pedaços tardios em tuas horas
e quero-te – mergulho de peixe no voar das pedras
quando te faço nas dunas – o corpo do silêncio

o teu corpo emigra no meu
como rios surdos de paisagens
e és cúmplice da carne nua
e as docas enroladas são as margens
de cardumes em viagem contra o cais

As poesias de Isabel Aragão, constróem-se no percurso de uma busca incessante de dar expressão que dê conta exata da linguagem do corpo feminino (corpo roçando as palavras), a linguagem da paixão (quero-te – mergulho de peixe no voar das pedras / quando te faço nas dunas – o corpo de silêncio).


LEONOR DE ALMEIDA

Poetisa, nascida no Porto em 1915, viveu longas temporadas no estrangeiro. Tem vários livros publicados em Portugal. Sua poesia revela uma identificação indisfarçável com a de José Régio, por um lado, e a de Florbela Espanca, por um outro lado, o que empresta um caráter híbrido à sua produção poética. Como Régio, a autora, em grande parte dos seus textos, se expressa com forte eloqüência dramática; como Florbela se espraia no domínio de Eros e da escrita do corpo. O texto que é dado a seguir, colhido no livro de poesias Caminhos frios, publicado em 1947, exemplifica bem a referida identificação da autora com a expressão poética florbeliana:

POSSE

Vem cá! Assim, verticalmente!
Achega-te... Docemente...
Vou olhar-te... E, no teu olhar, colher
Promessas do que quero prometer,
Até à síncope do amor na alma!
Colemos as mãos, palma a palma!
A minha boca na tua, sem beijo...
Desejo-te, até o desejo
Se queixar que dói.
E sou tua, assim, como nenhuma foi!

Dentre as poesias que revelam as aproximações entre expressão poética de Leonor de Almeida com a expressão poética regiana, foram selecionadas as duas que se seguem:

ENTRONIZAÇÃO

Tenho o braço cansado,
A mão dorida, trôpega...
Mas uma espécie de ânsia sôfrega
Ordena:
Empurrar tudo!
- Não quero, nem passado,
Nem presente,
Nem futuro! –

O braço faz de muro,
A mão abre caminho, coerente...
Quero uma estrada cá dentro... lisa, plana,
Para a tua palavra mágica, profética,
Bela e magnética,
Passear livremente,
E demoradamente!...

Portanto, a poesia de Leonor de Almeida é erótica em suas bases, mesmo quando não se trata de uma abordagem na qual o amor não é o móvel principal do discurso poético. A sua visão pan-erótica do mundo dá um toque muito pessoal e suave a expressão da sensualidade irreprimível de sua lira.


[1] Cantiga medieval. Barcas Novas, de João Zorro, intertextualizada por Fiama Hasse Pais Brandão.
[2] E. E. de Mello e Castro, O próprio poético, p. 93.
[3] Maria Teresa Horta, “Prefácio” :in Cantos do corpo, p. 5.
[4] Alexandrian, História da literatura erótica, p. 07.

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Zenóbia Collares Moreira. "O lirismo feminino no Modernismo". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Capítulo II.

CONTINUA...

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