9 de fev. de 2012

O Maneirismo na lírica de Camões - Parte II.

O SENTIDO TRÁGICO DA VIDA

Oh vida humana, vã, caduca e breve!
Oh glória dela, ou falsa, ou imperfeita!
Camões

Confrontados com a crise geral que se abate sobre o homem e a sociedade pós-renascentista, “os maneiristas passam a integrar obsessivamente o sentimento trágico da vida, a postura melancólica e saturniana, a contemplação da morte.” [1] Essa atitude existencial que subjaz à lírica maneirista tem ampla conexão com a convicção dos poetas acerca da predestinação do homem à dor e ao sofrimento, a uma vida transitória e infeliz, que apenas serve como um doloroso hiato entre o berço e o túmulo. Toda ela transcorrida em agonias, em dores, em pranto e em desventuras, a vida, para os maneiristas, só oferece tormentos físicos, morais e espirituais. Daí o lamentoso canto camoniano, no qual tece reflexões acerca da sua dolorosa trajetória de existencial:

Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.
quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se ind´aparece,
da vista se me perde e da esperança.

Nesse soneto, é nítido o sentimento trágico da vida, tipicamente maneirista. Ano após ano se vai alongando a cansada peregrinação do poeta pelo mundo e se vai aproximando o fim de sua vida, que ele sente ter vivido inutilmente. Regida pela tirania de Cronos, que a todos e a tudo metamorfoseia e destrói em seu fluir contínuo, a vida humana é concebida pelo poeta como uma dolorosa via crucis, sem sentido, vã.

É uma caminhada num mundo de enganos, sempre a espera de uma esperança que nunca chega. Com o passar dos anos, veio-lhe o cansaço, cresceu-lhe o desgosto, perdeu a esperança, chegando à velhice despojado da confiança e perdido.
De modo geral, a concepção pessimista da vida dos maneiristas revela esta como uma desoladora sucessão de amarguras, infortúnios, expiações e desgraças, tal como faz Camões em sua Canção IX, no qual faz a narração das suas vicissitudes existenciais e da amargura resultante da intensa rememoração do tempo feliz, já passado. Os dois versos finais encerram a concepção melancólica do poeta acerca da insignificância do homem:

Aqui estive eu com estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asa, que caía
(E vede se seria leve o salto!)
de sonhados e vãos contentamentos,
em desesperação de ver um dia.
[...]
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna;
Soberba, inexorável e importuna.
Não tinha parte donde se deitasse,
nem esperança alguma onde a cabeça
um pouco reclinasse, por descanso.
Tudo lhe é dor e causa que padeça,
mas que pereça não, por que passasse
o que quis o destino nunca manso.
[...]
Somente o Céu severo
as Estrelas e o Fado sempre fero
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.

No soneto dado a seguir, Camões exprime a sua sombria concepção do mundo, para ele uma Babilônia, lugar de exílio, do desconcerto, no qual a vida semelha um desterro:

Cá nesta Babilônia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;
cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;
cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião.

Observar a referência a Sião conotando o bem passado, só recuperável através da lembrança, tal como fora evocado nas Redondilhas de Babel e Sião, topônimos simbolicamente representativos da oposição bem/mal, felicidade/infelicidade, tempo presente/tempo passado:

Sobre os rios que vão
por Babilônia m´achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado:
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Seguindo a visão neoplatônica acerca da contemplação divina, Camões desloca as seus anseios de libertação para uma outra realidade – o mundo inteligível - capaz de abrir-lhe as portas da bem-aventurança:

Quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo o entendimento
para o mundo inteligível,
ali achará alegria
em tudo perfeita e cheia
de tão suave harmonia
que nem, por pouca, recreia,
nem por sobeja, enfastia. [2]

Os desabafos de Camões acerca de sua infeliz trajetória existencial, quase toda ela dissipada em desterros, vivendo um destino que de tudo o despoja (Que segredo tão árduo e tão profundo: / nascer para viver, e para a vida / faltar-me quanto o mundo tem para ela!), apontam para uma vida desperdiçada e, por isso mesmo, intensamente dolorosa que nada tem para oferecer ao deserdado da sorte, senão a morte:

Mas uma vida tão escassa
que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa
está receitando a morte! [3]
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NOTAS
[1] Vasco Graça Moura, “O Maneirismo ao pé da letra”, in Pintura Maneirista em Portugal, p. 12.
[2] Luís de Camões, Op. cit., vol. I. p. 118.
[3] Luís de Camões, Op. cit.,, vol. I, p. 105.

Zenóbia Collares Moreira. O Maneirismo na Poesia Lírica de Camões. Natal/2007.

2 de fev. de 2012

O Maneirismo na Lírica de Camões.- Parte III.

O DESTINO INEXORÁVEL

Ah! Fortuna cruel! Ah duros Fados!
quão asinha em meu dano vos mudastes!
Camões

Na poesia camoniana, o destino, a fortuna ou o fado são denominações dadas para designar uma mesma força obscura, malévola e caprichosa que governa a vida do homem e à qual este não pode escapar.
Maria Vitalina Leal de Matos considera de suma importância para a compreensão geral da obra camoniana que se tenha uma percepção alargada da dimensão e da importância que o poeta atribui ao Destino, bem como do significado deste em sua obra.
Sob várias denominações – Fortuna, Fado, Ventura, Má Estrela, Sorte –, o poeta culpabiliza o Destino inexorável pelas conjunto de situações adversas que “se conjuraram” para fazer da vida dele uma trajetória de dor, de infelicidade e padecimentos contínuos. Assim, na lírica e no canto épico de Os Lusíadas, Camões desabafa, queixa-se, questiona e tenta compreender incessantemente “a razão de ser daquilo que o espanta. Por que sofrer tanto? Por qual razão os males se acumulam e a Fortuna se encarniça contra o poeta retirando até um malévolo gozo da sua desdita?” [...] Por que é que as coisas são tão contrárias àquilo que deveria ser? [1]Por que “as Estrelas e o Fado sempre fero /com meu perpétuo dano se recreiam?”[2]
Tais questionamentos ficam sem resposta, restando a Camões apenas o espanto perante a sua infelicidade e a certeza de que

“Verdade, Amor, Razão, Merecimento
qualquer alma farão segura e forte.
Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
têm do confuso mundo o regimento”.[3]

A dor de viver camoniana aparece reiteradamente em sua lírica associada às adversidades causadas pelos “tiros / da soberba Fortuna; / soberba, inexorável, importuna”, pela qual é subjugado e arrastado à perdição, ao despojamento de todo o bem, restando-lhe apenas o bálsamo da morte: 

Posto me tem Fortuna em tal estado,
e tanto a seus pés me tem rendido!
não tenho que perder já, de perdido;
não tenho que mudar já, de mudado.
Todo o bem pera mim é acabado;
daqui dou o viver já por vivido;
que, aonde o mal é tão conhecido,
também o viver mais será ´scusado.
Se me basta querer, a morte quero,
que bem outra esperança não convém;
e curarei um mal com outro mal.
E, pois do bem tão pouco bem espero,
já que o mal este só remédio tem,
não me culpem em querer remédio tal.

Pouco afeito à poesia de cunho religioso, Camões não segue pelas trilhas de muitos poetas seus contemporâneos que, perante as ciladas da Fortuna e as adversidades da vida, buscam na religião a resposta e o refúgio para as suas dores. Se o sentido da vida como luta extenuante desperta em sua alma um anseio de libertação através da morte, ele não a deseja ou aguarda como promessa de bem-aventurança no Paraíso celeste, onde a utopia católica fincou os seus alicerces.
Para o poeta, a morte afigura-se como libertação da dor de viver, deseja-a porque para “o mal” que o atormenta “este só remédio tem”.
O pessimismo, a postura melancólica, o desengano e a profunda dor de viver, que atravessam grande parte da produção poética camoniana, são traços definidores do maneirismo, no qual se inscreve o poeta.
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Notas.
[1] Maria Vitalina Leal de Matos, “O homem perante o destino na obra de Camões”, in: Ler e escrever- Ensaios. p. 67.
[2] Luís de Camões, Canção IX, est. 5.
[3] Id. Ibidem, v. I, p. 242.
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Zenóbia Collares Moreira. O Maneirismo na Poesia Lírica de Camões. Natal/2007.