29 de out. de 2010

O Auto da Barca do Inferno: Um painel crítico da sociedade quinhentista


A importância e o valor de Gil Vicente não se devem apenas ao fato de ter sido ele o fundador do teatro em Portugal, mas também ao de ter sido o primeiro escritor português que, com sua visão satírica e dramática, soube avaliar e analisar criticamente a sociedade do seu tempo.[1] 
Sua aguçada consciência crítica, somada a uma percepção da aguda crise que minava os valores morais da sociedade quinhentista, constituem os alicerces sobre os quais ele ergue a sua voz contra os sinais mais evidentes da degradação de tais valores. A sua arma de combate às deformações sociais e a estratégia de moralização dos costumes é a sátira mordaz, a ironia refinada, o uso da caricatura e a força dramática que emprestava às suas personagens. A verdade embutida na zombaria, a denúncia disfarçada na sátira, a censura sob a sutileza do gracejo foi a fórmula mágica encontrada pelo autor para despertar a consciência entorpecida dos seus contemporâneos para o desconcerto moral que punha em decadência os bons costumes e a própria sociedade.
Todos os autos e farsas de Gil Vicente radicam na intencionalidade crítica e moralizante que o motiva a escrevê-los. A comédia não surge de sua pena com a mera função de divertir, de fazer rir. Tal intencionalidade crítica da sátira está bem configurada no Auto da Barca do Inferno. Através das suas personagens-tipo, Gil Vicente satiriza criticamente os usos e os maus costumes da sociedade do seu tempo, não poupando nenhum segmento social: a nobreza, o clero, a magistratura, os profissionais liberais, a burguesia e o povo, todos estão representados, com seus vícios, seus desregramentos, enfim com todas as infrações ao padrão de conduta moral defendido pela Igreja e pelos códigos ético-sociais da época.
A nobreza tem seu representante na figura do fidalgo (D. Anrique). Através dele é satirizada a presunção e a vaidade, a ostentação de grandeza e poder, a soberba e o desprezo pelos humildes. O fidalgo entra em cena ricamente vestido, ostentando a sua superioridade social, claramente representada pelos símbolos que o acompanham: um pajem lhe soergue a cauda do manto e transporta sua cadeira de espaldar. Acostumado a fruir privilégios e direitos especiais, o fidalgo acredita que irá para o Paraíso não só por causa da sua nobreza como também pelo fato de ter deixado a esposa e.a amante rezando pela salvação de sua alma; portanto recusa-se a entrar na barca infernal. Dirige-se à barca da Glória, invocando a sua condição de “fidalgo de solar” para embarcar para o Paraíso. É, então, repelido pelo Anjo, sob a acusação de ter sido soberbo, tirano e desprezar os pobres, e retorna à barca do Inferno, na qual embarca, despojado de todos os seus privilégios e humilhado pela constante irreverência do Diabo.
O clero é representado pelo frade (Frei Babriel) - cortesão, dançarino, cantor e esgrimista -, que aparece, cantando e dançando, com sua amante Florença. A sentença do Diabo o condena ao Inferno, por ter vivido amasiado, desrespeitando, assim, os votos de castidade, além de levar vida mundana, blasfemar e negligenciar o serviço de Deus. A cena de esgrima e os diálogos do frade com o Diabo geram uma cômica situação, ensejada pela vaidade do religioso, que é estimulada pela ardilosa e irônica inteligência do Arrais do Inferno. Recusado na barca da glória, retorna com Florença para a barca dos danados, convencido da perdição de ambos.
A magistratura é representada pelo corregedor e pelo procurador, ambos acusados de corrupção, venalidade e rapacidade. O primeiro tem como acusação mais grave a parcialidade nas suas sentenças, deixando-se corromper pelas dádivas recebidas em troca de favores. O latim macarrônico e as intervenções acusatórias do parvo fazem desencadear o riso, realçando o ridículo das personagens. O segundo, após dirigir-se ao Diabo, recebe logo a sentença, sem que o Arrais do Inferno revele preocupação em acusá-lo. O corregedor é presunçoso, irônico, embusteiro, bajulador e, no final, resignado. Já o procurador se distingue pela subserviência, pela arrogância e presunção. É de crer que não foi por acaso que Gil Vicente trouxe para o auto um corregedor e um procurador, mas sim porque tinha um objetivo moralizante: confrontar a justiça divina com a justiça humana, realçando a atuação antitética das duas formas de justiça.
A burguesia comercial faz-se representar pelo onzeneiro, um usurário que enriquecera graças aos altos juros de dinheiro que emprestara aos necessitados; pelo sapateiro (João Antão), que explora os fregueses, com o seu comércio, e pela alcoviteira (Brígida Vaz), encarregada de desencaminhar mulheres casadas e solteiras e lançar moças na prostituição. Todos veiculam em suas falas uma comicidade construída com nítidos contornos satíricos.
O onzeneiro, surpreendido pela morte, não tem tempo de recolher o seu dinheiro, chegando à outra vida sem dispor de uma moeda sequer. É facilmente identificado pelo “bolsão” que traz, tal como o sapateiro pelo avental e pelas formas que transporta. Este é acusado pelo Diabo e pelo Anjo de haver roubado o povo e de não ter praticado com sinceridade a religião. Sua condenação funda-se mais em seu desvio dos códigos morais ditados pelos preceitos religiosos do que nos roubos praticados.
A alcoviteira, Brígida Vaz, é a personagem que vem com maior bagagem, toda ela ligada ao seu ofício de enganar, mentir e prostituir moças. Como o sapateiro, não revela consciência dos seus pecados, julgando-se merecedora do Paraíso. Apesar de ter caracterizado muito bem o tipo, Gil Vicente não se preocupou em aprofundar a sua crítica à prostituição. Deixou passar a oportunidade de referir-se às causas sócio-econômicas que levavam as jovens a deixarem-se prostituir.
O povo é representado pelo enforcado - um ladrão a quem a Justiça condenara à forca. Ele revela a ignorância e a credulidade dos ingênuos, facilmente enganados pelos mais inteligentes e poderosos.



O judeu (Semah Fará) representa o seu povo. Gil Vicente acentua bem dois aspectos que são peculiares aos judeus, de acordo com os estereótipos da época: o apego à religião, simbolizado pelo bode expiatório que a personagem insiste em não deixar na terra, e o culto ao dinheiro, manifestado por meio das moedas com que Semah Fará tenta subornar o Diabo. O judeu é condenado simplesmente por não ser cristão e, portanto, não seguir os ditames da religião católica, conforme pode ser inferido do discurso acusatório que lhe dirige o parvo.

O parvo (Joane) não é representante de nenhum estrato social ou grupo profissional: ele tem uma função cômica, principalmente pela irreverência e pelos disparates que profere, desencadeando o riso, em situações que não dizem respeito a sua pessoa, principalmente satirizando, por meio da comicidade dos seus ditos, algumas personagens que têm a presunção de se considerarem merecedoras do Paraíso e, portanto, de embarcarem na barca da Glória. Em algumas cenas, ele participa das críticas e das acusações, coadjuvando o Anjo ou o Diabo. Joane rejeita a barca do Inferno, exorciza o demo e dirige-se para a barca do Paraíso, onde recebe do Anjo o consentimento para passar para a Glória, pois, em sua condição de ingênuo e irresponsável, não pusera malícia nos erros que cometera em vida. Sua linguagem é trocista, impregnada de ingênua comicidade, por vezes rude e agressiva. 
Como escreve Vasco Moreira: "A simplicidade de que se reveste, o caráter trocista e cômico que o identifica, permite-nos considerar esta personagem como mero elemento a que o autor recorre para melhor caracterizar a sociedade do seu tempo, quer enquanto lhe confere direitos de comentador satírico de outras personagens, quer enquanto possui em si mesmo o ridículo e a risibilidade de toda uma sociedade. Classificá-lo como personagem de estatuto idêntico às restantes é destruir a sua função catártica e a configuração representativa que se sobrepõe a qualquer estratificação. Sendo assim, ultrapasse-se os rótulos classificativos e considere-se o parvo uma personagem [...] capaz de [...] pôr em causa todo um mundo sócio-político e ético-religioso”.[2]
Os quatro cavaleiros da Ordem de Cristo representam, no auto, a moral cristã exemplar. O fato de terem morrido em combate com os mouros, em defesa da fé cristã, torna-os merecedores do Paraíso: morremos nas partes de além / e não queirais saber mais, responde altivamente um dos cavaleiros ao Diabo quando este se atreve a fazer-lhes perguntas. O Anjo, por sua vez, recebe-os dizendo: quem morre em tal peleja / merece paz eterna. [3]
A Igreja, como instituição, nunca foi o alvo da crítica vicentina. Seus ataques eram direcionados ao escuso comércio com as indulgências, também criticado por Lutero, bem como à duvidosa tendência para atribuir à intervenção direta de Deus os fenômenos naturais, não raro interpretando-os como castigos resultantes de falhas humanas.
No teatro vicentino não figuram apenas os transgressores da ordem moral e religiosa. Nele aparecem também as crianças, as mães conselheiras, os pastores, enfim as pessoas boas e puras, que obedecem aos ditames da boa conduta.

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PERSONAGENS–TIPO e PERSONAGENS CARICATURAIS

Em seus autos e farsas, Gil Vicente, por intermédio da comicidade e do riso, “foi castigando os costumes” habilmente, sem atingir pessoas, pois não trouxe à cena personagens individualizadas, mas tipos sociais que representavam uma classe, um grupo social ou profissional. Não visava portanto o indivíduo, mas apenas tipos, ou seja, casos sociais que viabilizassem, da melhor maneira possível, realizar a sátira aos costumes.
O tipo pode ser definido como a representação de uma figura coletiva que se constitui como síntese das qualidades e dos defeitos específicos de uma classe, de um grupo social ou profissional. No Auto da barca do inferno, por exemplo, a personagem-tipo representativa da nobreza endinheirada e poderosa, o fidalgo, apresenta várias características de sua classe social: além do pagem que traz arbitrariamente, para carregar a sua cadeira de espaldar (cadeira senhorial) e suspender o seu muito comprido manto (símbolo de sua alta posição social, do seu poder), revela-se déspota, presunçoso, vaidoso e tomado pela soberba. Sua atitude perante o Anjo, ao invocar a condição de “fidalgo de solar” para entrar na barca do Paraíso, é ameaçadora, altiva e autoritária, tal como é comum aos que pertencem à classe dominante, acostumados a todos os privilégios. Ao surgir em cena acompanhado de elementos que caracterizariam qualquer fidalgo, fazendo uso de uma linguagem comum a qualquer outra pessoa da sua classe social, assumindo uma atitude de superioridade típica de certa nobreza, o fidalgo deixa de representar a si mesmo, como individualidade para figurar como uma personagem-tipo. O pajem não acompanha o fidalgo em sua viagem para o Inferno porque não representa um tipo. Funciona como testemunho da tirania e da opressão exercida pela nobreza contra o povo.
No teatro vicentino, encontram-se vários tipos - alcoviteiras, agiotas, ladrões, fidalgos presunçosos e déspotas, juízes corruptos e parciais em seus julgamentos, comerciantes desonestos, padres hipócritas e mulherengos, falsários, ébrios e tantos outros que figuram como elementos fundamentais para a prática do projeto vicentino de moralização dos costumes. Não fazia parte desse projeto explorar o riso pelo riso, fazer comédia com a única finalidade de divertir. O interesse de Gil Vicente era despertar a consciência das pessoas para as mazelas que corrompiam os costumes e a moral da sociedade do seu tempo. Para tanto, dissecou essa sociedade em todos os seus segmentos, revelando seus vícios, seus erros, seus defeitos, enfim sua degradação moral. Combinando habilmente a ironia galhofeira com o sarcasmo zombeteiro, compôs a sua numerosa variedade de tipos, na qual estão incluídos representantes de todas as classes sociais, dos mais poderosos aos mais humildes, fazendo desfilar em suas peças tipos comuns na nobreza, no clero e no povo, todos julgados igualitariamente, conforme os princípios da justiça divina.
Nas peças vicentinas, as personagens caricaturais estão a serviço da crítica moralizante. Elas representam formas estereotipadas facilmente identificadas pelo público por meio de um cacoete, de um defeito, de certo tipo de linguagem, de vestimenta, de comportamento, etc. Um exemplo disso é a linguagem do corregedor, personagem do Auto da barca do inferno, permeada de expressões em latim (língua usual no Direito) deturpadas ou gramaticalmente incorretas, justamente para mostrar o pouco conhecimento que o magistrado tinha da língua latina, que deveria dominar. O corregedor é, assim, ridicularizado por saber pouco o latim, o que é reforçado pelo Diabo, coadjuvado pelo parvo, que, com intuitos satíricos, passam também a empregar o latim incorretamente, arremedando os erros gramaticais do corregedor.

FIGURAS ALEGÓRICAS

Em algumas peças, aparecem figuras que não podem ser consideradas personagens, pois apenas representam uma alegoria, ou seja, representam uma idéia por meio de uma imagem. Por exemplo: no Auto da barca do inferno há um Anjo, que é uma alegoria do Bem; e o Diabo com o seu companheiro, alegorias do Mal.
A imagem do Diabo criada por Gil Vicente caracteriza-se pela singularidade, na medida em que difere do figurino tradicionalmente difundido pela tradição religiosa originária do texto bíblico, ou seja, uma entidade malévola que tenta os homens, arrastando-os para o pecado, para o mal. Ao contrário disso, o que se vê no Auto da barca do inferno é um diabo que não assume uma atitude antagônica com o Bem, funcionando como uma espécie de parceiro do Anjo na condenação e conseqüente punição das almas daqueles que não procederam de acordo com os ditames do catolicismo. Longe de encarnar uma figura amedrontadora, pesada e sombria, o diabo vicentino é bem dotado de inteligência e perspicácia, é alegre, espirituoso, sagaz, extrovertido, além de revelar um surpreendente senso de humor. Suas acusações e julgamentos são proferidos por intermédio de uma linguagem contundente e mordaz, permeada de zombarias, ironias e refinada comicidade, postas ao serviço da crítica moralizante e da comicidade do texto.
O mais curioso e paradoxal no comportamento do diabo vicentino é o seu empenho em penalizar com rigor, condenando ao padecimento no Inferno as almas dos mortais que viveram em pecado, em castigá-las pela prática do mal, quando, de acordo com o perfil de Satanás legado pela tradição bíblica, deveria aplaudir os pecadores, recepcioná-los com louvores por terem caído nas malhas das suas tentações e assegurado o triunfo do Mal e do pecado, em sua luta contra o Bem e a virtude.

A personalidade do Anjo não apresenta mudanças, confirmando o perfil que dele é traçado pela tradição bíblica: reservado, comedido e austero, limita-se a formular advertências e censuras, de forma respeitosa, distante e fria. A ele compete a sentença decisória do destino das almas. Ao contrário do Diabo, ele dá oportunidade para questionamentos acerca dos julgamentos e das sentenças que profere. 

Zenóbia Collares Moreira. Humor e crítica no teatro de Gil Vicente. 2005
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NOTAS

[1] É necessário que Gil Vicente seja reconhecido, não somente como o fundador do teatro em Portugal, mas também como o introdutor da crítica social, política e religiosa na dramaturgia e portuguesa.
[2] Vasco Moreira et alii, “Gil Vicente. Auto da Barca do Inferno”, in: Novas propostas de abordagem, Porto, Porto Editora, 1990, p. 20.
[3] Claro que Gil Vicente não levou em consideração, ou porque desconhecia ou porque desejava omitir, o que se passava nas ditas “guerras santas”, a verdade escusa que se esconde sob a capa das aparências, a conduta dos cavaleiros combatentes nem sempre pautada pelos ditames do cristianismo e do respeito à dignidade dos povos invadidos. Como já fizera em Exortação da Guerra, Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno alça a um nível de santidade a guerra entre portugueses e Mouros no Norte da África. 


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