21 de nov. de 2010

O Amor Platônico

Se nela está minh’ alma transformada, 
Que mais deseja o corpo de alcançar? 
Camões 


Contrapondo-se à visão sombria e negativa do amor, antes referida, os neoplatônicos recusam os seus atributos maléficos, concebendo-o como manifestação do Bem, considerando-o, como esclarece Maria Helena Luiz Piva, “isento de contaminações, princípio de ascensão espiritual e de redenção individual e cósmica.” Assim sendo, o amor, segundo a doutrina neoplatônica, relaciona-se com a inteligência divina e, como tal, é em sua essência um sentimento harmonioso e sereno, uma força capaz de encaminhar o homem ao conhecimento e conduzi-lo a um estágio elevado de aperfeiçoamento.62 Portanto, no âmbito da doutrina neoplatônica do amor não são logicamente cabíveis as execrações desse sentimento, “fundadas em motivações de ordem ética metafísicas e religiosa, nem a expressão do arrependimento e do remorso por se ter vivido, na plenitude harmoniosa da sua dimensão humana e da sua dimensão divina, o sentimento amoroso”.63
O eros platônico nasce da visão do belo. Todavia, tal beleza está para além das qualidades e aparências que o vulgo valoriza, ou seja, o conjunto de atributos físicos da amada. No amor platônico, o sujeito enamorado transcende à visão meramente exterior da mulher, para enxergar somente a graça pura, / A luz alta e severa,/ Que é raio da divina fermosura, / Que na alma imprime e fora reverbera. É esta beleza excelente, pura, reminiscência e participação da beleza absoluta, da beleza que está na alma, é, enfim, como Camões tenta definir: 

Aquele não sei quê, 
Que aspira não sei como, 
Que, invisível saindo, a vista o vê, 
Mas pera o compreender não lhe acha tomo.64

Se o eros platônico tem a sua gênese na contemplação da beleza absoluta, que se fixa no pensamento como idéia; se é manifestação do Amor, que o gesto humano na alma escreve, então ele, como força atinente a uma faculdade divina da alma, é imune à morte, porque, enfim, a alma vive eternamente, / E amor é efeito de alma, e sempre dura. 
Nestes termos, a vivência do amor platonicamente sentido escapa à substância material do ser amado, independe de sua presença física, como sugerem os versos que se seguem: 

E aquela humana figura 
Que cá me pôde alterar 
Não é quem se há de buscar: 
É raio de formosura 

Que só se deve de amar. 
Que os olhos, e a luz que ateia 
O fogo que cá sujeita, 
Não do sol, nem da candeia: 

É sombra daquela idéia 
Que em Deus está mais perfeita.65

É praticamente na poesia de Camões que a visão neoplatônica do mundo, do homem e do amor, irrompe de forma precisa, ao contrário do que se observa nos poetas seus contemporâneos. Nas obras destes, o que se constata é a manifestação sistemática de uma noção acerca do amor inteiramente contrária à noção neoplatônica, à qual se soma uma evidente reduplicação do discurso ideológico religioso agostiniano, como será visto mais adiante. 

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Apesar da expressão do amor neoplatônico ser privilegiada reiteradamente e quase que com exclusividade nos domínios da lírica camoniana, mesmo assim, é pertinente a inserção do “amor idealizado” entre os temas específicos da poesia maneirista, principalmente considerando a qualidade indiscutível do seu discurso poético e o reconhecimento do poeta como figura exponencial do Maneirismo português. 
É notória a independência de Camões face ao esquema religioso de sua época, posto que, exceção feita às redondilhas Babel e Sião, não se encontra em sua lírica o desenvolvimento de temáticas fundamentadas no ascetismo dominante nas obras dos poetas seus contemporâneos. Portanto, sem ser discrepante ou contraditório, Camões dicotomiza a sua lírica através de duas vertentes, ou seja, uma que se volta para a expressão do amor sensual, com todos os males que lhes são inerentes, fruto de sua experiência, e outra que se orienta para a expressão do amor idealizado, haurido na lição neoplatônica. Esta contraditória situação não parece ter passado despercebida ao poeta que, em uma das suas canções alude às duas tendências amorosas que em seu intimo rivalizam e disputam o espaço em sua expressão poética. Para ele, o amor carnal fraquezas são do corpo que é da terra, / mas não do pensamento, que é divino, enquanto o amor platônico é efeito da alma; [...] está no pensamento como idéia. 
No soneto, que se segue, debatem-se, no espírito e na agonia do poeta, as duas concepções de amor. A análise que o poeta faz do sentimento amoroso mostra-o ora como puro sentimento e aspiração espiritual, conforme o modelo petrarquiano, ora como rebaixamento desse sentimento que se revela maculado, na medida em que se transmuda em desejo de fruição sensual: 

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, 
Não entende o que pede, está enganado. 
É este amor tão fino e tão delgado 
Que, quem o tem, não sabe o que deseja. 

Não há cousa, a qual natural seja, 
Que não queira perpétuo seu estado; 
Não quer logo o desejo desejado, 
Por que não falte nunca onde sobeja. 

Mas este puro afecto em mim se dana 
Que, como a grave pedra tem por arte 
O centro desejar da Natureza, 

Assim o pensamento ( pola parte 
vai tomar de mim terreste humana) 
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.66

A leitura do soneto confirma, portanto, a coexistência de dois contraditórios impulsos afetivos no poeta: um que radica num ideal de amor platônico, outro derivado da experiência concreta, e ambos tão divergentes, tão opostos como o são a alma e o corpo, as exigências da carne e as solicitações do espírito. Nos quartetos, o poeta se esforça em vãs tentativas de manter-se fiel à idealização do sentimento amoroso, racionalizando em torno dos seus impulsos eróticos e buscando se convencer de que o desejo [...] não entende o que pede, está enganado [...] não sabe o que deseja. Contudo, logo no primeiro terceto, irrompe um verso portador de um outro discurso que parece postergar ou mesmo contradizer a idealização que o poeta imprimiu nos quartetos: Mas este puro afecto em mim se dana, ou seja, em mim se corrompe, se avilta. 
Vale salientar que essa contradição do sentimento amoroso vivenciado pelo poeta, esse conflito interior entre o anseio de um sentimento amoroso puro, espiritual, e o desejo de satisfazer o apelo dos sentidos, essa dupla e antinômica postura que ele assume perante o amor, tudo isto é muito peculiar à lírica camoniana e muito típico do Maneirismo. 
Maria Vitalina de Matos oferece uma explicação para as duas atitudes camonianas perante o amor, segundo a qual Camões seria realmente “um amoroso sensual” e “um espiritualista platônico”; contudo, “estas duas tendências (prova-o a sua obra) nunca se neutralizaram, nunca se equilibraram estavelmente. Por isso, há dois (e não um só) ideais de amor”.67 Portanto, a temática amorosa na poesia camoniana não segue uma direção única. O seu percurso poético desdobra-se forçosamente em cumplicidade com os dois aspectos que pode assumir o sentimento amoroso, razão pela qual foi o poeta que mais sentida e belamente exprimiu todas as nuanças do amor espiritualmente idealizado e, também, o que melhor sentiu e expressou o deleite e a beleza do amor carnal e, mais sugestivamente, soube transmitir a sensualidade e a emoção. 
Maria Helena Luiz Piva entende que a familiaridade do poeta com a filosofia neoplatônica “revela mais do que um simples arrumar de frases ou conceitos convencionais de inspiração puramente literária e indireta”68 O que fica evidente nessa atitude de Camões é a sua independência e lucidez perante as tendências comuns adotadas pelos poetas do seu tempo, a imposição do seu individualismo e da liberdade com que levava à prática a criação poética, também notórias em Os Lusíadas, texto no qual a audácia transgressiva do poeta ousa romper com o “dogma” da imitação servil ao figurino virgiliano da epopéia. 
Além de Camões, Baltazar Estaço, Estevão Rodrigues de Castro e Diogo Bernardes escreveram poemas pautados nos princípios do amor neoplatônico. O primeiro, a voz mais combativa da expressão poética do amor profano, praticou a poesia amorosa em moldes neoplatônicos. 
O trecho que se segue de um soneto desse poeta é bem elucidativo da sua adesão ao neoplatonismo, quiçá na juventude, quando o espírito andava mais solto e refratário à religiosidade obsessiva que apagaria as marcas pretéritas do enleio amoroso no lirismo do autor: 

Dividiu o amor e a sorte esquiva 
Em partes o sujeito, em que morais, 
Este corpo tem preso onde faltais 
Esta alma onde andais anda cativa. 

Contente na prisão mas pensativa, 
Por que este mal, tão mal remediais. 
Que vós comigo lá solto vivais 
E eu sem mim e sem vós cá preso viva. 
[...] 
C’ a folgo, porque sei que lá folgais, 
Porque minha alma logra imaginando 
O que lograr não pode possuindo.69

Do punho de Diogo Bernardes, vem o soneto que se segue, no qual o poeta busca traçar o perfil espiritual do ser amado, iluminado pelos seus reflexos interiores: 

Retrato da Beleza nova e pura 
Que com divina mão, divino engenho, 
Amor retratou na alma, onde vos tenho 
Das injúrias do tempo mais segura. 70

Por seu lado, Estevão Rodrigues de Castro, no soneto que se segue, interessante em razão da intertextualidade com o soneto camoniano, Um mover de olhos brando e piedoso, também muito especial pelo diálogo que mantém com um outro soneto de Petrarca, esboça um retrato da amada dentro dos códigos do neoplatonismo, ou seja, a sua figura de mulher inatingível e fascinante por sua beleza, toda feita de perfeição e virtudes, deixa o poeta em estado de maravilhamento e perplexa adoração: 

Aquela rara e nova fermosura 
Aquele rosto grave e honesto, 
Aquele perigrino e estranho gesto, 
Aquela imagem angélica e pura, 

Aquela clara visão, viva pintura, 
Da divindade indício manifesto 
Aquele olhar brando e modesto 
Que logo n’alma imprime sua figura, 

Se dentro na alma a tenho e a venero, 
Guardando-lhe o respeito e decoro 
Que merece a imagem de tal dea, 

Que tenho que temer, ou que mais quero 
(Em que ela me desame), se a adoro
E tenho na mesma alma como idea? 71
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62 .Maria Helena Luís Piva, Op. cit., p. 37. 
63 Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Amor e mundividência na lírica camoniana, p. 37 
64 Luís de Camões, Op. cit. vol. II, p. 97. 
65 Id. Ibid. vol. I, p. 112 
66 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p. 
67 Maria Vitalina Leal de Matos, Op. cit., pp. 59-60. 
68 Maria Helena L. Piva, Op. cit., p. 37. 
69 Baltazar Estaço, Canc. Fernandes Tomás, fl. 78. 
70 Diogo Bernardes, Líricas de[...], p. 99. 
71 Estevão Rodrigues de Castro, Obras poéticas, p. 352.

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