22 de nov. de 2010

O Tempo e o Sentido Agônico da Mudança


Todas as cousas vejo mudadas,
Porque o tempo ligeiro não consente
Que estejam de firmeza acompanhadas.
Camões

Na temática maneirista, a imagem do tempo em seu fluir contínuo e a consciência da ação modificadora e destruidora que exerce sobre o homem e as coisas estão sempre associadas à angústia pela instabilidade e pela fugacidade da duração da vida.
Nas reflexões dos poetas acerca do tempo, não é a constatação de que todas as coisas submetem-se a uma constante mutação o que figura como motivo de tristeza e lamentações. O que os perturba de maneira muito especial é o trágico e paradoxal contraste -já poetizado por Horácio em uma das suas odes- entre o tempo natural e o tempo humano. Submetida à ordem do tempo natural, a natureza passa por um processo de mudança que lhe assegura um renovar cíclico e contínuo, que não tem correspondência na vida humana. O tempo humano é inexoravelmente linear e irreversível. As alterações que, em sua passagem, vai impondo ao homem são para pior, na medida em que este só tem uma direção a seguir: o do desgaste físico, da degradação da mente e o caminho sem regresso para o fim da sua existência. Com efeito, O tempo a quem tudo se rende; [...]O tempo que nas cousas pode tanto 43 é impiedoso em sua força aniquiladora, e irreversível para o homem, a quem só oferece o desengano:

O tempo que tão leve vai voando
Delio, não torna mais e assim fugindo,
Tamanhos desenganos nos vai dando.44

O tempo é ainda um outro aliado da vida na mutabilidade das coisas, em sua enganadora e superficial regularidade, na inconstância de tudo. Tão célere em seu percurso, tão breve nas alegrias, instala-se com perspectivas de demora, quando portador de mágoas em que é pródigo:

Os meus alegres, venturosos dias
Passaram como raio brevemente
Movem-s’ os tristes mais pesadamente
Após das fugitivas alegrias. 45

A consciência aguçada acerca da fugacidade do tempo constitui o elemento centralizador de onde parte uma série de ramificações temáticas que lhe são tributárias: a efemeridade e a transitoriedade da vida, dos prazeres, da juventude, da beleza; a angústia e a impotência do homem perante a passagem do tempo que o arrasta, gradativa e irreversivelmente, para a senilidade, para a decrepitude, para a morte.

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A certeza da degradação e finitude, aliada à convicção de que não existe escapatória ao processo de aniquilação física e mental a que está destinado, deveria estimular o homem a valorizar e a fruir avidamente o tempo presente, a sua juventude e a plenitude de sua energia vital, enquanto isto lhe é possível. Todavia, não é esta atitude de comprazimento com os apelos da vida e do corpo o que o inspira. Daí a ausência no lirismo maneirista do conhecido tema horaciano do carpe diem, proveniente de uma citação do poeta latino que lembra a brevidade da vida e a fugacidade do tempo, sugerindo, no entanto, a máxima fruição do momento presente, a busca da felicidade imediata. Este tema, juntamente com o do collige, virgo, rosas, outro exilado da lírica maneirista, eram encarecidos ao extremo pelos poetas renascentistas. Ambos perderam o sentido ou a adequação perante a sombria e amarga mundividência maneirista que, em nenhuma circunstância, se mostra aberta ao elogio da vida, à celebração dos prazeres terrenos.
Em lugar do comprazimento com os falaciosos apelos do mundo, os poetas maneiristas preferem as alegrias do espírito, o refúgio em Deus; em lugar da fruição do momento presente, preferem sacrificá-lo em prol da bem-aventurança em um futuro, projetado além da vida terrena.
O desencanto com a vida e a conseqüente reflexão acerca da condição humana, do destino do homem na vida terrena e na vida eterna, bem como o temor de perder a bem-aventurança nesta última constituem uma das linhas temáticas mais desenvolvidas pelos poetas maneiristas.
Pero de Andrade Caminha inclui-se entre os inúmeros poetas que revelam essa lúcida consciência acerca da celeridade com que o tempo transcorre, da conseqüente brevidade da vida e do vazio das aparências:

A pressa com que o tempo voa!
A pressa com que a vida à morte corre!
E nada disto em nossas almas soa!
Tudo depressa acaba, tudo morre. 46

O tema da mudança operada pelo fluir do tempo também é freqüente na lírica de Camões. Na Canção X, ele expressa o nostálgico desejo de voltar no tempo, pois da vida já transcorrida o poeta não tem senão memórias dos passados anos. Daí o seu desejo de um retorno, que sabe impossível, aos tempos pretéritos onde situa a sua ventura:

Que se possível fosse que tornasse
O tempo para trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse,
Pelas flores que vi da mocidade.47

As únicas certezas que jamais falham são as de que o tempo é fugaz e irreversível, que os anos transcorrem céleres e que tudo está sujeito à mudança.
A mudança, para os maneiristas, tem um significado que ultrapassa bastante o de simples e natural modificação física. Mais que isto, ela se traduz em transmudação da felicidade e do prazer em infortúnio, dor e sofrimento, da alegria e da esperança em tristeza e desilusão. Assim sendo, a certeza da brevidade da vida, a convicção de que tudo passa inexoravelmente, de que nada é permanente e inalterável, projeta o homem na dolorosa angústia da mudança que a tudo transforma e conduz à irrecorrível decadência tanto no que diz respeito ao físico quanto à própria mente do indivíduo, afetando suas idéias e pensamentos, a sua memória e a sua capacidade de discernimento.
Frei Agostinho da Cruz, Camões e Fernão Álvares do Oriente incluem-se dentre os poetas que mais fizeram do tempo tema para suas poesias:

Tudo se muda em fim, muda-se tudo,
Tudo vejo mudar cada momento:
Eu de mal em pior também me mudo.48

Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades
[...]
Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado. 49


Tudo se vai mudando,
Nada num firme estado permanece:
Nossa vida passando
Vai sempre tão incerta, que parece
Que de continuo está desenganando
Esta vária mudança.
[...]
Tão sujeito o mortal vive à mudança! 50

Frei Agostinho da Cruz, fugindo à fórmula tradicional da comparação entre o ciclo da natureza e o da vida humana, motivo para lamentos pela desvantagem que leva o homem submetido à voraz ação modificadora e destruidora do tempo, tece a sua queixosa reflexão sob outra perspectiva.
No soneto, que se segue, a questão do contraste entre o renovar cíclico da natureza e a progressiva e irreversível decadência do homem não se coloca como o ponto fulcral das mágoas do poeta. O contraste que se estabelece, ao longo dos seus versos, ocorre entre a mudança renovadora e positiva dos elementos da natureza e a estagnação perturbadora verificada no “triste estado” de sua alma. Os versos do último terceto principalmente revelam um misto de medo e tristeza no espírito do poeta em razão de sua descrença na possibilidade de sair do impasse, de alcançar o bem, restando-lhe apenas nutrir-se de mágoa e de pranto:

Passa por este vale a primavera,
As aves cantam, plantas enverdecem,
As flores pelo campo aparecem,
O mais alto do louro abraça a hera.

Abranda o mar, menor tributo espera
Dos rios, que mais brandamente descem,
Os dias mais fermosos amanhecem,
Não para mim, que sou quem dantes era.

Espanta-me o porvir, temo o passado,
A mágoa choro dum, doutro a lembrança,
Sem ter já que esperar nem que perder.

Mal se pode mudar tão triste estado,
Pois para bem não pode haver mudança,
E para maior mal não pode ser. 51

Camões, não somente se mostra consciente da mudança como um processo geral por que passam todas as coisas, a personalidade e o físico das pessoas, como expõe a sua visão pessoal acerca dos infortúnios acarretados pelas mudanças causadas pela passagem do tempo:

E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi tantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
[...]
Vi ao Bem suceder o Mal
E ao Mal, muito pior. 52

A certeza de que tudo passa, tudo é instável e tudo conduz à degradação e à morte, faz desta última um motivo recorrente na tematização do tempo, principalmente na poesia de Frei Agostinho da Cruz, para quem a morte significava a libertação da vida, esse obscuro lugar de desterro da alma, para a ansiada bem-aventurança no amor eterno de Deus:

A alma que em Vossas mãos presa se entrega
Não tem de que temer, nada receia,
[...]
Colhe suave fruto de alegria,
Saudoso da sua em terra alheia. 53

Vale ressaltar que essa concepção da vida como desterro, degredo e prisão, deriva da mundividência neoplatônica, sendo comum a alusão a essas imagens nas obras de muitos poetas maneiristas.
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NOTAS

43 Diogo Bernardes, Rimas várias, soneto LXV e LXII.
44 Id. Ibid., p. 112.
45 Pero de Andrade Caminha, Poesias inéditas, p. 95.
46 Pero Andrade Caminha, Poesias inéditas, p. 95.
47 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p.199.
48 Frei Agostinho da Cruz, Obras, p. 2.
49 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p. 235.
50 Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia transformada, p.
51 Frei Agostinho da Cruz, Obras, p. 90.
52 Luís de Camões, Op. cit., vol. I. p. 235.
53 Frei Agostinho da Cruz, Obras, p. 2.

Zenóbia Collares Moreira

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