18 de nov. de 2010

O Amor Divino


É triste quem por baixo amor malino
Alto e divino amor trocar quisesse
E de vão bem por uma vã figura.
Aventurar um bem, que sempre dura.
(André F. de Resende)

A tematização do amor divino ocupa um espaço considerável na obra dos poetas que escreveram os seus textos, no período pós-tridentino, principalmente na fase que se segue à derrota portuguesa no norte da África e que assinala uma época marcada pela situação de miséria e humilhação que abate o ânimo e o orgulho nacional do povo português, com a pátria sob o domínio da Espanha.
Muito comprometido com o ascetismo que se intensifica e domina a sociedade finissecular, surge o tema do desengano, um dos mais recorrentes na l po e no obscuro sótão da memória.

Lírica dos maneiristas.

Conseqüência do engano, ou seja, da tendência do homem para se deixar seduzir e arrastar pelos tortuosos meandros das ilusões com que se afasta da realidade, vivendo uma existência sem sentido, fantasiosa, pautada na busca descomedida de gozos e de bens materiais.
A tomada de consciência acerca da condição ilusória em que transcorre a vida do homem constitui o ponto de partida para o desengano libertador, que o livra do apego aos transitórios e falazes apelos mundanos. Liberto das ilusões, o homem volta-se para uma vida ascética, arrepende-se do tempo mal empregado no erro, na mentira, no pecado, e passa a conduzir sua existência por uma novo percurso direcionado para Deus.
Esta nova atitude de devoção e o anseio de extinguir o desejo das coisas terrenas de dentro da alma, leva o homem da época a uma atitude de repúdio aos enganosos apelos mundanos, principalmente ao amor carnal, considerado o maior de todos os enganos e fonte de tantos infortúnios dele decorrentes. Contudo, a maior restrição que fazem ao amor carnal é pautada na crença de que o amor os leva à busca de alegrias e prazeres efêmeros e enganosos, constituindo uma fonte de malefícios e de perdição para o homem, além de o desviar do amor de Deus, o único amor que nunca se extingue e jamais desilude ou engana aqueles que dele se acercam. Na sua lírica, Camões se queixa constantemente do caráter falacioso do amor: De amor não vi senão breves enganos; 87 Em amor não há senão enganos.88

De amor e seus danos
Me fiz lavrador:
Semeava amor
E colhia desenganos. 89

Diogo Bernardes expressa abundantemente a sua queixa pela brevidade com que passam as alegrias proporcionadas pelo enganoso amor, o quanto são inconsistentes as promessas de ventura, logo esquecidas:

Horas breves do meu contentamento,
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos viste tornadas (tão asinha!)
Em tão compridos dias de tormento.
Aquelas torres que fundei no vento,
O vento as levou já, que as sustinha:
Do mal que me ficou a culpa é minha,
Que sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor, com rosto ledo e vista branda,
Promete quanto dele se deseja:
Tudo possível faz, tudo segura,
Mas dês que dentro na alma ina e manda,
Como na minha fez, quer que se veja
Quão fugitivo é, quão pouco dura !90

(LEIA MAIS, clicando na frase abaixo)


Fernão Rodrigues Lobo, como Bernardes, também tem o seu drama amoroso gravitando em torno dos tormentos e dos desenganos que o amor lhe impõe:

Após um não sei que, que foge e passa,
Que aonde houvera de ser desenganado,
Ahi mais a seu salvo me embaraça.
Mas que mal haverá que não me faça,
Se me obriga a servir um vão cuidado
Que contra o meu sossego conjurado
Quer que edifique eu, quanto ele traça?
[...]
Mas tem tal ódio a meu contentamento
Que nem me larga, nem, se me largara,
Fora mais que por dar-me mór tormento. 91

Em decorrência da sua própria condição de ser desejante, o homem, ao longo de sua vida, dificilmente consegue escapar das armadilhas da ilusão, aos enleios da paixão, aos apelos dos sentidos. Todavia, a consciência acerca dos enganos e males do amor leva os poetas a contrastarem os deleites e contentamentos propiciados pelo amor divino com as falácias e tristezas provenientes do amor humano, considerado uma quimera perigosa e mentirosa, onde se comprazem as vidas mundanas e as almas frívolas, pois como adverte André Falcão de Resende:

Nesta tão breve vida e tão pequena
Duas coisas se amam só principalmente,
Uma nos salva, e outra nos condena.
Ou se ama o Criador onipotente,
Ou se ama alguma baixa criatura
Das a quem mais cada um inclinar-se sente. 92

A busca do amor de Deus e o desprezo pelo amor profano radicam, portanto, no desengano, na descoberta por parte do poeta do erro em que arriscara a sua relação espiritual com o Criador, por vias dos seus enganos. Assim, o engano e o desengano constituem apenas etapas de um mesmo processo de aproximação do homem à prática da religião e de afastamento das coisas terrenas. A esse processo, associa-se, comumente, o desprezo pela poesia profana e a adesão a uma poesia voltada para a religiosidade e o sagrado. Nos versos que se seguem, André Falcão de Resende deixa bem clara esta tendência da poesia da época:

Triste quem por baixo amor malino
Alto e divino amor trocar quisesse,
E de vão bem por uma vã figura
Aventurar um bem, que sempre dura. 93

Esta oposição do amor divino ao amor humano, como foi antes mencionada, radicalizou-se avultadamente nas derradeiras décadas do século XVI, sob a influência dos rigores penitenciais do catolicismo pós-tridentino que geram no espírito dos homens o desprezo pelas coisas mundanas como primeiro e decisivo passo para a conquista da bem-aventurança na vida eterna.
Baltazar Estaço deixa bem claro no trecho de um dos seus poemas o que lhe ensinou a lição do desengano e as razões que o levam a buscar no amor de Deus a felicidade e a paz que o amor humano não lhe proporcionara:

Pastor sabe de mi hô desengano,
Que não poderá ser desta paz digno
Sem quereres deixar o amor humano,
Pera vires a gostar o amor divino:

Por teu proveito assy trocas teu dano;
Deixando o ferro pelo ouro fino.
E não deixei amor, troquei amores
Troquei outro que por si tudo me alcançava,

Troquei hô que corpo, e alma me cansava,
Por outro que alma, e corpo me descansa,
Troquei o que em espinhos me lançava,

Por outro que minha alma em rosas lança,
Hô nascido na paz, outro na guerra,
Hô natural do céu, outro da terra. 943

Esta contraposição do amor divino e do amor humano “não só envolve o repúdio dos gozos carnais, o desprezo do mundo e um comportamento ascético, como implica a destruição do ideal petrarquista e neoplatônico do amor humano.”95 Este deixa de ser encarado como um instrumento de aperfeiçoamento espiritual e de elevação do homem até o divino, na medida em que, nessa oposição entre duas formas de amor, o amor humano não se identifica exclusivamente com o amor sensual, mas com todas e quaisquer manifestações do amor profano.
O desejo de conquistar a bem-aventurança orienta-se, mais das vezes, por um desejo de evasão para a transcendência, para um além de tudo quanto é terreno. Instaura-se, assim, não uma busca aleatória de Deus, e sim uma procura fervorosa do amor divino, que assinala o desejo de infinito, de ascensão do amor da criatura até o seu Criador. Esse movimento para as alturas celestiais, essa busca de preenchimento de um vazio que a vida mundana não consegue suprir, enfim, esse sursum corda denuncia uma atitude de abandono dos apelos do mundo terreno e um anseio de completude em Deus: oh quem vira naquela fortaleza / rodeada de fogo de amor puro / daquele amor divino esta alma acesa, exclama Frei Agostinho da Cruz.
Com efeito, o amor assume, na lírica dos poetas maneiristas pós-tridentinos, uma outra conotação, na medida em que tem como objeto Deus, idealizado como o Sumo Bem.
Segundo as crenças em vigor na época, é o amor o elo entre o homem e Deus, é ele o condutor da alma ao conhecimento do mistério que se aloja além do tempo humano, nos horizontes da eternidade, para suas núpcias místicas com o Criador.


87 Id. Ibid., vol. I, p. 257.
88 Id. Ibid., p. 227.
89 Id. Ibid. p. 5.
90 Diogo Bernardes, Líricas de[...], p, 94.
91 Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Canc. Fernandes Tomás, fl. 28v..
92 André Falcão de Resende, Poesias, p. 60.
93 Id. Ibid., p. 44.
94 Baltazar Estaço, Op. cit., fl. 35
95 Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Op. cit., p. 308


Zenóbia Collares Moreira. A Poesia Maneirista Portuguesa. Natal: EDUFRN, 1999.

Nenhum comentário: