27 de jul. de 2011

Rosa Alice Branco- Retóricas femininas " fin-de-siècle" - Parte VI



Rosa Alice Branco, poetisa, filósofa, ensaísta, tradutora é também co-fundadora da revista Limiar. Nasceu na cidade de Aveiro, em 1950. Realizou Mestrado em Filosofia do Conhecimento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. No momento, prepara a sua tese de Doutorado na área de Percepção visual e Psicologia do ambiente. A autora tem várias obras publicadas entre poesias e ensaios.
O lastro filosófico, no qual se assenta a produção poética de Rosa Alice Branco, radica nos seus estudos filosóficos, aprofundados no.dos quais resultaram trabalhos acadêmicos sobre a teoria da percepção do filósofo inglês do século XVIII, George Berkerley (A percepção Visual em Berkerley como Operação Interpretativa- 1998), bem como um ensaio (O que falta ao mundo para ser quadro- Porto: Limiar, 1997), no qual a autora tece reflexões de ordem estética que a levam a afirmar que é a partir do olhar humano que se dá a construção do mundo. E, como diz Maria Irene Ramalho, “o que funda este saber, em que o “olhar humano” é a metáfora perfeita dos sentidos da percepção, encontra-se nos poemas de Rosa Alice Branco”, desde o seu livro de estréia – Animais da Terra (1988).
Na poesia de Rosa Alice Branco, a “celebração do quotidiano” ocupa um lugar privilegiado. Todavia, a autora segue por trilhas bem diferentes das trilhadas por Adília Lopes, no que diz respeito à tematização das coisas do quotidiano ou, como ela prefere chamar, a “celebração do quotidiano”. Em seu discurso, os aspectos mais simples do quotidiano, mesmo as aparentemente insignificantes, são abordados de uma forma quase ritualizada, através de uma espécie de erótica do sagrado que finca as suas raízes na percepção do universo pelos sentidos. Essa poesia que celebra o quotidiano, bem como a questão “carga erótica”, que a reveste, são explicadas pela autora, de forma muito clara, em uma entrevista que concede a Floriano Martins, para a Revista da Cultura:
A poesia como celebração do quotidiano é um bom sintoma de outra postura de vida. As palavras despem-se do medo de serem apenas palavras, mas passamos de uma dimensão representativa a uma dimensão mais apresentativa. Há toda uma intimidade, uma aproximação furtiva ao quotidiano que lhe retira a banalização do olhar. É como Cézanne pintava as maçãs, como reflectia sobre um simples açucareiro ao comentar que é preciso amar essas pequenas coisas, quando falava da tristeza da pele do pêssego, ou das rugas da maçã. Subitamente, somos confrontados com esses minúsculos seres mágicos que nunca tinham convocado a nossa atenção e que ganham a dignidade de objectos amados.[1]
Sobre a “erotização” que muitos sentem ou percebem em sua poesia, a poetisa diz não considerar inexistente “um erotismo explícito” em sua poesia, acreditando, no entanto, que “essa carga erótica na recepção é um efeito da sensualidade dos poemas, entendida aqui como uma poética dos sentidos e dos sentires”.[2] O poema que se segue exemplifica bem o que diz a poetisa. Nele é o olfato quem conduz a abertura do poema para o mundo circundante, para as coisas, liricamente percebidas:


Pela janela vem o cheiro da manhã, da relva e das rosas salpicadas de fresco que se casam com o cheiro dos lençóis sonolentos.
Ao bater a porta já só sinto o meu perfume, o que pomos por cima das certezas e das dúvidas, por cima dos segredos que trespassam a pele.
Em breve me confundirei com o cheiro dos outros, daquele homem vergado pelo saco de batatas, da florista a compor as margaridas, da peixeira à porta da vizinha mostrando as goelas sangrentas (talvez porque tenha levantado cedo a apregoar assim fere a garganta), das crianças a caminho da escola, de todos os que hão-de cruzar o meu dia e de ti que hás-de cruzar também a minha noite. Contar-te-ei todas as horas com a mistura dos aromas que me compõem e ouvirei na tua pele a subtil diferença entre os dias.
Amanhã fecharemos a porta e o teu cheiro irá entranhado em mim até uma distância infinita das rosas que cantam à janela pela estrada estendendo a pele às dádivas do dia.




CONTINUA A SEGUIR




Rosa Alice Branco - Continuação.





Nos poemas de Rosa Alice, a idéia recorrente que os percorre é: “vemos o que vemos, porque no olhar materializamos a realidade Mesmo quando não vemos, é a percepção dessa negatividade que nos ilumina o ser”. Daí dizer no verso que abre o poema Passos sem memória, que será dado a seguir “Olho pela janela e não vejo o mar”. Neste poema, verso a verso construído sob o signo da poética do quotidiano, o assento recai sobre as palavras, substantivas, precisas claras como o dia que amanhece na perplexidade da página em branco: As palavras são as primeiras a chegar, trazendo o quotidiano para dentro do poema: a manhã, a relva, o lume, o pão, o jornal, a saliva, o papel, as gaivotas.


Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
 
Andam por aí e a relva vai secando no varal.

Manhã cedo,


O mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume


e o jornal. A saliva com que hei-de dizer bom dia.


As palavras são as primeiras a chegar.


O que fica delas


amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem


e a relva vai secando no varal.


Manhã cedo,


o mar ainda não veio.


Veio o pão, veio o lume e o jornal.


A saliva com que hei-de dizer bom dia.


As palavras são as primeiras a chegar.


O que fica delas amacia o papel.


Pão quente com o sono de ontem


e os sonhos de hoje.


Prepara-se o dia, os passos de ir e vir.


Estou cada vez mais perto.


Olhas-me como se soubesses


o que hei-de saber mais logo


nesta cidade nunca é meio-dia.


Há sempre uma doçura


de outras horas. E recordações avulsas.


Deixa sair de dentro do vestido,


deixa soltar as ondas do mar.


A janela está vazia.


O meu filho caminha na praia


e tu soletras as gaivotas.


Caminha à minha frente


Sem deixar pegadas. Perco-me


com todas as mãos, todos os amantes.


Invento passos e palavras


para adormecer. A esta hora a minha avó


enrolava o rosário nas mãos.


Eu estava dentro das contas,


dentro do sono


que rondava a prece. Durante muito tempo


estive fora,


agora caminhamos juntos. Sem memória.


No poema, que vem a seguir – A tua pele descalça - pode ser sentida a energia de Eros transitando solto e liberto através dos versos. Antes de transcrevê-lo, damos a palavra, mais uma vez, à poetisa para que melhor seja compreendido o erotismo em sua poesia:




“A minha poética, diz a autora, pode ser entendida enquanto apologia do corpo no mundo, em que o corpo funciona como um sistema aberto em constante importação e conseqüente transformação. O maravilhoso operador destas passagens é sobretudo a pele, suficientemente consistente para se constituir enquanto superfície delimitadora e suficientemente porosa para deixar entrar o mundo de um modo táctil e eis porque tudo o que nos chega através de qualquer sentido como os olhos, o nariz, a boca, etc., nos acaricia. (...) A carga sensual da minha poesia, que advém sempre do pacto entre o corpo e o mundo, em que o corpo se faz corpo com o mundo, poderia quase exprimir-se numa frase, que apesar das aparências, nada tem de cartesiana: toco e sou tocada, logo existimos". Isto posto, que se leia o poema A tua pele descalça:"




Veio uma onda. A varrer o meu sono.

Caminhava nele como caminho na areia.


Nada me une ou divide. Nada me retém.


Sentas-te onde me sento no teu colo


e peço sempre a mesma história. A tua voz


cria as memórias que hei-de ter.


Por agora caminho ao longo das gaivotas


e grito como elas quando a maré baixa.


Às vezes apoio-me num rochedo


para dizer “casa” e logo desmorono.


Sigo descalça como tu para dizer “seguimos”.


Mas são apenas sons sob o sol de maio.


Murmúrios do que não serei.


Sempre tive problemas com o verbo ser.


Faço e desfaço as malas, entro


e saio das gavetas.


Pausa na camisa que vestiste da última vez.


Uma vontade de a amarrotar,


desapertar os botões e sentir lá dentro


a tua pele cá fora.


Tudo isto é tão verdade como podem ser


os botões de uma camisa escrita. Confesso


que não pensei na cor,


ou se era às riscas. Agora acho que podia ser


a de quadrados.


Em qualquer delas a tua pele entra na minha.




Para finalizar, mais um poema de Rita Alice, no qual o mar é evocado, imagem recorrente e pleno de significados na cosmogonia da poetisa:
 
De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
Bebemos e falamos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
De sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
E a tua mão na minha perna. Lá no céu
Um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
Acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
E as palavras voam em redor de nós
Alagadas em suor. E vem o mar.

A leitura dos poemas de Rosa Alice Branco aponta também, como um forte traço definidor de sua arte poética, também, como uma meta-poesia, ou seja, uma poesia que se volta para ela mesma, para se pensar e se interrogar, sem perder de vista o ininterrupto diálogo dos seus textos com a filosofia.

Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX.
_______________________
Notas

[1] Floriano Martins, “Rosa Alice Branco: esboços e sombras (entrevista)” in: Revista da Cultura, nº 35 –Fortaleza, S. Paulo – agosto de 2003.
[2] Id. Ibidem.

FIM DA PARTE VI




Teresa Rita Lopes - Retóricas Femininas Fin-de-Siècle - Final.


Teresa Rita Lopes nasceu e viveu em Faro, no Algarve até vir para Lisboa cursar a Faculdade de Letras. Nos anos 60 foi obrigada a ir para Paris, onde viveu cerca de 20 anos, doutorando-se e lecionando na Sorbonne. Regressou a Lisboa, onde é professora na Universidade Nova. Como pesquisadora e ensaísta, tem tido particular interesse por Fernando Pessoa e Miguel Torga. 
A poetisa e ensaísta Teresa Rita faz coro com outras vozes poéticas femininas que, na década de oitenta, dão continuidade à prática de um tipo de poesia voltada para a reabilitação do real quotidiano, no seu caso através de um discurso conduzido pela emoção, pela afetividade:

Junto a um muro velho
A uma casa ruída
A velha amendoeira diz que não
À morte
E fica
De repente
Menina e noiva
Ao mesmo tempo
O vento ri-se dela
Arranca-lhe as pétalas
-Mas são tantas que não se nota – 
Escarnece-a:
“És uma velha louca de véu e grinalda!” –
para enxotar os insultos machistas do velho
vento.

Os poemas curtos, a forma minimalista somam-se nos poemas de Teresa Rita Lopes que compõem o seu livro A Fímbria da fala, no qual “uma só palavra constitui um verso”, da mesma forma que o substantivo domina o campo da expressão poética, como exemplifica o poema Dia a dia:
Dia 
a
dia 
noite 
noite
pedra
pedra 
palha 
a
palha 
tronco 
a
tronco 
cuspo 
cuspo
gesto 
gesto 
passo
passo 
flor 
flor
se faz um ninho
um caminho


Tristeza porque não
mas não
tristeza vidro sujo a cuspir sua vileza
sobre todas as paisagens
não tristeza dente podre 
a proibir qualquer sorriso
não tristeza nódoa de gordura sobre
a seda natural deste mar 
deste ar 
Tristeza ah porque não
avança sobre
mim mas toca harpa
cobre-me de luto 
sem vergar ombros 
sê uma auréola 
de negra luz sobre a minha cabeça

Quando te tinha
Mãe
Não sabia
Havia
De te perder
Nem pensava
Sequer
Que podia
Não te ter
Não parava
Para te saborear
Para te saber
Tão precisa
À minha vida
Tão preciosa
Não gozava
A alegria
De te saber
Mãe
Agora que morreste Mãe
e só em mim te tenho
sou mais que o meu tamanho
porque sou tu também
Tuas mãos afagam as minhas mãos
de quem são estes gestos esta pele?
Nunca me deste irmãos
só contigo reparto o meu farnel
de quotidianos fardos e alegrias
breves e desta brasa em chaga
Que é a tua ausência nos meus dias
órfãos mas sempre ao colo desta mágoa
de não te ter sido esquiva
de não te ter nunca aberto as portas
do meu ser de nunca te ter dado vivas

As obras das poetisas da década de 80 são de suma importância para a renovação da poesia, não apenas porque levam em seu bojo heranças de décadas anteriores, que se foram desdobrando em outras, assumindo roupagens diferentes e ressurgindo através de novas linguagens. No fértil terreno dessas mutações renovadoras fincaram-se as raízes uma nova forma de realismo que recupera a poesia do quotidiano sob uma outra perspectiva que nada deve à poesia do quotidiano consagrada por Cesário Verde, no século XIX. É sobre a realidade do século XX, a partir da visão particularizada de mulheres de uma outra era que esse quotidiano é focalizado.


18 de jul. de 2011

Marta Paes e Rita Olivais: Retóricas Femininas Fin-de-Siècle - Parte V

Poetisa contemporânea, Marta Paes participou do II Festival de Poesia de Vila Nova de Foz Côa, realizado em 1985. Sua poesia trilha pelas veredas da expressão do desejo (a intemperança gulosa da libido), da paixão que move o corpo e o incendeia (a remota ânsia de que o fogo se não apague), as evocações da fruição do amor carnal (a tontura do riso, na provocação neurótica / a volúpia do corpo no instante), desenvolvendo-se, portanto, em consonância com poesia de cunho erótico, tão do gosto da lírica contemporânea feminina. Da antologia Tempo Migratório, colhemos as poesias de Marta Paes que vêm a seguir: 

CIO DA VÉSPERA (FRAGMENTO) 
1. 
O apetecido gesto do corpo 
sai da escuridão na gargalhada, 
a intemperança gulosa da libido. 
não perceber o ardor, meu desejo. 
Trago no seio a carícia ofertada 
refúgio de vegetar nas teias de aranha. 
2. 
Na sede... a hipótese da crisálida. 
O rosto multiforme 
a incapacidade da molécula impulsiva. 
Ninguém advinha 
a remota ânsia de que o fogo se não apague. 
3. 
Não direi 
do grito da subida terminada 
da mordidela na almofada 
da coxa galopada 
nem da montanha afogueada. 
Não direi mesmo nada... 
5. 
A tontura do riso, na provocação neurótica 
a volúpia do corpo no instante. 
Porque na rotina, a insuficiência convicta e lenta. 
Do acto... o esquecimento, pela rejeição metódica. 
Do gesto percebido, o inevitável! 
Conhecimento do limite. 
6
Falta, pela memória, a faculdade da resistência, 
Mais valera 
estar fechada no corpo irritado, 
recurso do sentido que desiste na procura. 

7. 
a imagem estilhaçada na agonia de não 
tocar a pele 
de mim toda reflectida no cio da véspera 
onde a ânsia se começa na idade germinal 
e o corpo sobrepõe ao racional, o desejo. 
Porque da idéia a vontade do gesto primeiro, 
Ou da oferta a necessidade do auge. 

RITA OLIVAIS 
Poetisa nascida em Lisboa, no ano de 1938, Rita Olivais fez a sua estréia literária em 1987, com o livro de poesias Pausas num Silêncio. As poesias reunidas nesse livro trazem uma espécie de “novo romantismo” entremeado se uma discreta sensualidade, já presente na obra de poetas que estrearam na década de 70, mas que encontrara espaço para a sua permanência na poesia das décadas que se seguiram, disputando com o realismo quotidiano a preferência das poetisas: 

VITRAIS 

Dizes que os meus olhos ficam verdes 
dor da erva doce onde me deitas; 
Dizes que os meus olhos ficam loiros 
cor do areal onde me deitas; 

Dizes que os meus olhos ficam negros 
Quando em noites brancas não me entrego; 
Dizes que os meus olhos são azuis 
quando já não espero e me possuis. 

Então 
eu sou a cobra que assobia 
se enrola, cola e te asfixia;
Então 
eu sou a leoa que magoa 
te morde, ataca e não avisa. 

Depois 
tu és o cisne que desliza 
vencido, 
no meu corpo amanhecido. 


SEXTETO 
És a flauta que estonteia 
o trompete irreverente que destoa 
o violoncelo displicente que vagueia 
pela noite de um nocturno que magoa 

guitarra tão doída que soluça 
violino tão doce que arrepia 
e sax tão sexy que me aguça 
o despudor de fugir da harmonia. 

DEMISSÃO 
Hoje 
pela primeira vez 
envelheci. 
Hoje 
pela primeira vez senti 
que já não era a primeira vez. 
Hoje 
pela primeira vez 
a criança morreu-me nos braços 
e a canção na garganta. 
Hoje 
pela primeira vez ambicionei 
estabilidade e fixação de planta. 
Hoje 
pela primeira vez 
criei laços com a minha estátua. 

ROMà
Abri uma romã 
Entre o horror e o fascínio 
de um útero de súbito a descoberto, 
sacudiu-me um vómito de prazer 
e atirei-me a ela. 

Desfi-la. Desfiz-me. 
Depois 
Tudo voltou harmoniosamente 
Ao seu lugar 
Num esplendor incrível de nudez.

A expressão do erotismo e da sensualidade ainda faz parte dos interesses de muitas poetisas, mas já não tem o vigor que a revestira na década de 70. 

Autora: Zenóbia Collares Moreira. Ensaios.

5 de jul. de 2011

Isabel de Sá e Maria Giraldes:Retóricas femininas fin-de siècle;. Parte IV.



Só o lume dos teus beijos rompe 
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro, 
na semente de um amor atribulado.
Isabel de Sá


Nascida em 1951, Isabel de Sá fez a sua estréia na literatura em 1982 com o livro Desejo ou asa leve, ao qual se seguiram mais seis publicações que a tornaram conhecida e bem recepcionada por parte da crítica. Por sua escrita de orientação homossexual, a poetisa é, segundo a opinião de Cecília Barreira, o caso “mais representativo dessa literatura diferenciadora”,[i] no âmbito da poesia feminina portuguesa contemporânea. 
Entrevistada por Cecília Barreira, estudiosa de obra de Isabel de Sá, a poetisa destacou, Em Nome do Corpo como a obra de sua autoria na qual a orientação de escrita é nitidamente homossexual, da mesma forma que as ilustrações de Graça Martins nele inseridas são sugestivas deste universo de diferença:[ii]

Era uma mulher sumptuosa, de cabelos levemente
Ondulados (...) Aproximara de mim o gesto, vigoroso,
Ao prender-me a mão entre os seus dedos deixando
Uma impressão de queimadura [iii]

A poesia de Isabel de Sá assume um caráter transgressor ao transpor as fronteiras da censura e do estigma que recai sobre as relações entre mulheres. Todavia, o ritual amoroso referenciado em seus poemas é discreto, despojado de luxúria, velado pela ausência protetora de indicação de gênero: 

Depois do amor
deixavas o quarto na penumbra,
os lençóis usados, o perfume
dos corpos e o abraço.
Depois, noutro lugar da casa
as persianas quase fechadas,
a luz filtrada como num quadro
de Matisse, um poema
nalguma voz excepcional
e o cigarro, lentamente,
ainda um beijo perdido e tímido,
o aroma do gel de banho.
A porta fechava-se por fim
e nós íamos pelas ruas
ao anoitecer sentindo a atmosfera
de cada dia, a despedida
com a certeza doutro encontro

No poema acima, como em outros do livro O Brilho da Lama, a própria omissão sistemática do gênero no qual se inscreve o destinatário das mensagens poéticas de Isabel de Sá aponta para a prudente intencionalidade de não alardear a orientação sexual que subjaz à sua escrita: Só o lume dos teus beijos rompe/ a treva onde a solidão nos mata./ Enrolamos a vida no escuro,/ na semente de um amor atribulado. Em alguns textos irrompem alusões criticas ao contexto masculino: Chegam em grupos/ mulheres-bonecas, apunhaladas./ Parecem fugidas/ da catástrofe. Algumas/ possuem elementos masculinos,/ exibem correntes quebradas.

MARIA MELLO GIRALDES

Nascida em Lisboa, Maria Giraldes faz parte da nova geração de poetisas surgida na cena literária na década de 80. Em 1983 fez a sua estréia com o livro 5 Espaços, ao qual se seguiu, em 1988, Seis momentos. 
Em 5 Espaços, Maria Giraldes desenvolve uma poesia de intenso conteúdo erótico plasmado através de uma discurso vigoroso e lírico, de uma poderosa imagética e de sugestiva linguagem que parece irromper da límpida nascente do amor, do desejo, da ânsia de entrega absoluta ao ato da escrita, ao corpo a corpo com a palavra esquiva, à ânsia de tocar o “corpo” do poema (desejo de amar e mais / teu corpo). A angústia da busca da palavra por encontrar (palavras não ditas mal ditas / rasgadas), a procura da poesia (respiro estas letras / lavo os pincéis) o desafio de plantar as suas raízes no branco límpido da folha de papel (rebento as raízes / desafio / escrevo (...) a palavra penetra / sem pretexto o texto diz / percurso retirado / fermento / um castigo sem falta apodrecido / por falta de razão ou de sentido). A relação da autora com a escrita, com a palavra com o ato da criação poética, com o corpo do poema é carregada de uma intensa paixão, de uma agônica tortura e, paradoxalmente, impregnada de sensualidade e erotismo:

uma linha marca um ponto
desejo de amar e mais
teu corpo
levanto os muros e as matérias
dispo desfaço gritos de aço.
parti as ferramentas de vidro.
serenamente voltei para dizer
um só momento basta e é tanto
o peso de horas sangue vertido.
manejo o sonho.
aprovo o meu gesto desatento
na mesa do café ou num relvado.
secam os ramos é cedo ainda

a boca abre-se lagrimas soltam
palavras não ditas mal ditas
rasgadas.
são de terra as mãos
é branco o olhar gigante de te ver
o rigor do gesto e da palavra
a fluidez do som dos traços
unindo as linhas ocas dos teus braços
em falas sós.
o eco é demais
isso esmalte derramado.
respiro estas letras
lavo os pincéis como lavo as vozes
como arroz pão uvas
parto ovos avelãs e nozes
oiço o crescer dos fetos
tremo no meio do sonho
crispo-me ao escutar o fogo
compasso certo do teu passo
dúvida ou saber de cor
a forma do teu corpo
cor de beijo

A busca continua, noite a dentro, diante da perplexidade da folha, na qual “uma linha marca um ponto”, o começo, o principio, o lugar do “verbo” inominável do “princípio”, o “verbo que se vai fazer palavra e “habita o poema” que dela nasce:

parti
a procura da ausência
o para além da medida exacta
a invenção do lento recomeço
a fuga à realidade
o momento desejado
um itinerário rasgado de opostos
uma fábula entre as minhas mãos e o papel
um acontecer espaços movimento
marcos de uma nova propriedade
o possuir das mãos.
(...)
era tudo força.
E o peso da ternura ao meu colo
Resplandecia num satélite
Caído no ventre.
Lá fora o meu corpo falava
De silêncio e folhas.
Debaixo das águas
O som do girassol.


Um lençol
Imenso
Cobria e descobria 
A fala ia reaprendendo a fala
Uma descoberta na cor
Do meu corpo
O cabelo inclinado
Os olhos cobrindo o espaço
Uma mulher deitada
E eu dentro desse corpo
Respirando.
(...)
os olhos abertos
correndo de um lado ao outro
perseguindo histórias coisas nadas.
Uma velocidade intolerável
Dentro o redemoinho do assombro.

Não petrifiquei o imaginário
A sombra eu
Nasceram figuras obscuras
Palavras fendidas
Fascinações fotografias
Letras definidas
Ecos entre o meu corpo e o espaço
Pressagio.
(...)
lentamente subia entre o lençol e a pele
espaço tapado de vidro e aço
cobrindo a nudez o grito da palavra
um silêncio brusco.
letras saltavam de luz rareada
a possibilidade
uma leitura
o deambular acordado
o sonho rasgando o cepo da memória
a transformação do peso
a mutação filmada
a transparência
o limiar da hipótese.
a força dos tecidos
a sintaxe
o frio
o medo da memória
os dedos espalmados
a fuga no lençol
o espaço do sono.
acordei a minha voz
e o pano partiu
o ar respirou
li,
não era este o texto.

No segundo livro, a poetisa retorna à procura torturada da poesia, não nas coisas, na natureza, nas emoções, nos sentimentos ou nos sentidos, mas na palavra justa, exata, em sua pureza de significante (esquiva nudez feita de letras rendas [...] húmida de recomeço / sente a forma do silêncio), ainda não violentada pela arbitrariedade do significado imposto (tal como o poeta não sabe a cor do branco / e cobre a folha de palavras). 
A palavra que não diz (vejo a forma do teu rosto / espelho dos meus silêncios), não nomeia o indizível, o que ainda é fugidio ao estado de dicionário (toda a vez que encho a página,/ sou vertigem espuma). O poema vai se fazendo através de um diálogo entre o eu e o seu duplo, entre a mão que escreve e o sujeito que tenta ditar os versos, mas sempre recuando pela esquivança da palavra, da linguagem da poesia:
[...]
as palavras já não me chegam.
que fazer com as letras que aprendi?
talvez a vertente de um outro não
o risco no papel ou ainda o desejo correndo
sede do teu corpo água.
quem poderá dizer o som a força
a solidão do silêncio de vozes
escrita feita de palavras desenhadas no meu corpo
mulher, teu-meu corpo é um instante tecendo
momentos.
esqueci a definição
e dei um outro significado ao texto.
o sabor do nada reescrito em longas linhas
momentos sós.
o despojar das vestes,
o nu sobre o papel.
sinto-me exausta
as palavras já não me chegam.
que fazer com as letras que inventei?

É o fazer poético, o labor com as palavras, a procura da poesia o tema perseguido por Maria Mello Giraldes em seus dois magníficos livros, os únicos que publicou. A linguagem poética atinge nessa poesia uma depuração que aponta para uma transcendência em relação ao qual o poema se posiciona como coisa exterior, como superação assumida da interioridade do sujeito pela imanência da exterioridade, do objeto mediatizado pela palavra.

Notas
[i] Cecília Barreira, Um caso de escrita de orientação sexual em Portugal, (texto online), p. 4 de 9.
[ii] Id. Ibidem, p. 4 de 9.
[iii] Isabel de Sá, Em nome do Corpo, p. 19.


Autora: Zenóbia Collares Moreira, "Retóricas femininas fin-de siècle". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Parte IV (continuação).

CONTINUA