Nos poemas de Rosa Alice, a idéia recorrente que os percorre é: “vemos o que vemos, porque no olhar materializamos a realidade Mesmo quando não vemos, é a percepção dessa negatividade que nos ilumina o ser”. Daí dizer no verso que abre o poema Passos sem memória, que será dado a seguir “Olho pela janela e não vejo o mar”. Neste poema, verso a verso construído sob o signo da poética do quotidiano, o assento recai sobre as palavras, substantivas, precisas claras como o dia que amanhece na perplexidade da página em branco: As palavras são as primeiras a chegar, trazendo o quotidiano para dentro do poema: a manhã, a relva, o lume, o pão, o jornal, a saliva, o papel, as gaivotas.
Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
Andam por aí e a relva vai secando no varal.
Manhã cedo,
O mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar.
O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e a relva vai secando no varal.
Manhã cedo,
o mar ainda não veio.
Veio o pão, veio o lume e o jornal.
A saliva com que hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar.
O que fica delas amacia o papel.
Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje.
Prepara-se o dia, os passos de ir e vir.
Estou cada vez mais perto.
Olhas-me como se soubesses
o que hei-de saber mais logo
nesta cidade nunca é meio-dia.
Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas.
Deixa sair de dentro do vestido,
deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia.
O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas.
Caminha à minha frente
Sem deixar pegadas. Perco-me
com todas as mãos, todos os amantes.
Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó
enrolava o rosário nas mãos.
Eu estava dentro das contas,
dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo
estive fora,
agora caminhamos juntos. Sem memória.
Manhã cedo,
O mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar.
O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e a relva vai secando no varal.
Manhã cedo,
o mar ainda não veio.
Veio o pão, veio o lume e o jornal.
A saliva com que hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar.
O que fica delas amacia o papel.
Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje.
Prepara-se o dia, os passos de ir e vir.
Estou cada vez mais perto.
Olhas-me como se soubesses
o que hei-de saber mais logo
nesta cidade nunca é meio-dia.
Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas.
Deixa sair de dentro do vestido,
deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia.
O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas.
Caminha à minha frente
Sem deixar pegadas. Perco-me
com todas as mãos, todos os amantes.
Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó
enrolava o rosário nas mãos.
Eu estava dentro das contas,
dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo
estive fora,
agora caminhamos juntos. Sem memória.
No poema, que vem a seguir – A tua pele descalça - pode ser sentida a energia de Eros transitando solto e liberto através dos versos. Antes de transcrevê-lo, damos a palavra, mais uma vez, à poetisa para que melhor seja compreendido o erotismo em sua poesia:
“A minha poética, diz a autora, pode ser entendida enquanto apologia do corpo no mundo, em que o corpo funciona como um sistema aberto em constante importação e conseqüente transformação. O maravilhoso operador destas passagens é sobretudo a pele, suficientemente consistente para se constituir enquanto superfície delimitadora e suficientemente porosa para deixar entrar o mundo de um modo táctil e eis porque tudo o que nos chega através de qualquer sentido como os olhos, o nariz, a boca, etc., nos acaricia. (...) A carga sensual da minha poesia, que advém sempre do pacto entre o corpo e o mundo, em que o corpo se faz corpo com o mundo, poderia quase exprimir-se numa frase, que apesar das aparências, nada tem de cartesiana: toco e sou tocada, logo existimos". Isto posto, que se leia o poema A tua pele descalça:"
Veio uma onda. A varrer o meu sono.
Caminhava nele como caminho na areia.
Nada me une ou divide. Nada me retém.
Sentas-te onde me sento no teu colo
e peço sempre a mesma história. A tua voz
cria as memórias que hei-de ter.
Por agora caminho ao longo das gaivotas
e grito como elas quando a maré baixa.
Às vezes apoio-me num rochedo
para dizer “casa” e logo desmorono.
Sigo descalça como tu para dizer “seguimos”.
Mas são apenas sons sob o sol de maio.
Murmúrios do que não serei.
Sempre tive problemas com o verbo ser.
Faço e desfaço as malas, entro
e saio das gavetas.
Pausa na camisa que vestiste da última vez.
Uma vontade de a amarrotar,
desapertar os botões e sentir lá dentro
a tua pele cá fora.
Tudo isto é tão verdade como podem ser
os botões de uma camisa escrita. Confesso
que não pensei na cor,
ou se era às riscas. Agora acho que podia ser
a de quadrados.
Em qualquer delas a tua pele entra na minha.
Para finalizar, mais um poema de Rita Alice, no qual o mar é evocado, imagem recorrente e pleno de significados na cosmogonia da poetisa:
De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
Bebemos e falamos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
De sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
E a tua mão na minha perna. Lá no céu
Um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
Acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
E as palavras voam em redor de nós
Alagadas em suor. E vem o mar.
A leitura dos poemas de Rosa Alice Branco aponta também, como um forte traço definidor de sua arte poética, também, como uma meta-poesia, ou seja, uma poesia que se volta para ela mesma, para se pensar e se interrogar, sem perder de vista o ininterrupto diálogo dos seus textos com a filosofia.
Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX.
_______________________
Notas
[1] Floriano Martins, “Rosa Alice Branco: esboços e sombras (entrevista)” in: Revista da Cultura, nº 35 –Fortaleza, S. Paulo – agosto de 2003.
[2] Id. Ibidem.
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
Bebemos e falamos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
De sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
E a tua mão na minha perna. Lá no céu
Um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
Acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
E as palavras voam em redor de nós
Alagadas em suor. E vem o mar.
A leitura dos poemas de Rosa Alice Branco aponta também, como um forte traço definidor de sua arte poética, também, como uma meta-poesia, ou seja, uma poesia que se volta para ela mesma, para se pensar e se interrogar, sem perder de vista o ininterrupto diálogo dos seus textos com a filosofia.
Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX.
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Notas
[1] Floriano Martins, “Rosa Alice Branco: esboços e sombras (entrevista)” in: Revista da Cultura, nº 35 –Fortaleza, S. Paulo – agosto de 2003.
[2] Id. Ibidem.
FIM DA PARTE VI
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