5 de jul. de 2011

Isabel de Sá e Maria Giraldes:Retóricas femininas fin-de siècle;. Parte IV.



Só o lume dos teus beijos rompe 
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro, 
na semente de um amor atribulado.
Isabel de Sá


Nascida em 1951, Isabel de Sá fez a sua estréia na literatura em 1982 com o livro Desejo ou asa leve, ao qual se seguiram mais seis publicações que a tornaram conhecida e bem recepcionada por parte da crítica. Por sua escrita de orientação homossexual, a poetisa é, segundo a opinião de Cecília Barreira, o caso “mais representativo dessa literatura diferenciadora”,[i] no âmbito da poesia feminina portuguesa contemporânea. 
Entrevistada por Cecília Barreira, estudiosa de obra de Isabel de Sá, a poetisa destacou, Em Nome do Corpo como a obra de sua autoria na qual a orientação de escrita é nitidamente homossexual, da mesma forma que as ilustrações de Graça Martins nele inseridas são sugestivas deste universo de diferença:[ii]

Era uma mulher sumptuosa, de cabelos levemente
Ondulados (...) Aproximara de mim o gesto, vigoroso,
Ao prender-me a mão entre os seus dedos deixando
Uma impressão de queimadura [iii]

A poesia de Isabel de Sá assume um caráter transgressor ao transpor as fronteiras da censura e do estigma que recai sobre as relações entre mulheres. Todavia, o ritual amoroso referenciado em seus poemas é discreto, despojado de luxúria, velado pela ausência protetora de indicação de gênero: 

Depois do amor
deixavas o quarto na penumbra,
os lençóis usados, o perfume
dos corpos e o abraço.
Depois, noutro lugar da casa
as persianas quase fechadas,
a luz filtrada como num quadro
de Matisse, um poema
nalguma voz excepcional
e o cigarro, lentamente,
ainda um beijo perdido e tímido,
o aroma do gel de banho.
A porta fechava-se por fim
e nós íamos pelas ruas
ao anoitecer sentindo a atmosfera
de cada dia, a despedida
com a certeza doutro encontro

No poema acima, como em outros do livro O Brilho da Lama, a própria omissão sistemática do gênero no qual se inscreve o destinatário das mensagens poéticas de Isabel de Sá aponta para a prudente intencionalidade de não alardear a orientação sexual que subjaz à sua escrita: Só o lume dos teus beijos rompe/ a treva onde a solidão nos mata./ Enrolamos a vida no escuro,/ na semente de um amor atribulado. Em alguns textos irrompem alusões criticas ao contexto masculino: Chegam em grupos/ mulheres-bonecas, apunhaladas./ Parecem fugidas/ da catástrofe. Algumas/ possuem elementos masculinos,/ exibem correntes quebradas.

MARIA MELLO GIRALDES

Nascida em Lisboa, Maria Giraldes faz parte da nova geração de poetisas surgida na cena literária na década de 80. Em 1983 fez a sua estréia com o livro 5 Espaços, ao qual se seguiu, em 1988, Seis momentos. 
Em 5 Espaços, Maria Giraldes desenvolve uma poesia de intenso conteúdo erótico plasmado através de uma discurso vigoroso e lírico, de uma poderosa imagética e de sugestiva linguagem que parece irromper da límpida nascente do amor, do desejo, da ânsia de entrega absoluta ao ato da escrita, ao corpo a corpo com a palavra esquiva, à ânsia de tocar o “corpo” do poema (desejo de amar e mais / teu corpo). A angústia da busca da palavra por encontrar (palavras não ditas mal ditas / rasgadas), a procura da poesia (respiro estas letras / lavo os pincéis) o desafio de plantar as suas raízes no branco límpido da folha de papel (rebento as raízes / desafio / escrevo (...) a palavra penetra / sem pretexto o texto diz / percurso retirado / fermento / um castigo sem falta apodrecido / por falta de razão ou de sentido). A relação da autora com a escrita, com a palavra com o ato da criação poética, com o corpo do poema é carregada de uma intensa paixão, de uma agônica tortura e, paradoxalmente, impregnada de sensualidade e erotismo:

uma linha marca um ponto
desejo de amar e mais
teu corpo
levanto os muros e as matérias
dispo desfaço gritos de aço.
parti as ferramentas de vidro.
serenamente voltei para dizer
um só momento basta e é tanto
o peso de horas sangue vertido.
manejo o sonho.
aprovo o meu gesto desatento
na mesa do café ou num relvado.
secam os ramos é cedo ainda

a boca abre-se lagrimas soltam
palavras não ditas mal ditas
rasgadas.
são de terra as mãos
é branco o olhar gigante de te ver
o rigor do gesto e da palavra
a fluidez do som dos traços
unindo as linhas ocas dos teus braços
em falas sós.
o eco é demais
isso esmalte derramado.
respiro estas letras
lavo os pincéis como lavo as vozes
como arroz pão uvas
parto ovos avelãs e nozes
oiço o crescer dos fetos
tremo no meio do sonho
crispo-me ao escutar o fogo
compasso certo do teu passo
dúvida ou saber de cor
a forma do teu corpo
cor de beijo

A busca continua, noite a dentro, diante da perplexidade da folha, na qual “uma linha marca um ponto”, o começo, o principio, o lugar do “verbo” inominável do “princípio”, o “verbo que se vai fazer palavra e “habita o poema” que dela nasce:

parti
a procura da ausência
o para além da medida exacta
a invenção do lento recomeço
a fuga à realidade
o momento desejado
um itinerário rasgado de opostos
uma fábula entre as minhas mãos e o papel
um acontecer espaços movimento
marcos de uma nova propriedade
o possuir das mãos.
(...)
era tudo força.
E o peso da ternura ao meu colo
Resplandecia num satélite
Caído no ventre.
Lá fora o meu corpo falava
De silêncio e folhas.
Debaixo das águas
O som do girassol.


Um lençol
Imenso
Cobria e descobria 
A fala ia reaprendendo a fala
Uma descoberta na cor
Do meu corpo
O cabelo inclinado
Os olhos cobrindo o espaço
Uma mulher deitada
E eu dentro desse corpo
Respirando.
(...)
os olhos abertos
correndo de um lado ao outro
perseguindo histórias coisas nadas.
Uma velocidade intolerável
Dentro o redemoinho do assombro.

Não petrifiquei o imaginário
A sombra eu
Nasceram figuras obscuras
Palavras fendidas
Fascinações fotografias
Letras definidas
Ecos entre o meu corpo e o espaço
Pressagio.
(...)
lentamente subia entre o lençol e a pele
espaço tapado de vidro e aço
cobrindo a nudez o grito da palavra
um silêncio brusco.
letras saltavam de luz rareada
a possibilidade
uma leitura
o deambular acordado
o sonho rasgando o cepo da memória
a transformação do peso
a mutação filmada
a transparência
o limiar da hipótese.
a força dos tecidos
a sintaxe
o frio
o medo da memória
os dedos espalmados
a fuga no lençol
o espaço do sono.
acordei a minha voz
e o pano partiu
o ar respirou
li,
não era este o texto.

No segundo livro, a poetisa retorna à procura torturada da poesia, não nas coisas, na natureza, nas emoções, nos sentimentos ou nos sentidos, mas na palavra justa, exata, em sua pureza de significante (esquiva nudez feita de letras rendas [...] húmida de recomeço / sente a forma do silêncio), ainda não violentada pela arbitrariedade do significado imposto (tal como o poeta não sabe a cor do branco / e cobre a folha de palavras). 
A palavra que não diz (vejo a forma do teu rosto / espelho dos meus silêncios), não nomeia o indizível, o que ainda é fugidio ao estado de dicionário (toda a vez que encho a página,/ sou vertigem espuma). O poema vai se fazendo através de um diálogo entre o eu e o seu duplo, entre a mão que escreve e o sujeito que tenta ditar os versos, mas sempre recuando pela esquivança da palavra, da linguagem da poesia:
[...]
as palavras já não me chegam.
que fazer com as letras que aprendi?
talvez a vertente de um outro não
o risco no papel ou ainda o desejo correndo
sede do teu corpo água.
quem poderá dizer o som a força
a solidão do silêncio de vozes
escrita feita de palavras desenhadas no meu corpo
mulher, teu-meu corpo é um instante tecendo
momentos.
esqueci a definição
e dei um outro significado ao texto.
o sabor do nada reescrito em longas linhas
momentos sós.
o despojar das vestes,
o nu sobre o papel.
sinto-me exausta
as palavras já não me chegam.
que fazer com as letras que inventei?

É o fazer poético, o labor com as palavras, a procura da poesia o tema perseguido por Maria Mello Giraldes em seus dois magníficos livros, os únicos que publicou. A linguagem poética atinge nessa poesia uma depuração que aponta para uma transcendência em relação ao qual o poema se posiciona como coisa exterior, como superação assumida da interioridade do sujeito pela imanência da exterioridade, do objeto mediatizado pela palavra.

Notas
[i] Cecília Barreira, Um caso de escrita de orientação sexual em Portugal, (texto online), p. 4 de 9.
[ii] Id. Ibidem, p. 4 de 9.
[iii] Isabel de Sá, Em nome do Corpo, p. 19.


Autora: Zenóbia Collares Moreira, "Retóricas femininas fin-de siècle". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Parte IV (continuação).

CONTINUA 

Um comentário:

Graça Martins disse...

Correcções: Isabel de Sá começou a publicar em 1979, na editora &etc, Lisboa, o livro Esquizo Frenia.
A poesia desta autora incide sobre toda a estrutura da vida humana: Vida, Beleza, Júbilo, Horror, Sexualidade, Natureza.
De maneira nenhuma se limita ao tema Homossexualidade. Isso é um assunto que convém a muita gente. Fechar numa gaveta.
O livro Desejo ou Asa Leve já foi há muito excluído da obra pela própria autora. Para quem estiver realmente interessado em ter conhecimento da obra desta poeta, pode adquirir nas FNACs deste país a obra reunida até ao momento com o título REPETIR O POEMA das Edições Quasi.