27 de jul. de 2011

Rosa Alice Branco- Retóricas femininas " fin-de-siècle" - Parte VI



Rosa Alice Branco, poetisa, filósofa, ensaísta, tradutora é também co-fundadora da revista Limiar. Nasceu na cidade de Aveiro, em 1950. Realizou Mestrado em Filosofia do Conhecimento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. No momento, prepara a sua tese de Doutorado na área de Percepção visual e Psicologia do ambiente. A autora tem várias obras publicadas entre poesias e ensaios.
O lastro filosófico, no qual se assenta a produção poética de Rosa Alice Branco, radica nos seus estudos filosóficos, aprofundados no.dos quais resultaram trabalhos acadêmicos sobre a teoria da percepção do filósofo inglês do século XVIII, George Berkerley (A percepção Visual em Berkerley como Operação Interpretativa- 1998), bem como um ensaio (O que falta ao mundo para ser quadro- Porto: Limiar, 1997), no qual a autora tece reflexões de ordem estética que a levam a afirmar que é a partir do olhar humano que se dá a construção do mundo. E, como diz Maria Irene Ramalho, “o que funda este saber, em que o “olhar humano” é a metáfora perfeita dos sentidos da percepção, encontra-se nos poemas de Rosa Alice Branco”, desde o seu livro de estréia – Animais da Terra (1988).
Na poesia de Rosa Alice Branco, a “celebração do quotidiano” ocupa um lugar privilegiado. Todavia, a autora segue por trilhas bem diferentes das trilhadas por Adília Lopes, no que diz respeito à tematização das coisas do quotidiano ou, como ela prefere chamar, a “celebração do quotidiano”. Em seu discurso, os aspectos mais simples do quotidiano, mesmo as aparentemente insignificantes, são abordados de uma forma quase ritualizada, através de uma espécie de erótica do sagrado que finca as suas raízes na percepção do universo pelos sentidos. Essa poesia que celebra o quotidiano, bem como a questão “carga erótica”, que a reveste, são explicadas pela autora, de forma muito clara, em uma entrevista que concede a Floriano Martins, para a Revista da Cultura:
A poesia como celebração do quotidiano é um bom sintoma de outra postura de vida. As palavras despem-se do medo de serem apenas palavras, mas passamos de uma dimensão representativa a uma dimensão mais apresentativa. Há toda uma intimidade, uma aproximação furtiva ao quotidiano que lhe retira a banalização do olhar. É como Cézanne pintava as maçãs, como reflectia sobre um simples açucareiro ao comentar que é preciso amar essas pequenas coisas, quando falava da tristeza da pele do pêssego, ou das rugas da maçã. Subitamente, somos confrontados com esses minúsculos seres mágicos que nunca tinham convocado a nossa atenção e que ganham a dignidade de objectos amados.[1]
Sobre a “erotização” que muitos sentem ou percebem em sua poesia, a poetisa diz não considerar inexistente “um erotismo explícito” em sua poesia, acreditando, no entanto, que “essa carga erótica na recepção é um efeito da sensualidade dos poemas, entendida aqui como uma poética dos sentidos e dos sentires”.[2] O poema que se segue exemplifica bem o que diz a poetisa. Nele é o olfato quem conduz a abertura do poema para o mundo circundante, para as coisas, liricamente percebidas:


Pela janela vem o cheiro da manhã, da relva e das rosas salpicadas de fresco que se casam com o cheiro dos lençóis sonolentos.
Ao bater a porta já só sinto o meu perfume, o que pomos por cima das certezas e das dúvidas, por cima dos segredos que trespassam a pele.
Em breve me confundirei com o cheiro dos outros, daquele homem vergado pelo saco de batatas, da florista a compor as margaridas, da peixeira à porta da vizinha mostrando as goelas sangrentas (talvez porque tenha levantado cedo a apregoar assim fere a garganta), das crianças a caminho da escola, de todos os que hão-de cruzar o meu dia e de ti que hás-de cruzar também a minha noite. Contar-te-ei todas as horas com a mistura dos aromas que me compõem e ouvirei na tua pele a subtil diferença entre os dias.
Amanhã fecharemos a porta e o teu cheiro irá entranhado em mim até uma distância infinita das rosas que cantam à janela pela estrada estendendo a pele às dádivas do dia.




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