20 de out. de 2010

Gil Vicente, uma voz em defesa da mulher.

A atitude especial de Gil Vicente com as mulheres faz a grande diferença entre ele e o coro de vozes masculinas que, desde sempre, via as mulheres como seres inferiores aos homens e, portanto, destinadas a uma vida subalternizada no lar e na sociedade. Contrariando tal posicionamento, o autor focaliza, em sete das suas peças, problemas vivenciados pelas mulheres da sua época. Além disso, ele introduz em outras tantas uma expressiva quantidade de personagens femininas que constituem elementos de comprovação da postura diferenciada do autor, contrária à misoginia imperante. Gil Vicente se destaca não apenas por não expor os atos condenáveis da mulher de forma agressiva, por não a desprezar ou denegrir aos olhos do público, como por fazer a defesa de sua liberdade, tão cerceada ou negada, e da sua rebeldia contra a subalternização à mãe e ao homem.
Em muitos casos, quando não pode aceitar a conduta da mulher, Gil Vicente acusa-a e condena-a, mas não sem antes condenar os que a levaram à prática de atos espúrios, como é o caso da alcoviteira Brígida Vaz, personagem do Auto da barca do inferno. Ela é acusada de praticar diversas atividades criminosas, dentre as quais se incluía a de levar moças à prostituição. Por esse crime sofrera grandes penalizações. Todavia, para defender-se não hesita em denunciar a cúmplice participação de toda a sociedade, de todos os homens que usufruíam os seus favores, inclusive os cônegos da Sé, e que, por isso, mereciam receber o mesmo castigo que para ela era recomendado pela justiça divina.
Dentre as personagens femininas de Gil Vicente merecem a nossa especial atenção duas mulheres, cujos comportamentos são muito avançados para a época: Inês Pereira e a Sibila Cassandra, protagonistas de peças que levam os seus nomes. Essas duas mulheres afirmam-se como vozes isoladas que procuram romper os grilhões das normas sociais e a tirania da tradição que as sujeitam a uma vida sem liberdade, sem os direitos e privilégios concedidos aos homens.
Comecemos pela Sibila Cassandra, a mulher que ousa enfrentar a família e a autoridade do pai que a quer casar contra a sua vontade, conforme a tradição que não concedia à mulher o direito de escolher marido. A jovem, assumindo com determinação e firmeza uma atitude de ostensiva rebeldia, recusa veementemente o casamento imposto, alegando em defesa de sua decisão que não podia aceitar um matrimônio que a tornaria escrava do lar e propriedade do marido.
Ao longo da primeira parte da peça, Cassandra não mede esforços para defender a libertação da mulher, iniciada já na sua entrada em cena recitando um monólogo, no qual vai dando a conhecer a sua vontade inquebrantável de permanecer solteira, expondo com obstinada convicção as razões irrefutáveis que sustentam a sua decisão: “Seja-me Deus testemunha / Que no me quero casar. / Qual é a dama distinta / Que sua vida Joga, / pois perde casando, / Sua liberdade aprisionando,/ Outorgando / Que será sempre vencida,/ Desterrada em mão agena / Sempre em pena, / Abatida e subjugada?”.
Salomão, um pretendente desprezado por Cassandra, não conformado com a rejeição da sua escolhida, persevera em suas tentativas de se fazer aceito pela jovem. Todavia, à insistência do obstinado moço, ela responde de forma decidida e resoluta: “Não quero marido, não!... Mais quero viver segura, Nesta serra, nesta altura, Do que cuidar na ventura Se casarei bem ou não”.
Esse repúdio ao casamento é justificado por Cassandra com argumentos hauridos em suas observações acerca da vida infeliz das mulheres casadas que conhece, vítimas dos defeitos dos maridos, obrigadas “a uma maternidade penosa com dores / de partos, chorar de filhos,” enfim, mulheres presas a uma vida conjugal que só oferece sofrimentos (sempre em pena / abatida e subjugada), dificuldades, desgostos, limitação da liberdade pessoal (desterrada em mão alheia). Seu ímpeto revolucionário recusa e execra o casamento arranjado.
A ousadia das críticas de Cassandra ao casamento, feitas com inteligência e perspicácia, faz dessa personagem uma espécie de porta voz de ideologias vicentinas acerca desse assunto que, inclusive, já fazia parte das preocupações de pensadores da época. Essa rejeição ao casamento no entanto não é voz corrente na sociedade quinhentista. Muitas mulheres vêem nele a forma de libertarem-se da tutela dos pais, por vezes rigorosa em excesso, preferindo trocar de “dono”, já que a alforria absoluta era chance remotíssima. É o que se pode observar na Farsa de Inês Pereira.
Inês, ao contrário de Cassandra, anseia por encontrar marido. Ela encarna a tipifica a mulher da classe média, revoltada e insatisfeita com a vida enclausurada que lhe é imposta pela mãe autoritária. Sonhadora, fútil e presumida, vive na ansiosa expectativa de arranjar um bom casamento com alguém tão frívolo quanto ela. Perante o esforço da mãe para persuadi-la a desistir do Escudeiro pelintra, tangedor de viola, que pretende desposá-la, e casar-se com Pero Vaz, abastado e honrado lavrador, a rebelde e inquieta Inês responde: "Folgaste vós na verdade / Casar à vossa vontade, / Eu quero casar à minha".
Casada com seu eleito, o Escudeiro tangedor, logo lhe bate o arrependimento. Este, ao se vê casado, tranca Inês em casa e prega as janelas: "Porque homem seguro / Traz a mulher sopeada". Aconteceu com Inês o que Cassandra previa e prevenia. Mas logo o marido é morto na guerra contra os Mouros. Inês, viúva e desencantada, acaba por aceitar Pero Marques. Na certeza de que se enganara na escolha do primeiro marido, assim diz: "Por usar de siso mero, / Asno que me leve quero,/ E não cavalo folão; / Antes lebre que leão;/ Antes lavrador que Nero".

Inês aprendera às custas da desastrosa experiência matrimonial o que Cassandra já percebera através da observação. Na verdade, Inês é levada a um destino equivocado, por dois motivos: as suas ilusões românticas acerca do casamento e as condições adversas e opressoras de um sistema social injusto para com a mulher. Todavia, Inês não sai de sua desventura conjugal da mesma forma que nela entrou. Sente-se enfim liberta da mãe e do marido déspota. Para ela, no mundo só há dois tipos de homens: os tolos, inofensivos e os enganadores cruéis. Assim, se o destino propiciasse outra oportunidade, decerto saberia prevenir-se. Em seu coração, Inês já não tinha confiança nos homens e crença em um amor verdadeiro: sua desilusão é tanto mais amarga e absoluta, porque suas ilusões eram grandes demais.
Após a morte do seu marido, Inês se transformou. Sua franqueza e sua espontaneidade conduziram-na a infelicidade. A duplicidade com a qual havia se confrontado na experiência com o marido, as lições de hipocrisia e dissimulação que este lhe prodigalizara, ela aprendera muito bem. Portanto, adota deliberadamente a duplicidade, a dissimulação e a hipocrisia como escudos de proteção e arma de combate contra a maldade dos outros e a malícia do mundo ( se solteira me vejo, / Assi como eu desejo [...] Havia-m´eu de vingar / Deste mal e deste dano).
Após a viuvez, a casamenteira Lianor anima-a a um novo casamento, sempre com Pero Marques. O casamento realiza-se. Inês muda o seu comportamento, passa de dominada a dominadora, de moça sonhadora a mulher racional e fria no trato com o novo marido.
Tudo isso, escrito pela pena de Gil Vicente, soa como formas de desagravar a mulher oprimida, seja mostrando-a a renegar o casamento como Cassandra, seja fazendo-a servir-se dele para exercer domínio sobre o homem, invertendo os papéis, como Inês Pereira. No caso desta última, vamos encontrá-la, juntamente com o marido, o mesmo Pero Marques, numa outra farsa - O Juiz da Beira-, no papel de mulher do Juiz e eminência parda da jurisprudência exercida pelo bronco camponês. Inês é quem dita as sentenças, quem orienta o trabalho do homem com quem se casou. Que significa essa peça senão uma forma de denunciar, ironicamente, a falsa posição do homem na sociedade e a frente de profissões e cargos vedados às mulheres, tidas como incapazes?
Além dessas duas obras que focalizam a mulher, há dezenas de outras personagens femininas nos autos e farsas que reforçam a nossa certeza de que Gil Vicente não somente era um sensível conhecedor da psicologia feminina como um aliado da mulher no que diz respeito aos seus direitos, um crítico da situação adversa e injusta em que esta vivia em seu tempo.

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