12 de out. de 2012

A Polígrafa D. Feliciana de Milão Parte IV



Muito pouco se sabe acerca da biografia de D. Feliciana de Milão. Algumas informações foram recolhidas por Barbosa Machado e D. Antonio da Costa, a partir das quais tentamos traçar o perfil dessa escritora tão famosa em seu tempo, tão esquecida nos dias atuais. 
D. Feliciana de Milão nasceu em Lisboa e 1632 e falecida em 1705. Filha de pais ignorados, foi exposta na Roda dos Enjeitados de um convento, no qual, ao que parece, foi criada e educada com esmero. Já adulta e possuidora de razoável fortuna, certamente deixada por algum familiar que preferiu não se identificar, passou a morar em uma bela casa, na companhia de algumas escravas. Costumava freqüentar bailes e festas, igrejas e o passeio da cidade, sempre acompanhada de duas servas. Dotada de notório talento, inteligência e vastíssima erudição, escreveu poesias, cartas e tratados. Foi, portanto, poetisa e ensaísta de reconhecido valor, gozava de grande prestígio na corte e entre a intelectualidade da época. Muito bela, despertou paixões e recebeu vários pedidos de casamento, sendo indiferente a ambas as coisas. De espírito crítico e desenvolto não se eximia de tecer críticas e ironias aos que a molestavam ou incomodavam, chegando à audácia de escrever cartas a uma amiga nas quais criticava o Padre António Vieira e à corte, como veremos mais adiante. Muito afeita à leitura, corria os livreiros da cidade em busca de novidades e de jornais , nos quais se inteirava acerca dos acontecimentos, desde as guerras até à vida social, sendo, assim, uma espécie de crônica vivas das novidades recentes e dos fatos interessantes. 
Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, relata que D. Feliciana compôs poesias, em que a elegância competia com a agudeza. Diogo Ayres de Azevedo, no Portugal Illustrado, diz que o seu Tratado sobre a existência da pedra philosophal é uma obra que testemunha a profundidade dos conhecimentos da autora e que por si só poderia qualificá-la como uma das grandes inteligências do seu tempo. 
Por razões ignoradas este tratado e todo o restante da obra de D. Feliciana foi destruída, por ordem do rei de Portugal, restando da autora apenas, em manuscrito, uma parte das sua correspondência. Em uma das suas cartas à sua amiga D. Margarida, ela faz alusão aos perigos de destruição ou de impedimento de publicação que ameaçam seus escritos, conforme o trecho abaixo revela: 
“Segurem-se os fiscaes, com que, se me der a ociosidade para o tinteiro, não mande imprimir os meus escriptos a Veneza, porque não disse, nem direi nunca, cousa que desminta o nome de D. Feliciana.” 
Infelizmente, a autora não cumpriu o que disse, e, assim sendo, dos seus manuscritos não enviados para fora de Portugal, somente parte das suas cartas escaparam à destruição.  Dentre as cartas da autora, deixadas na Biblioteca de Évora e hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa, há algumas trocadas entre a autora e D. Maria das Saudades, freira no convento da Assunção de Via-longa. A que se segue, da autoria da amiga religiosa, escritas nos lúdicos e intrincados termos próprios dos jogos de linguagem típicos do gosto barroco, é quase indecifrável para leitores dos dias atuais. Todavia, percebe-se que o assunto gira em torno da figura do rei. Consta que D. Feliciana teria sido cortejada pelo monarca, mas nenhuma prova há desse fato: 
"Ora contente-se com a resposta, e saiba que ao jogo do homem hei-de ganhar, porque por homens não me costumo perder. Vamos, parceira, olhe como se destaca, que não seja de rei, sendo que os reis para Vossa Mercê se descartam; e se na mão, como Vossa Mercê quer, me fica um rei secco, como vi que na de Vossa Mercê foi verde, por isso encontrou desgraça; e eu não lhe empato as vasas, nem tenho tenção de lhe furtar os tentos, que sempre trouxe a cara descoberta quem não tem que encobrir nos procedimentos da pessoa. Deus guarde a Vossa Mercê. 
Via-longa- 6ª. feira – D. Maria das Saudades "

Aos 24 anos de idade, em pleno apogeu de sua juventude, beleza e prestígio social, D. Feliciana de Milão, de repente, tomou a decisão de fazer-se freira. Logo, recolheu-se ao mosteiro de Odivelas, tomou o hábito, professou e assumiu o humilde encargo de porteira. 
Do convento, escreveu as cartas que se salvaram, sendo as mais irreverentes as que relata minuciosamente à sua amiga Margarida a deposição do rei D. Afonso VI e a que endereça a D. Maria das Saudades, ironizando os sermões do Pe. Vieira, como se pode ver nos trechos da referida carta: 
"Ora, Maria, não é de valia que aperteis comigo, que me ponhais culpa por padecermos em perigo de murmúrios. Quando me enxergasses vós gênio de Mestre [...] deste mundo, que me mandeis perguntar que censura pode dar-se ao Sermão que me anuíste do Padre António Vieira? Estou certa que naquele grande juízo sempre se há tão delgado que, a sair de Portugal, tivesse estima vantajosa em os teares do Cambray; pois já temos conhecido que nos ensinar a urdir cambray em Portugal. 
Sempre que prega, o entendem poucos, porque para poucos ele estende-os sempre. aonde porém passou a arte de jogos a mostrou inumerável nos pontos, se nesta panegírica história, ou neste histórico Sermão Panegírico que compôs, e não disse. [...] Outros diriam o próprio porque é próprio de más almas terem só parte em maus discursos. E porque da parte deste sermão todas me parecem desta cor, os tomei para passar algumas destas noites enfadonhas, porque se o que é mau por qualidade faz parecer pequeno o que é grande por natureza, como nos persuade neste sermão o seu autor, que melhor meio para encurtar noites compridas que meter-me à lição dos maus discursos deste papel? ".

Zenóbia Collares Moreira. O Barroco no Feminino. Ensaios.


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