8 de fev. de 2013

Teorema: Uma Verdade Demoníaca (Parte XVIII)



No século XIV há, no espírito acentuadamente religioso do homem medieval, uma preponderância da devoção ao Cristo sofredor, ao Cristo da Paixão. A cruz passa a ser o símbolo da humanidade e do suplício; Cristo é o Rei coroado de espinhos e sua humanização aparece com destaque na iconografia da época. É a realeza de Deus feito Homem que invade a espiritualidade e a arte do século XIV.
Entretanto, um personagem disputa o poder com Deus, no Céu e na Terra: o Demônio. A luta entre eles explica, para o homem da Baixa Idade Média, todos os acontecimentos. A ortodoxia cristã condenava o maniqueísmo por basear-se na crença em dois deuses, um deus do Bem, pertencente ao Céu, e um deus do Mal, criador e senhor da Terra. Apesar de a Igreja condenar o maniqueísmo, considerando-o uma heresia, a tradição popular colocara Deus e o Demônio no mesmo plano e dava ao último um justo poder sobre o homem, expresso pelos direitos do Diabo. A humanidade se via bipartida, a intolerância se tornava implacável. O homem medieval vivia sob a ameaça da aparição do demônio, demônio que se apresentava sempre como sedutor, sob uma enganadora e atraente aparência, ou como perseguidor, a oferecer-se sob um aspecto terrível. Pretendido aqui na terra por Deus e o Diabo, o homem é, na morte, o objeto de uma última e decisiva disputa.
No conto TEOREMA, é a vitória do demônio que Herberto Helder retrata. Um demônio que movimenta a ação histórica e se perpetua nas ações humanas; na janela manuelina, no monumento a Sá Bandeira, em Inês transformada em fonte da poesia.
Em Teorema há uma execução que pune um assassino. O que se conta são as emoções experimentadas pelo narrador-personagem, emoções intimamente ligadas ao prazer de destruição, ao desejo de matar outrem. Um dos efeitos dessas emoções é inverter a situação, tornar o pecado um ato de grandeza, o assassinato, uma salvação – e desfrutar o prazer dessa inversão.
O personagem-narrador [...] sente um orgulho terrível de seu crime e sua destrutividade alcança aqueles a quem admira. Há uma glorificação da crueldade e Pero Coelho não apresenta sinais de remorso.
D. Pedro é o instrumento da justiça, tal como nas crenças helênicas, é necessário vingar os mortos, se a morte foi violenta; pois, no Hades, a vingança contra a ofensa sofrida é essencial para a paz depois da morte. Se a Mãe Terra foi manchada de sangue, ela e o povo octoniano ( os mortos) clamam por vingança. Assim,.D. Pedro ordena o assassinato de Pero Coelho e internaliza D. Inês; enquanto preserva o amor que os ligava, realiza a união com o objeto perdido. A fantasia de que o objeto internalizado, morto, mantém, quando amado, vida própria, está em consonância com a convicção do narrador de que D. Pedro será possuído por D. Inês, morte e rediviva.
“O rei estará insone no seu quarto sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez que sua inspiração não pare aí, ele se torne cada vez mais cruel e inspirado. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força do fogo interior, e sua paixão será sempre mais vasta e pura” .
Pero Coelho matou D. Inês e diz que o fez para salvar o amor do rei. D. Pedro manda matar Coelho para vingar a morte de D. Inês. A seqüência crime-castigo-crime faz nascer o demônio comum aos envolvidos na tragédia, reforça a ambição e anula a humildade. 
Herberto Helder, com poesia e aspereza, busca um desprendimento acima de princípios éticos, mostra predileção pelas situações de marginalidade, onde, no extremo da violência e do cinismo, os seres podem gerar uma solidariedade sem sentimentos condicionados. Todos extraem da dor, do suplício a seiva da liberdade, mesmo que essa liberdade só se apresente na morte. A morte é o monstro que, ao longo da ficção, aprisiona os personagens para introduzi-los na perenidade.
“Nada é tão incorruptível como sua morte. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos.”.
A sugestão do pecado é uma presença constante e, quando ocorre o crime, ainda há a possibilidade de redenção, porque o amor destrói, mas é a única tentativa de resgatar o vazio da existência e de penetrar nos intrigantes mistérios da alma. A narrativa parte dos limites físicos da vida para explorar os abismos da psique humana. Herberto Helder traz o crime para o primeiro plano da vida e do texto; com um “close” no Mal, mostra-se um libertino, nega qualquer cerceamento para dar voz à sua verdade demoníaca:
“Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade.
Ö demoníaco de Teorema já se manifesta na primeira pessoa do singular, na “possessão” de um narrador pelo outro, numa pretendida comunhão total entre eles; está presente no gosto pela brutalidade, paixão e culpa; engrandece o espetáculo de uma vida que cultua a morte violenta e desejada, planejada e assustadora. Coelho detesta o amor limitado, odeia o perdão e se deixa assassinar pelo demônio escolhido, depois de organizar a obra que lhe assegura a eternidade: a morte pela mão satânica, assim como descrição desse momento por um outro-si mesmo:
Percebo como tudo está tão ligado, como é necessário que todas as coisas se completem. Ah, não tenho medo. Sei que vou para o Inferno, visto que sou um assassino e meu país é católico. Matei por amor do amor – e isto é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. 
Se o mundo nasceu da queda do homem, Teorema celebra o homem decaído e parodia a missa cristã. Repete a comunhão, não com o sentido de união com o salvador, mas como algo hostil a Deus, realizado por um ser intermediário e maléfico.
O Filho de Deus não se torna homem; ao contrário, o homem se torna filho do Demônio. Não se trata da simples execução de um criminoso, trata-se de libertar o demoníaco que existe no humano para consagrar seu poder e glória, multiplicar e prolongar sua presença aqui na Terra. Na Eucaristia, Cristo está presente no pão e no vinho, e reúne num banquete sagrado aqueles que foram escolhidos para integrar o povo de Deus. Assim será até o fim dos tempos. “Eis que estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” diz o Novo Testamento. Em Teorema, Coelho não é um morto que se lamente. Ele adquire uma permanência misteriosa, uma presença maior. Também Inês, que morreu em suas mãos, e D. Pedro em quem vive. Como Cristo, o demônio continuará existindo sempre; tal como o Espírito Santo animava os apóstolos, D. Inês, transfigurada em labareda, anima os dois assassinos e unifica-os; torna-se Senhora da Morte e da vida em plenitude. D. Inês é aqui a deusa do amor misterioso, mistura de Circe e de Medéia. Como Circe, representa a sedução, é a mulher que faz dos homens o que bem entende; como Medéia, é o arquétipo do trágico feminino a imortalizar a vingança. Vivem todos três. Inês é a labareda, símbolo da purificação e imagem do espírito de transcendência, sopro de revolta, brasa que se consome e que é inesgotável.
Ao exaltar o demoníaco, Herberto Helder envolve a narrativa num clima satírico, para revelar a falência de valores sociais apoiados em contradições éticas e históricas. Desmitifica heróis e vilões da História, mostra que essas polarizações se resolvem num jogo de máscaras que se substituem nas relações de poder. Teorema é a paródia de uma confissão. Ao invés do pecador arrependido que se propõe a não cair mais em erro, temos a afirmação de uma autêntica natureza demoníaca, num discurso sarcástico que desperta o leitor para o enfrentamento com a verdade.
Há uma carnavalização do texto que transgride as normas do código narrativo ( por intervir no tempo) e as normas do código ético ( pela exaltação do demoníaco). A “verdade”está em crise, as personagens recebem uma caracterização particular e jogam com a máscara para exibir uma nova realidade. A história “verdadeira”, a que existe nos documentos, sofre uma descentralização do ponto de vista, o que permite a leitura de seu avesso e uma interpretação que o presente faz do passado. Teorema apresenta uma leitura intertextual com o Novo Testamento, notadamente com a Paixão de Cristo. Uma comparação entre os dois textos deixa clara as aproximações e os desvios.


NOVO TESTAMENTO 
Então cuspiram-lhe no rosto e feriram-no a pauladas; e outros deram-lhe bofetadas no rosto dizendo. Adivinha, Cristo, quem é que te fere?
(Mateus, 26;67 – 68)

E depois de o terem escarnecido, despiram-no de seus vestuários e vestiram-no de púrpura e levaram-no para o crucificarem. E obrigaram um certo homem que ia a passar por ali, Simão Tirene, a tomar a cruz de Jesus. E conduziram-no ao lugar do Gólgota que quer dizer “lugar do crânio”.
(Marcos, 15,20-22)

Mas quando chegaram a Jesus, tendo visto que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e imediatamente saiu sangue e água.
(João, 19,33-34)

Estando eles, porém, ceando, tomou Jesus o pão e benzeu-o e partiu-o e deu-o a seus discípulos e disse: Tomai , e comei, este é o meu corpo. E tomando o cálice, deu graças”: e deu-lho dizendo: Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue que será derramado por vós e por muitos para remissão de pecados. Mas digo-vos: que desta hora em diante, não beberei mais deste fruto da vida até aquele dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu pai.
(Mateus, 26-29)

TEOREMA
Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor.(p. 121.)
De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro. Distingo as vozes do povo, a sua ingênua exaltação. Escolhem-me um sítio nas costas para enterrar o punhal. (p. 122)
Foi o punhal que entrou na carne e cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo do meu corpo e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos. Um moço do rei com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. (p. 122)
O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo.
-Só o coração, diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. (p. 123)
Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O rei come o meu coração. (p. 123)
O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração. E que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui. (p. 125)


CONTINUA...

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