9 de fev. de 2013

Declínio e eclipse do mito do amor-paixão (Parte XI)



No século XVII “racional” os costumes se separam das crenças religiosas e, sem que ninguém perceba, se adaptam às leis da razão do século, renegando o absoluto cristão. A partir de então, o casamento já não é visto como uma instituição de base, as “alianças” privadas são celebradas da mesma forma que os acordos diplomáticos, sem importar as afinidades entre os cônjuges. A medida para um bom casamento era somente a conveniência das classes e a conformidade das “qualidades” e dos “méritos”. Tal forma de casamento viria a ter grandes dificuldades de ser mantido nos séculos seguintes.
A partir do século XVII os casamentos se subordinam às leis do racionalismo, segundo à qual só “os méritos”, e não a graça imprevisível, decidem uma união. Assim, um bom partido é aquele “cuidadosamente escolhido pela razão. Triunfo da moral jesuíta. O barroco aprisiona o sentimento sob o artifício das suas pompas. Do mesmo modo a análise da paixão, tal como a fez Descartes, sua redução a categorias psicológicas perfeitamente distintas, a hierarquias racionais de qualidades, méritos e faculdades, conduziria necessariamente à dissolução do mito e de seu dinamismo original. E que o mito só exerce seu poder precisamente onde desaparecem todas as categorias morais – para além do Bem e do Mal, no transporte e na transgressão do espaço onde a moral prevalece. 
Spinoza definiu o amor como um sentimento de alegria acompanhado da idéia de uma causa exterior. Tal causa exterior seria um Deus com o qual a nossa alma poderia se identificar. “ Todavia, entre a alegria e sua causa exterior há sempre alguma separação, algum obstáculo: a sociedade, o pecado, a virtude, nosso corpo, nosso eu distinto. Daí o ardor da paixão. E daí que o desejo de união total se ligue indissoluvelmente ao desejo da morte que liberta. Por não existir sem a dor, a paixão faz com que desejemos nossa perda. “(11) Exemplifica bem esse desejo de perda, esta espécie de volúpia da dor, o que diz a religiosa portuguesa Soror Mariana Alcoforado, em uma das cartas que escreveu ao homem que a seduziu: “Agradeço-vos do fundo do coração o desespero que me fazeis sentir e desprezo a tranqüilidade em que vivia antes de conhecer-vos...Adeus! Amai-me sempre, fazei-me sofrer ainda os piores tormentos!” (12)
No século XVIII, as qualidades e méritos exigidos ao cônjuge já não são de ordem moral, mas sim de ordem intelectual e física, a divisão do ser já não é em espírito e carne, mas em inteligência e sexo. Já não há obstáculos ao prazer, à paixão. E, “quando todo obstáculo é destruído, a paixão não tem onde se agarrar. O deus do Amor já não é o destino severo, mas uma criança impertinente. Já quase nada é proibido. Dá-se , então, o apogeu das idéias de Meung, o realismo sobrepõe-se ao idealismo, o cinismo devasso ao platonismo pleno de fidelidade. O que se vê é a profanação do mito de Tristão e Isolda. 
Ora, esse século da Volúpia não é o da sensualidade saudável, embora se julgasse curado do mito. “As mulheres desta época não amam com o coração, amam com a cabeça, entregam-se à licenciosidade sem freios.Contudo esta espécie de donjuanismo feminino em vez de lhe proporcionar a satisfação do amor sensual, enche-a de inquietação, leva-a à busca de novas experiências, em busca de um “mentira ideal” de amor-paixão. 

Don Juan: a imagem invertida de Tristão.. 

Por outro lado, o eclipse do mito daria lugar ao aparecimento da mais absoluta antítese de Tristão: Don Juan. “Se Don Juan não é, historicamente, uma invensão do século XVIII, ao menos esse século imprimiu nesta personagem os dois traços tão típicos da época: a maldade e a perfídia. Antítese perfeita das duas virtudes do amor cavalheiresco: a candura e a cortesia.
O personagem mítico de Don Juan exerce fascínio sobre mulheres e homens, sem sombra de dúvidas. Tal fascínio talvez tenha o seu fundamento na natureza contraditória desse aventureiro amoroso.
Como esclarece Rougemont, “Don Juan é ao mesmo tempo a espécie pura, a espontaneidade do instinto, o espírito puro em sua dança desvairada sobre a imensidade do possível. É a infidelidade perpétua, mas também a procura perpétua da mulher única, jamais encontrada pelo erro incansável do desejo.”
A imagem de Don Juan que nos interessa aqui considerar é a que o teatro ( ou a ópera de Mozart) nos oferece: como a imagem invertida de Tristão.
“Antes de mais nada, o contraste está na aparência exterior das personagens, em seu ritmo. Sempre imaginamos Don Juan numa atitude altiva e ameaçadora, prestes a investir mesmo quando por acaso interrompe sua perseguição. Ao contrário, Tristão entra em cena com aquela lentidão sonambúlica de alguém que hipinotiza um objeto maravilhoso, cuja riqueza ela jamais esgotará plenamente. Um possuiu mil e três mulheres, o outro uma só mulher. Mas pobre é a multiplicidade, enquanto num ser único e possuído ao infinito se concentra o mundo inteiro. Tristão já não precisa do mundo – porque ama! Enquanto Don Juan, sempre amado, não pode jamais retribuir com amor. Daí sua angústia e sua busca desenfreada.
Um procura no ato do amor a voluptuosidade de uma profanação, o outro realiza a “proeza”divinizante permanecendo casto. A tática de Don Juan é a violação e, uma vez obtida a vitória, abandona o terreno e foge. Ora, a regra do amor cortês fazia da violação precisamente o crime dos crimes, a felonia sem remissão, e da homenagem um compromisso até à morte. Mas Don Juan ama o crime em si, tornando-se assim tributário da moral de que abusa. Ela é imprescindível para que Don Juan sinta o gosto de a violar, enquanto Tristão se sente livre do jogo das regras, dos pecados e das virtudes, pela graça de uma virtude que transcende o mundo da Lei.
Enfim, tudo se resume nesta oposição: Don Juan é o demônio da pura imanência, prisioneiro das aparências do mundo, o mártir da sensação cada vez mais decepcionante e desprezível _ enquanto Tristão é o prisioneiro da infinitude do dia e da noite, mártir de um encantamento que se transforma em pura alegria com a morte.
Voltando aos romances de Camilo e Eça, antes referidos, podemos dizer que Amor de Perdição filia-se à “linha do espiritual” e O Primo Basílio” segue a “linha do material”, o primeiro é herdeiro das idéias de De Lorris, foi escrito sob o sentido latente do mito do amor-paixão, do qual recupera muitos conteúdos míticos, dentre eles O amor ligado a morte, o amor eterno, etc. Enquanto isso, o romance de Eça radica nas idéias de Meung., repete o mito de Dom Juan e promove a profanação do mito. Enquanto Simão aproxima-se de Tristão, Basílio assemelha-se a D. Juan.
Simão e Teresa têm um objetivo comum a atingir, um mesmo sentimento a uni-los. Com Basílio e Luísa dá-se o contrário, nada em comum os une, nem na área dos sentimentos, nem na área dos objetivos a alcançarem: ela, com a cabeça cheia de sonhos, os sentidos insatisfeitos e ávida de viver as aventuras que lia nos romances românticos, de viver um grande e apaixonante amor, não resiste à corte que Basílio lhe faz , tornando-se a sua amante. Por sua vez, Basílio apenas deseja uma aventurazinha picante com Luísa, um passatempo enquanto está de passagem por Lisboa. Não há sentimento amoroso em sua relação, apenas desejo. Ele obtém o que quer, ela não se vê contemplada com o que sonha: ser amada por Basílio, ao contrário disso percebe que o "amor”do primo em nada se assemelha aos que conhecera nos romances. Conquistada a prima, Basílio abandona-a para não ter de assumir maiores responsabilidades. Luísa morre, Basílio cinicamente dá continuidade à sua vida de conquistador leviano. O caso amoroso de Basílio e Luísa não traz nenhum aperfeiçoamento para ela, apenas a degradação. Trata-se de um amor que avilta e rebaixa o ser. Só um ganhador teve esta história: o vilão Basílio. antítese de Tristão.
Já em amor de perdição, Simão e Teresa têm o mesmo aperfeiçoamento a obter: enquanto Simão deseja ser amado eternamente por Teresa, esta deseja o mesmo com referência a Simão. No processo para alcançar a realização do desejo recíproco de amor eterno, Simão luta contra os preconceitos familiares e chega a matar o rival; Teresa, por sua vez, recusa o casamento com o primo e prefere ir para o convento. O que eles desejam é obtido pelos dois de forma idêntica: Teresa morre de amor e promete encontrar Simão no céu e Simão morre de amor e promete encontrá-la no céu.
Há também a referir o caso das cartas que, em Amor de perdição, propiciaram a criação do mundo de Simão e Teresa, levando-os a uma união espiritual crescente, enquanto em O Primo Basílio são as cartas de amor que precipitam a separação dos amantes.
Na verdade Luís foi apenas a ROSA de MEUNG que deveria ser colhida. Basílio nada mais foi que o duplo de Don Juan, a antítese de Tristão.
Lembrar que os princípios morais da burguesia não admitia o adultério, considerado crime passível de punição com a cadeia e o desprezo do meio social. Por outro lado, vale salientar que Eça, ao escrever o romance O Primo Basílio, intencionava criticas a dissolução dos costumes, amora, a decadência da família e a crise do casamento em razão do adultério. Lembrar também que cada grupo social tem as suas normas de conduta, os papéis que cada um deve desempenhar, o lugar marcado que cada qual deve ocupar para que se mantenha o equilíbrio do grupo. A cometer o adultério, Luísa infringiu o código estabelecido, desafiando, assim, o equilíbrio do grupo social, não podia continuar viva. Tinha que ser punida com a morte.
Encerrando os estudos acerca da expressão do mito na literatura do século XIX, propomos a LEITURA da peça de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, obra prima do teatro romântico português.
Lida a peça, procuraríamos estabelecer a relação entre a história das personagens Manuel de Sousa Coutinho e D.Madalena de Vilhena, com o mito de Tristão e Isolda,( ou o mito do amor-paixão), bem como com a história de Abelardo e Heloísa, apontando os conteúdos míticos presentes na tragédia do Frei Luís de Sousa .
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09- Cleonice Berardinelli, Para uma análise estrutural da obra de Eça de Queirós, Colóquio, Lisboa, Junho,1971, p. 26.
10- Denis de Rougemont, O amor e o Ocidente, Rio de Jan° , Ed, Guanabara, p. 127-128.
11- Idem, ibidem, p. 149.
12- Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, Lisboa, Morais, p.17.

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