FERNANDA LEAL
Canta, amor, canta comigo
Temos tanto p´ra cantar
Fernanda Leal
Nascida em Lisboa, em 1942, Fernanda Leal fez a sua estréia na literatura com o livro de poesias intitulado Do outro lado do ar, no ano de 1983. Como ocorre com outras poetisas da sua geração, a autora busca no quotidiano o referente principal de seu discurso poético:
O FUMO DO MEU CIGARRO
Sopro o fumo do cigarro
No papel
Explosão sobre letras
Que se expandem.
A nuvem resplandece
O ar move-se.
Lá em baixo
Tudo morre.
E eu fico a ver a nuvem
Do meu fumo
Que esmorece.
Esta focalização do quotidiano, no entanto, envereda por caminhos abertos pela visão particularizada da autora acerca da realidade interior e exterior do “eu”, da sua busca de algo que ultrapassa por vezes os limites da concretude, que se projeta “do outro lado do ar”, espaço da imprecisão e da ambigüidade, mas também da renovação que o resgata a realidade circundante com outras roupagens:
Tenho um quadro na parede
E no quarto uma janela
Toda aberta, aberta ao mundo,
Sem vidros e sem cortinas.
Entra luz doirada e quente
P´la janela do meu quarto,
Tem sol por dentro e por fora.
Fica tão linda a parede
Com o mundo pendurado.
Mundo em tinta mundo em luz
E só eu posso abraçá-lo
Fico com oiro nos braços
Luz do sol que está no quadro
Da parede do meu quarto.
No silêncio abaulado
Do meu canto
Sob a sombra axadrezada
Da cortina
Escorrem cores
Devagar
Nos vidros da janela
Ainda dorme
Ao pé de mim.
E eu espero
Que ela acorde.
Devagar
Eu abro os braços
E aperto contra o peito
Este momento
No silêncio abaulado
Do meu canto.
Na poesia de Fernanda Leal, a concisão da expressão poética está ao serviço de um estilo depurado, construído pelo viés de uma rigorosa síntese, sustentada pelo uso da expressão precisa, sem volteios retóricos ou floreados metafóricos.
TÉDIO
Por aqui
Estou a viver
Horas minutos morrendo
Não há fome
Não há medo
Não há trigo
Não há vento
Só há tempo
Muito tempo
A sobrar dentro de mim.
ANOITECER
Um mundo nascido
Dentro do meu quarto,
Ao som refractado
Do canto do sol
Deslizam por mim
Cheios de penumbra
Os nós destacados
Da noite a chegar.
Variada e desconcertante, a poesia de Fernanda Leal por vezes alça vôo de lirismo pelos horizontes do real, revelando-o a partir de uma expressão subjetiva, matizada de depurado sentimento, de timbre camoniano:
DESPEDIDA
Despedida
É sentir que a alma se entristece
Por deixar um amigo ao fim do dia
É beijar em cada dia o sol que desce
Sem deixar o sol da véspera que nos grita
É correr sem ver a praia rente ao mar
E sentir a brisa branda na corrida.
Despedida
É ver fugir o vento na cortina
Quando ele se revolta ao pé da gente
É ficar à beirinha do passeio
E fechar o ar da noite em nosso peito
P´ra apagar um candeeiro em cada esquina.
Apesar da brevidade de alguns textos, estes, no entanto, abrem-se para diversas leituras e múltiplas interpretações. A poesia de Fernanda Leal resulta de uma postura poética das mais interessantes e acabadas da poesia dos anos 80, que nos faz remontar, por vezes, a uma romântica visão de mundo.
INÊS LOURENÇO
O caruncho repicava nas frinchas
Alongava as pernas
A casa envelhecia
Inês Lourenço
Nascida em Lisboa, em 1959, Inês Lourenço fez a sua estréia na literatura no ano de 1980 com o livro de poesias Cicatriz 100%, prefaciado por Maria Isabel Barreno. Colaborou em várias Antologias de poesia contemporânea, no Jornal de Letras –JL -; Colóquio, Artes e Idéias, etc. Sua poesia, como a de outras poetisas da sua geração, volta-se para um “novo realismo” ligado à revalorização do quotidiano. A poetisa trabalha a matéria que lhe vem da realidade concreta, do dia-a-dia, de forma absolutamente exterior e explícita, objetiva e centrada no objeto do espaço externo (Na rua das traseiras havia um cata vento/ veloz nas turbulências de Inverno). Suas percepções das coisas vão orientando os poemas, nos quais pouco se entrever da sua autora. O “eu-poético”, quando fala de si, reporta-se ao passado, à infância (a minha infância/ cheira a soalho esfregado a piaçaba/ aos chocolates do meu pai aos Domingos).
SATÉLITE
Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz.
Seios e estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.
MIRAMAR
Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efêmera combustão.
GUILHERMINA SUGGIA
(variações sobre um retrato)
No escarlate do vestido
entre os joelhos avulta
o versátil companheiro
que em voz grave lhe responde
desde esse Porto marítimo
da infância, muito antes
da era dos petroleiros e
da boçalidade dos banhistas.
No atelier londrino
de Mallord Street,
o pintor fixa o instante
de uma metamorfose.
Na tela cresce a silhueta
Unida ao Stradivarius,
Num corpo mútuo
De exótica mariposa,
Olhos cerrados no meridional
Abraço. Nem Pablo
O virtuoso, nem qualquer outro
Amante, desatará jamais
Esse abraço sem fim.
Zenóbia Collares Moreira . "Retóricas femininas fin-de siècle". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Parte III (continuação).
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.
MIRAMAR
Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efêmera combustão.
GUILHERMINA SUGGIA
(variações sobre um retrato)
No escarlate do vestido
entre os joelhos avulta
o versátil companheiro
que em voz grave lhe responde
desde esse Porto marítimo
da infância, muito antes
da era dos petroleiros e
da boçalidade dos banhistas.
No atelier londrino
de Mallord Street,
o pintor fixa o instante
de uma metamorfose.
Na tela cresce a silhueta
Unida ao Stradivarius,
Num corpo mútuo
De exótica mariposa,
Olhos cerrados no meridional
Abraço. Nem Pablo
O virtuoso, nem qualquer outro
Amante, desatará jamais
Esse abraço sem fim.
Poetisa da geração 80, Inês Lourenço integra o coro de vozes poéticas femininas que ajudam a renovar a poesia que a partir desta década abriu espaço para tantas poetisas de expressiva qualidade, como Teresa Rita Lopes, Rosa Alice Branco e Adília Lopes, para citar apenas algumas. Sem regras a obedecer, sem rumos pré-estabelecidos a seguir, a poesia dessa geração chama a atenção pelas diferentes linguagens que instituem, pelas diversificadas e até divergentes tendências que as conduzem. Todavia a presença do real quotidiano prepondera em todas elas, reabilitado, renovado e inovador.
____________________________________________________Zenóbia Collares Moreira . "Retóricas femininas fin-de siècle". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Parte III (continuação).
CONTINUA