O itinerário do lirismo feminino, iniciado no longínquo e já enevoado século XV, aproxima-se do presente da história literária da contemporaneidade mais imediata trazida pelo terceiro milênio, para a qual todas as poetisas que se estrearam a partir dos anos 80 transitarão. Todavia, parte das poetisas, pertencentes à novíssima geração fin-de siècle, que atravessarão as fronteiras do milênio, trazendo em suas obras novas visões, novas formas de estar na poesia e no mundo, deram início à publicação das suas obras na década de 80 e de 90. Isto não significa, no entanto, que poetisas com obras publicadas em décadas anteriores não se incluam dentre as mais importantes vozes da poesia feminina contemporânea portuguesa como é o caso, por exemplo, de Maria Teresa Horta, que se estreou em 1960.
ADÍLIA LOPES
Adília Lopes, nascida em 1960, é nos dias atuais uma das mais importantes poetisas de Portugal. A sua poesia é considerada uma exceção, “um caso bastante singular” da poesia portuguesa fin-de-siècle, à qual se ajusta com absoluta propriedade, embora com nova roupagem, o conceito de belo baudelairiano, como expressão grotesca da realidade, das coisas simples do cotidiano. Todavia, trata-se de uma espécie de grotesco que não recorre ao fantástico. No grotesco adiliano, o real é a peça chave do poema. Ele é penetrado da realidade mais prosaica, funde-se nela, ao mesmo tempo em que dela se afasta, que desestrutura as bases de sua estabilidade, com tal força transformadora que tudo quanto antes parecia familiar e imutável, reaparece travestido em seu contrário, em seu aspecto ridículo, desarazoado, desconchavado.
Fedra está apaixonada
por Hipólito
Hipólito
não está apaixonado
por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre
num acidente
Todos esses ingredientes, além de remeterem para a esfera do perverso, para o efeito corrosivo dos mecanismos da ironia, da sátira-traços marcantes da poesia de Adília -, remetem para o humor, em alguns casos beirando à comicidade acasalada com o patético.
ADÍLIA LOPES
A minha poesia não é exclusivamente satí-
rica, é também lírica. (...) Há sempre uma
grande carga de violência, de dor, de serie-
dade e de santidade naquilo que escrevo.
Fedra está apaixonada
por Hipólito
Hipólito
não está apaixonado
por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre
num acidente
Todos esses ingredientes, além de remeterem para a esfera do perverso, para o efeito corrosivo dos mecanismos da ironia, da sátira-traços marcantes da poesia de Adília -, remetem para o humor, em alguns casos beirando à comicidade acasalada com o patético.
Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre [1]
O aparecimento de sua obra irreverente, antilírica e provocadora, não foi percebido senão após muito tempo, cerca de 15 anos, ao longo dos quais a poetisa publicou cerca de treze livretos de poesia, praticamente despercebidos pelo grande público leitor. A situação começou a ser revertida após a publicação de Obra, livro que reúne 15 títulos, dentre os quais a autora incluiu dois livros inéditos, Regresso de Chamilly e Irmã Barata, Irmã Barata. Os ventos favoráveis a esta mudança sopraram do meio universitário, através de críticos como Américo Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre, que compreenderam e respeitaram a liberdade com que a poetisa fazia de sua poesia “um jogo bastante perigoso”, conforme a própria autora deixa entrever nos versos de uma das poesias incluída em seu primeiro livro, Um jogo bastante perigoso, publicado em 1985:
Os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas.
Conforme sublinha António Guerreiro, “este poema desenvolve muito mais uma lógica do que uma poética. Mas isso é o que acontece em toda a poesia de Adília Lopes, e é precisamente aí que se torna bem visível a periculosidade do jogo: o que está em causa não é, de modo algum, a produção de uma obra bela (digamos, uma experiência estética, naquilo que ela tem de edificante futilidade), mas a vida ou a morte do autor”. [2]
Isto poderia assumir um sentido “trágico”, se este, em sua obra, não se confundisse com o ridículo, com a zombaria:
Os gostos e os desgostos
levam ao poema
como podem levar
ao precipício
o poema fala do precipício
lá haverá choro
e ranger de dentes
e não haverá Kleenex
nem o Dr. Abílio Loff
o meu querido dentista
o poema fala do precipício
evitado a tempo
o mau poema não mata
(mais vale burro vivo
que sábio morto).
A proposta poética de Adília Lopes não obedece a um plano linear e redutor, ao contrário disto ela incorpora todas as possíveis linguagens, a erudita e a popular, lança mão de qualquer matéria, não importando se são ou não consideradas poéticas, não respeitando, portanto, certas convenções impostas pela dignidade da poesia, pelo bom gosto e outras convenções que se instituem em torno do que se deve ou não de deve dizer em poesia. Como diz António Guerreiro, Adília escreve as suas poesias “de costas viradas para o leitor” e centrando-a no autor, “não sob a forma de um eu como centro de uma construção ou de uma expressão”, mas de um eu que põe em prática uma lógica implacável de que também ele não se salva. [3]
Mas é justamente na lição emancipatória, que oferece cada livro, cada poesia de Adília, que reside todo o interesse que deve mover os que buscam o prazer do texto, a convencia com o “novo”, sem pruridos de preconceituosa pudicícia, sem os espartilhos da tradição poética. Despojados desses escudos que de nada nos protegem, senão dos nossos próprios receios de gostar, aderir e tornarmo-nos cúmplices da tão impudica revelação de tudo que é orquestrado no concerto das linguagens adiliano, tudo quanto, estranhamente os críticos de Adília usam para distinguir a sua poesia da poesia “decente” dos seus contemporâneos, esquecendo o que todos aprendem desde cedo: que “a poesia é, por definição, coisa digna: onde ela fala, o mundo cala”.
METEREOLOGIA
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
a vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
Chove
Mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
A solidão
De Adão
Antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Gênesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
Com um grito de júbilo
A mandasse embora
Com sete pedras na mão
Mas eu acho
Que foi
O que me aconteceu
Temendo isso
Deus
Não me deu
O papel de Eva
Nem o de Maria
Porque também
S. José
Me tinha corrido
A pontapé
Do livro Clube da Poetisa Morta, publicado em 1997, foi recolhido o poema, dado a seguir, tão desconcertante quanto os demais da autora:
O morto do horto
É o porco
Da aldeia
O moço
Espetou-lhe
A faca
No cachaço
A Maria Arminda
Felicíssima
Mexe o sangue
No balde
Com a pá
A mãe catequista
Fugiu para os montes
Com o avental
Pela cabeça
Para não ouvir
Os gritos
Tudo se passa
Na casota
De madeira e de palha
Rente ao poço
Rente ao osso.
O fato é que, depois de tantos livros publicados, Adília Lopes é reconhecida e começa a conquistar espaço no mundo das letras para a sua obra. Todavia, comenta Eduardo Pitta, a autora suscita no meio literário a “reacção admirativa de quem contempla um unicorne em pleno Rossio (...): se a crítica não sabe o que dizer de quem tão ostensivamente a põe em causa, a academia, manifestamente, diverte-se, assim disfarçando a sua incomodidade perante o fenômeno que, no fundo, não consegue entender”. [4] Com efeito, Adília Lopes confunde a crítica, desnorteia qualquer tentativa de rotulá-la, e, mas que tudo, ousa escrever um tipo de poesia que escapa ao comum, ao previsível e que se lança na mais despudorada revelação de tudo. “como se nos dissesse que a literatura vive desse suplemento de mistério, e de alma, a que damos o nome de Autor – e que, anulando este sob a revelação pública da mesquinhez dos seus abismos, nada mais resta do que uma linguagem desalmada, neutra e freqüentemente baixa, isto é, obscena, quais são obscenos todos os autores, por isso que são autores. A literatura seria, pois essa forma de publicidade extrema do mais íntimo que só criaturas desprovidas de pudor – e de senso – se atrevem a praticar”, [5] e é o que faz Adília:
Eu quero foder foder
achadamente
se esta revolução
não me deixa
Foder
até morrer
é porque
não é revolução
nenhuma
[...]
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troça
hoje é uma relação
de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente
[...]
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
[...]
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste
Sobre Adília, escreve o Prof. António Ladeira, nos comentário críticos que escreve sobre o livro da poetisa – Adília espanca Florbela Espanca -: Vivendo eu fora de Portugal, surpreende-me que a poesia de Adília – há dez anos uma curiosidade inofensiva – seja hoje conhecida, cause escândalo, tenha palavrões, seja sacrílega quando “insulta” a Florbela Espanca, etc. Há muito que a poesia portuguesa precisava de uma Adília Lopes, de um “purgante” para ver se recupera alguma da dignidade perdida. (...) as pessoas já mereciam este choque elétrico para que, com o tempo, volte tudo outra vez ao normal; trata-se de um ciclo salutar, essencial em poesia”. [6]
Para finalizar, a resposta de Adília ao entrevistador que lhe perguntara se ela conseguiria explicar a razão pela qual a imagem do bordel é tão utilizada em sua obra: “Na adolescência gostava de ler histórias de sexo sórdido como a Nana de Zela ou O Delfim de José Cardoso Pires. Ao fim e ao cabo a história da Redenção começa com um beijo sórdido, o beijo de Judas, que custou 30 moedas. Com o passar dos anos fui-me tornando mais lírica. A Ressurreição começa com Maria Madalena, uma puta pura. Actualmente reconheço que uma sex-shop tem menos sex-appeal para mim que uma Igreja católica romana”.
[1] Adília Lopes, Antologia, p. 181.
[2] António Guerreiro, “A morte do artista” in: O Expresso, de 10/ 03/ 2001.
[3] Id. Ibidem.
[4] Eduardo Pitta, “A voz do canto”, in: O som & a sombra, Revista LER, nº 49, último semestre de 2000.
[5] Id. Ibidem.
[6] Prof. António Ladeira, “o eterno retorno”, in: Apresentação do livro da autora
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