A poesia de Ana Marques Gastão, noturna e saturniana, é atravessada por certa negatividade, por uma serenidade melancólica. Esta forma de expressão poética, fundadora de uma espécie nova de realismo, veiculadora da melancolia do quotidiano, do abandono e da solidão, parece obedecer a uma tendência verificável na obra poéticas femininas fin-de-siècle:
VENS DE NOITE NO SONHO
Vens de noite no sonho
sem pés
entre páginas
de gasta paciência
quando a música findou
e teu sorriso se desfez
como um grão de pólen.
Vens no veneno oculto
de meus dias
no silêncio
dos meus ossos
devagar
arrastando em queda
o nosso mundo.
Vens no espectro
da angústia
na escrita
inquieta
destes versos
no luto maternal
que me devolve a ti.
A escuridão desce então
Sobre o meu corpo
Quando o rosto da morte
Adormece na almofada.
Sempre um de nós
foge. Sombria água
trepida e contínua
água em céu diverso
como diversa eu sou
chão sem flor.
Vã palavra, múltipla
palavra, longínqua
semente entre o arco
e a corda. Nada sara
em meu cego corpo
eu que imagem sou,
não alegoria.
Tremor antigo, árvore
Sem fruto, nada resiste
Nesta cidade sem casa
- só a garça chega em seu
liso vôo porque o tempo
nunca é longo.
NÃO É O CORAÇÃO
Não é o coração
Mas esta carne
Em seu rumor.
Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.
Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.
Náufrago: em tua
vida oculta
se anuncia a luz.
Desenterrada
da sombra
uma nova alegria.
No silencioso ar
gritam os mortos
é aqui a terra.
Mas teu rosto
quebra o tédio imutável
o obscuro dialecto.
Despertas-me, escuto
o mar, o vento,
transparente como a noite.
Na semente dispersa
brota a memória
de uma dócil casa
conhecedora já
dos dramas do universo.
Ana Marques Gastão integra a novíssima geração de poetisas que desponta já no terceiro milênio, cada uma buscando e seguindo os caminhos da diversidade, todavia trazendo na escrita os elementos definidores da poesia da melancolia, herdados das gerações dos anos 80 e 90.
CARLA FERREIRA
Nascida em Angola, Carla Ferreira tem orientado a sua atividade artística preferencialmente para a pintura. Com Ex-tratos de água, título do livro de poesias publicado em 1998, a poetisa faz a sua estréia literária. Dentre a sua temática mais recorrente, figura a meta-poesia, através da qual vai comunicando o seu conceito de criação poética:
O poema é um baralho de segundos
cartas dadas aos silêncios;
dobrando no branco intransmissível
novelos de pele incessante;
contemporiza notas e acessos.
O poema coexiste no duelo dardejante -,
a mortal tortura solidificada no poeta!
O jogo/luta que o poema instaura no ato de sua escrita se institui como um dos tópicos que transita pelos poemas de Carla Ferreira. A poetisa dialoga com o poema, evoca a essência da poesia que em seu ser habita, trata-a por “tu”, numa relação de intimidade sem limites e sem barreiras:
Vem até mim tu que vens de mim
que te acercas malícia transpirada
apresenta-te volátil ao meu momento
Molda-me versos líquidos ao e miragens
Caminha mudamente até mim
tu que passeias em mim
quando palavras são ecos ferventes
vem banhar o deserto do meu sono
Abandona-me aos leitos
e à morte simulada dos sentidos
Deixa-me as chamas
as cinzas de cada fumo e do teu corpo
Doloridamente feliz
deposita-me na encosta do teu sono.
Para a poetisa sabe que a luta com as palavras é inerente ao ato criador, daí a inevitabilidade do embate, na medida em que a poesia nasce de uma busca, de uma ânsia de dizer o mundo, de exprimir o indizível, apesar da consciência do criador de que a palavra nunca expressa fielmente a realidade: Cede-se ao contágio do papel/branco translúcido e maligno/onde delicado desliza/ o rastreio desenfreado da alma.../ Fóssil escrito a negro.
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