Poetisa e romancista, Rosa Lobato de Faria nasceu em Lisboa em 1932. Escreveu e publicou vários romances, desde 1995, todos muito bem recepcionados pela crítica. O essencial de sua poesia está reunido no volume Poemas escolhidos e dispersos, de 1997. Em 1999, publicou A gaveta de baixo, um longo poema acompanhado por aquarelas do pintor Oliveira Tavares.
Do livro Memória do corpo, publicado em 1992, foram selecionadas algumas as poesias, para representá-la neste ensaio, tanto pela renovação estética que nele sobressai, quanto pelo sopro de refinado erotismo que perpassa as linhas e entrelinhas dos seus poemas. A “memória” que conduz a mensagem da autora neste livro segue um itinerário afetivo que se inicia com a memória materna vinculada à infância da autora, a quem dirige os mais belos versos que o amor de uma filha poderia escrever (Minha amante secreta / Meu barco na memória / Razão da minha história / e meu primeiro amor); continua com a revivescência da adolescência (O corpo adolescendo em ventos e sargaços / pôs-se a aprender a lua / as algas as marés / a descobrir em si / gritos ondas e grutas com animais marinhos). Livro da “memória do corpo” em suas várias idades e mutações: memória da delícia mortal / de ter dezoito fomes / de ter dezoito gritos / de ter dezoito anos. Depois vem o tempo da memória da memória / do corpo que há no corpo da saudade. Mas antes de ser saudade, domínios o qual só ela devassa e conhece, a memória do corpo é de novo poema, beijo, afago. / É de novo no corpo que te trago / a exótica festa da nudez
SONETO DE ABERTURA
Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.
E coração também que às vezes teça
razão de me saber mais que a medida
nessa trágica trama tão antiga
a que chamam ficar de amor possessa.
E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez,
E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.
No poema que se segue, a expressão do amor sentimento antecede à do apelo erótico do corpo. A atitude do eu-lírico é mais de súplica, de demanda e expectação que de parte ativa no jogo amoroso:
De ti só quero o cheiro dos lilases
e a sedução das coisas que não dizes
De ti só quero os gestos que não fazes
e a tua voz de sombras e matizes
De ti só quero o riso que não ouço
quando não digo os versos que compus
De ti só quero um sopro nas janelas
da casa abandonada dos meus dias
De ti só quero o eco do teu nome
e um gosto que não sei de mar e mel
De ti só quero o pão da minha fome
mendiga que já sou da tua pele.
No longo poema que vem a seguir, a atitude do eu-lírico é de cumplicidade e de participação ativa no jogo amoroso.
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A retórica do desejo e da voluptuosidade feminina não negaceia palavras na expressão da fruição do prazer do próprio corpo e do corpo do homem amado, com todos os sentidos num só confundidos. O prazer visual faz a festa do olhar, seduzido pelo encantamento pelo corpo masculino.
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A retórica do desejo e da voluptuosidade feminina não negaceia palavras na expressão da fruição do prazer do próprio corpo e do corpo do homem amado, com todos os sentidos num só confundidos. O prazer visual faz a festa do olhar, seduzido pelo encantamento pelo corpo masculino.
A tua boca é uva sol e mosto
vinho luar setembro tangerina
Tens o cabelo solto sobre a testa
dois olhos transviados de assassino
e dizes-me lençol lago floresta
pássaro sangue cântaro destino
Devoras os meus braços os meus ombros
os seios resplandecem de saliva
e descobres na gruta dos assombros
a vaga a lava o lume o sumo a vida
Há algo teatral nas tuas coxas
nas tuas mãos abertas de profeta
a rosa do teu corpo quase murcha
insinua a fragrância mais secreta
Por fim há gritos facas e segredos
mastros erguidos sob um céu profano
e a tua nau vencidos mares e medos
navega no meu corpo a todo o pano
Desvendamos o rasto dos cometas
a rota secretíssima das aves
Só me falta a palavra dos poetas
para dizer amor como tu sabes.
Rosa Lobato não é apenas mais uma poetisa que se integra do Parnaso lusitano contemporâneo. Ela avulta no cenário das letras portuguesa como personalidade revestida de exemplar dignidade poética que transforma em expressão a vibração e a força as imagens guardadas na memória, as vivências da véspera e as promessas pressentidas do amanhã:
Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo
Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto
Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto
P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto
Memória do corpo não é o primeiro nem o único livro de poesias de Rosa Lobato de Farias, mas é, decerto, como os outros que o antecederam, uma das mais refinadas expressões da sensualidade feminina da poesia de cunho erótico, sensual ou amoroso da literatura contemporânea. A autora, com seus dois primeiros romances já traduzidos na Alemanha e, mais recentemente, com o romance O Prenúncio das Águas, publicado na França, é hoje uma referência obrigatória na nova ficção, bem como na nova poesia portuguesas.
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Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina em Portugal: Século XX-XXI. Cap. III, (última parte do ensaio).
Imagem no banner: Ex-Libris, Óleo de W. Parker.
Zenóbia Collares Moreira. O Itinerário da poesia feminina em Portugal: Século XX-XXI. Cap. III, (última parte do ensaio).
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Um comentário:
Lê, visitei seu blog e gostei muito. Deixei recado. Seja sempre bem vinda.
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