24 de jan. de 2012

O Maneirismo na Lírica de Camões - Parte V.


O TEMPO E A ANGÚSTIA DA MUDANÇA

Todas as cousas vejo mudadas,
Porque o tempo ligeiro não consente
Que estejam de firmeza acompanhadas.
Camões

Na temática maneirista, a imagem do tempo em seu fluir contínuo e a consciência da ação modificadora e destruidora que exerce sobre o homem e as coisas estão sempre associadas à angústia pela instabilidade e pela fugacidade da duração da vida.
Nas reflexões dos poetas acerca do tempo não é a constatação de que todas as coisas se submetem a uma constante mutação o que figura como motivo de tristeza e lamentações. O que os perturba de maneira muito especial é o trágico e paradoxal contraste - já poetizado por Horácio em uma das suas odes - entre o tempo natural e o tempo humano. Submetida à ordem do tempo natural, a natureza passa por um processo de mudança que lhe assegura uma renovação cíclica e contínua, que não tem correspondência na vida humana. O tempo humano é inexoravelmente linear e irreversível. As alterações que, em sua passagem, vai impondo ao homem são para pior, na medida em que este só tem uma direção a seguir: a do desgaste físico, da degradação da mente e o caminho sem regresso para o fim da sua existência. O tempo é ainda um outro aliado da vida na mutabilidade das coisas, em sua enganadora e superficial regularidade, na inconstância de tudo. Tão célere em seu percurso, tão breve nas alegrias, instala-se com perspectivas de demora quando portador de mágoas, em que é pródigo.
A consciência aguçada acerca da fugacidade do tempo constitui o elemento centralizador do qual parte uma série de ramificações temáticas que lhe são tributárias: a efemeridade e a transitoriedade da vida, dos prazeres, da juventude, da beleza; a angústia e a impotência do homem perante a passagem do tempo, a qual o arrasta, gradativa e irreversivelmente, para a senilidade, para a decrepitude, para a morte.
A certeza da degradação e da finitude, aliada à convicção de que não existe escapatória ao processo de aniquilação física e mental a que está destinado, deveria estimular o homem a valorizar e a fruir avidamente o tempo presente, a sua juventude e a plenitude de sua energia vital enquanto isso lhe é possível. Todavia não é essa atitude de comprazimento com os apelos da vida e do corpo o que o inspira. Daí a ausência, no lirismo maneirista, do conhecido tema horaciano do carpe diem, expressão proveniente de uma citação do poeta latino que lembra a brevidade da vida e a fugacidade do tempo, sugerindo a máxima fruição do momento presente, a busca da felicidade imediata. Esse tema, juntamente com o do collige, virgo, rosas, outro exilado da lírica maneirista, eram encarecidos ao extremo pelos poetas renascentistas. Ambos os temas perderam o sentido ou a adequação perante a sombria e amarga mundividência maneirista, que, em nenhuma circunstância, se mostra aberta ao elogio da vida, à celebração dos prazeres terrenos. 

Em lugar do comprazimento com os falaciosos apelos do mundo, os poetas maneiristas preferem as alegrias do espírito, o refúgio em Deus; em lugar da fruição do momento presente, preferem sacrificá-lo em prol da bem-aventurança em um futuro projetado além da vida terrena, como afirma Camões nos versos finais das Redondilhas Babel e Sião:

Quem com disciplina crua
se fere mais que uma vez,
cuja alma de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne n´alma fez;
e beato quem tomar
seus pensamentos recentes
e, em nascendo, os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes;
[...]
Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, depois de a ti subir,
lá descanse eternamente.
quem com eles logo der
na pedra do furor santo

O desencanto com a vida e a conseqüente reflexão acerca da condição humana, do destino do homem na vida terrena e na vida eterna bem como o temor de perder a bem-aventurança nesta última constituem uma das linhas temáticas mais desenvolvidas pelos poetas maneiristas.
O tema da mudança operada pelo fluir do tempo é freqüente na lírica de Camões. Na Canção X, ele expressa o nostálgico desejo de voltar no tempo, pois da vida já transcorrida na dor e na agonia só lhe restam as memórias da longínqua felicidade vivida no passado distante. Daí o seu desejo de um retorno, que sabe impossível, aos tempos pretéritos, nos quais se situa a sua ventura:

Que se possível fosse que tornasse
O tempo para trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse,
Pelas flores que vi da mocidade.

Consciente da irreversibilidade do tempo e das perdas decorrentes do seu fluir contínuo, o poeta sabe que desse tempo bom só lhe ficaram as “perpétuas saudades” do bem perdido:

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.
Razão é já, ó anos, que vos vades,
porque estes tão ligeiros que mostrais,
nem todos pera um gosto são iguais,
nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.
Esperanças de novas alegrias
não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
que do contentamento são espias. 19

As únicas certezas que jamais falham são as de que o tempo é fugaz e irreversível, os anos transcorrem céleres e tudo está sujeito a mudança. A mudança, para os maneiristas, é encarada como a mais funesta e terrificante conseqüência da passagem do tempo, assumindo um significado que ultrapassa bastante o de simples e natural modificação física. Ela torna-se cruel, na medida em que, ao contrário do que ocorre na natureza, na qual obedece a uma seqüência cíclica, propiciadora da sucessão das estações e do seu retorno periódico, para o homem ela é linear e definitiva: nada do que mudou retorna ao seu estado anterior. O soneto camoniano que se segue tematiza esse aspecto aterrador da mudança:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem – se algum houve – as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.  20

Mais que as mudanças verificadas no físico do homem, aquela da qual se queixa Camões se traduz em transmudação verificada no “ser”, na “confiança”, nas “vontades”, bem como converte a felicidade e o prazer em infortúnio, a alegria e a esperança em tristeza e desilusão. Se alguma ventura houve, esta fica na saudade, assim como o mal sofrido permanece através da lembrança. No mais, tudo muda, tudo desaparece, salvo a própria mudança (“que não se muda já como soia”).
Em outro momento, Camões se mostra consciente da mudança ou da destruição causadas pelo fluir do tempo como um processo geral por que passam todas as coisas, não somente acarretando a passagem de um estado melhor para um outro pior, como propiciando uma situação inversa, menos pessimista em sua relatividade, como pode ser observado no soneto que se segue:

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
a força, a arte, a manha, a fortaleza;
o tempo acaba a fama e a riqueza,
o tempo o mesmo tempo de si chora.

O tempo busca e acaba o onde mora
qualquer ingratidão, qualquer dureza;
mas não pode acabar minha tristeza,
enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,
e o mais belo prazer em choro triste
o tempo, a tempestade em gran bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
o peito de diamante, onde consiste
a pena e o prazer desta esperança.

Em outros momentos de sua obra, o poeta deixa de lado a racionalização acerca das metamorfoses causadas pela passagem do tempo nos sentimentos, nos estados de alma e na capacidade física das pessoas, dentre outras coisas, para expor melancolicamente a sua visão pessoal e pessimista acerca dos infortúnios e danos acarretados pelas mudanças:

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças.
E as mudanças dos anos;
onde vi tantos enganos,
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.
[...]
Vi ao Bem suceder o Mal
e ao Mal, muito pior.  21

Vale ressaltar que essa concepção da vida como desterro e prisão deriva da mundividência neoplatônica, sendo comum a alusão a essas imagens nas obras de muitos poetas maneiristas.
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Notas

 18- Luís de Camões, Op. cit., p. 235.
19- Soía: costumava, era costume. Luís de Camões, Op. cit., p. 199.
20-Luís de Camões, “Babel e Sião” in: Op. cit., p. 102-103.
21-Luís de Camões, Op. cit., v. II, p. 139.
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Zenóbia Collares Moreira. O Maneirismo na Lírica de Camões, Natal/2007.

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