20 de jan. de 2012

O Maneirismo na Lírica de Camões - Parte VIII.

A MELANCOLIA E O GOSTO DE SER TRISTE

Que, pois a minha pena é sem medida,
ali triste serei em dias ledos
e dias tristes me farão contente.

                           Camões

Claude-Gilbert Dubois lembra que a melancolia constitui um dos temas mais específicos da época maneirista. Ela é “uma obsessão” já presente no início do século XVI. A melancolia maneirista, faz-se acompanhar do saturnianismo, daí a conseqüente avalanche de poesias saturnianas, expressando a visão desencantada do real, a exacerbação do tédio existencial, o non sense do mundo, a irracionalidade humana.   Estado de alma que revela inquieta tristeza, a melancolia manifesta-se entre os artistas alastrando-se como uma epidemia, uma espécie de doença da moda. Enfim, fazia parte do pathos maneirista o gosto de ser triste, um certo culto à tristeza, tantas vezes e por vários modos expresso na lírica dos poetas do período, muitos dos quais exaltam a tristeza como a quintessência do bem, mórbida e masoquisticamente fruída.
É oportuno lembrar que o melancólico é sempre um ser infeliz e solitário, em estado de absoluta inaptidão para viver normalmente a experiência do cotidiano. Ensimesmado, o seu discurso gravita preferencialmente em torno do “eu”, privilegiando uma linguagem pejada de corrosivo pessimismo e de outros elementos que denunciam a sua natureza saturniana, de ser condenado a irremediável infortúnio. Dentre as inúmeras poesias de Camões que manifestam o seu estado melancólico, o soneto que se segue exemplifica com justeza o solipsismo do poeta, que traduz o seu visceral repúdio à convivência humana, aos lugares aprazíveis, buscando o isolamento em um cenário árido e áspero, adequado ao estado de tristeza que ensombra o seu espírito:

Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja habitado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente:

Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.


Outro exemplo de estados melancólicos oferece Camões na Écloga V, quando põe no monólogo do pastor o discurso ditado pela tristeza corrosiva e proferido em meio à natureza, junto à qual desabafa a amargura resultante do seu pesar pelo abandono e indiferença da mulher amada:

Aqui, com grave dor, com triste acento,
deu o triste pastor fim a seu canto;
co´o rosto baixo e alto pensamento,
seus olhos começaram novo pranto;
mil vezes fez parar no ar o vento,
e apiedou o Céu o coro santo;
as circunstantes selvas se abaixaram,
de dó das tristes mágoas que escutavam.
Com uma mão na face, e encostado
em sua dor tão enlevado estava,
que, como em grave sono sepultado,
não viu o Sol que já no mar entrava.
[...]
Já sobre um seco ramo estava posto
o mocho c´o funesto e triste canto,
a cujo som o pastor ergueu o rosto,
e viu a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio a seu gosto,
mas não quebrando o fio a seu pranto,
pera melhor cuidar em seu cuidado,
levou pera os currais o manso gado.

Embora não sejam exclusividades do Maneirismo, a melancolia e a angústia avultam como estados psicológicos comuns aos maneiristas. De tal forma a melancolia se alastrou que se pode falar nela como “o mal do século”.
Os objetos tristes, os lugares apartados, agrestes e sombrios, a solidão e a tristeza tornam-se uma nova fonte de prazer. Há, por assim dizer, uma espécie de volúpia em relação aos estados depressivos e uma nova forma de hedonismo - o prazer masoquista da dor - donde o uso dos tópicos do “fartar-se de tristeza” e “do gosto de ser triste”, presentes na poesia de tantos poetas maneiristas. 
Essa vontade de tristeza, que se enquadra tão bem nos esquemas mentais do Maneirismo literário português, ter-se-ia originado da própria tradição poética lusitana. Basta que se volva o olhar para trás, na direção do passado literário português, para se ver que o comprazimento com a dor e o culto da tristeza, tão genuinamente lusitanos, são elementos já sobejamente expressos na poesia que antecedeu o Maneirismo, notadamente na de Bernardim Ribeiro, como tornam evidente os fragmentos que se seguem, colhidos das églogas do poeta:

Folgo de me entregar
à mágoa das minhas mágoas;
Chegou a tanto o meu mal
que não sei viver sem ele;

Minha dor
tanto ela é maior,
e eu mais contente dela.

Chorava as minhas mágoas
folgando muito com elas.

Esse manifesto prazer das mágoas, esse folgar com elas ressurgem de forma bem semelhante não somente na poesia de Camões como na de poetas seus contemporâneos.
Na Écloga II, Camões põe nas falas de Almeno palavras que traduzem a vontade de fartar-se de tormento e de dores: “Consinta meu cuidado/ Que me farte de ser desesperado”.
É ainda Camões quem escreve, em sua Canção X, estes versos que traduzem o caráter de permanência que o “gosto de ser triste” assume dentro de sua alma:

Não foi senão semente
dum comprido e amaríssimo tormento,
este curso contínuo de tristeza,
estes passos tão vãmente espalhados
me foram apagando o ardente gosto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que, do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste

Tais versos avultam como metáfora da transformação operada na natureza do poeta pela persistência dessa tristeza ao longo da sua trajetória existencial, aparecendo, por vezes, exaltada como puro bem, com o qual o poeta deseja viver e morrer.
Em suas Cartas de Ceuta, Camões expressa generosamente esse gosto de ser triste, em versos cujo parentesco com os de Bernardim é patente:

E por tão triste me tenho
que se sentisse alegria,
de triste, não viveria.  

Só tristeza ver queria,
pois minha ventura quer
que só a ela
conheça por alegria,
e que, se outra vez quiser,
moura por ela.

Em um outro passo das mesmas Cartas, o poeta acrescenta: “o que mais me entristece é ter contentamento, pois fujo dele, que minha alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude viver sem ele”. Evidentemente, a melancolia, a dor e a tristeza tornaram-se um prazer a mais, associado, numa estranha simbiose, com o masoquismo inerente ao culto do gosto de ser triste, mais uma vez afirmado nos seguintes versos:

Oh! Que doce penar! Que doce dores!
E se hua condição endurecida
também me negar a morte, por meu dano,
oh! Que doce morrer! Que doce vida!

Na lírica camoniana surpreende-se o mesmo prazer das mágoas, a mesma vontade de sofrimento, o mesmo apego ao mal que aflige Camões, revelados nas Cartas antes referidas. As éclogas são pontilhadas por expressões reiteradas de evocações à dor ou de comprazimento com elas:

Consinta o meu cuidado
que me farte de ser desesperado,
pera desenganar minha esperança,
que pera isso nasci
-pera viver na morte, e ela em mi.

Não cesse o meu tormento
De fazer o seu ofício,
que aqui tem ua alma ao jugo atada.
nem falte o sofrimento,
porque parece vício
pera tão doce mal faltar-me nada.

Esse culto idólatra, ou masoquista, da dor e do gosto de ser triste, já presente na obra de Bernardim Ribeiro e na de diversos poetas maneiristas, percorre a lírica camoniana em quase sua totalidade. Às vezes, a tristeza refina-se em desespero, a poesia derrama mágoas, agonias e apenas convém a infelizes, como declara Camões em sua Canção X, na qual conclama os desesperados para escutarem os seus versos:

Chegai desesperados, para ouvir-me,
E fujam os que vivem de esperança
Ou aqueles que nela se imaginam,
Porque Amor e Fortuna determinam
De lhe darem poder pera entenderem,
À medida dos males que tiverem.

Não raro a poesia se faz veículo de uma dolorosa exteriorização do poeta acerca da inexeqüibilidade de solucionar as suas próprias contradições internas, fundadas numa excruciante peleja travada no seu íntimo entre as aspirações da alma e as fraquezas da carne, entre os ideais espirituais e as miragens da vida e do mundo. Tal situação de conflito e desarmonia do homem consigo mesmo redunda numa angústia impotente, instauradora de estados melancólicos. O mundo subjetivo dos poetas passa, então, a ser construído em função das obsidiantes coordenadas dialéticas entre pecado e contrição penitente. A vida presente ensombra-se em sua falta de perspectiva e excesso de equívocos; o futuro insondável é uma incógnita. Conseqüentemente, a poesia torna-se uma viva expressão de nostalgia da felicidade passada e uma depressiva e queixosa reflexão acerca do caráter transitório do bem e da permanência do mal na alma do homem e no mundo.

Convictos da condenação do homem a um percurso de vida sem perspectiva de felicidade no presente e no futuro, os maneiristas não cultivam a esperança de ventura e de libertação das provações que os espreitam ao longo da sua existência terrena; antes assumem a consciência de que ela é um misto de desterro e cativeiro, no qual a alma, marcada pelo ferrete do pecado original, purga os padecimentos do exílio distante da graça divina. Toda a esperança que nutrem é projetada além da vida. A morte afigura-se, então, para o pecador, como a sua libertadora: ela representa o retorno do homem ao amparo de Deus, como filho pródigo festejado, trazido pelo arrependimento à casa do pai benevolente e misericordioso, após uma jornada de erros e pecados. Nas redondilhas Babel e Sião, Camões faz referência a um sentimento de nostalgia “da pátria divina”, da qual sua alma descendeu. Daí a sua certeza de que a saudade que o aflige é de outra natureza:


Não é logo a saudade
das terras onde nasceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa Cidade
de onde esta alma descendeu.

É notória a independência de Camões face ao esquema religioso de sua época. Exceção feita às Redondilhas Babel e Sião e à Elegia X, não se encontra em sua lírica o desenvolvimento de temáticas fundamentadas no ascetismo dominante nas obras dos poetas maneiristas do período pós-tridentino, principalmente da fase que se seguiu à derrota portuguesa em Alcácer-Quibir, dois anos antes da morte de Camões, ocorrida em 1580. A temática do amor divino surge, portanto, muito comprometida com o  ascetismo que se intensificou e dominou a sociedade portuguesa finissecular, decorrente da situação de miséria e humilhação que abateu o ânimo e o orgulho nacional do povo, com a pátria sob o domínio da Espanha.
Da desilusão acerca da bem-aventurança na vida terrena e da convicção de que toda esperança de mudar esse quadro é vã procede o gosto maneirista pela expressão de anseios e expectativas de bens espirituais, os únicos que assegurariam ao homem o resgate do sofrimento e a felicidade em uma outra forma de vida na eternidade, no Paraíso celestial, onde a utopia católica fincou os seus alicerces.

Na opinião de Gustav René Hocke, o Maneirismo não se reduz somente à expressão de “um sentimento trágico-saturniano da vida”: ele é também a manifestação de um amor a Deus, em plena desgraça trágica”. 106.
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Notas
106 -Gustav René Hocke, El mundo como laberinto, p. 406.
As poesias de Camões foram colhidas nas Obras Completas  de Luís de Camões, Livraria Sá da Costa, vol. II, 1972.
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Zenóbia Collares Moreira. O Maneirismo na poesia lírica de Camões. Natal, 2007.

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