Segundo consta na história literária portuguesa, a intencionalidade de Camões, ao iniciar a composição de “Os Lusíadas” era a de seguir os modelos clássicos da epopéia, legados pela “Odisséia” de Homero e na Eneida de Vergílio, conforme os ditames renascentistas, ainda em voga na juventude de Camões, quando, aos vinte e um anos, deu início à sua epopéia. Considerando que esta só foi publicada após o retorno do poeta do prolongado exílio no Oriente, já alquebrado, desiludido, pobre e doente, é evidente que o trabalho foi revisado e alterado, especialmente no que toca os excursos do poeta. A pátria que Camões deixara em 1549, aos vinte e oito anos de idade, quando foi desterrado para Ceuta, já não era a mesma ao retornar em 1567, como ele escreve na estância 145 do Canto X, onde, cansado e desiludido, pede licença à Musa para encerrar o canto:
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D´hua austera, apagada e vil tristeza. (Canto X, Est. 145)
E não sei por que influxo de destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto. (Canto X, Est. 146)
Adaptação para o português atual: Não posso mais cantar, Musa, não posso mais, porque tenho desafinada a lira e a voz enrouquecida (cansada) e não pelo esforço de cantar, mas por ver que venho cantando a gente surda e endurecida (indiferente). O favor com que o gênio mais se inspira não me concede a Pátria, não, porque está mergulhada no amor da cobiça e na aspereza de uma rigorosa, inerte e deprimente tristeza. [...] E não sei por qual influência do destino a minha Pátria não tem uma alegre altivez e um geral contentamento, que levantam os ânimos continuamente e tornam alegres os semblantes para todos os trabalhos.) Esses versos são a expressão do desengano, da tristeza e da dor de Camões causadas pela decadência generalizada a que fora arrastada a nação, sob o desastroso reinado de D. Sebastião.
Comparem-se os versos das estâncias 145 e 146 do Canto final do poema, com as três das cinco estâncias que compõem a Proposição, abaixo transcritas, todas impregnadas da euforia e do entusiasmo pelo poema, absolutamente contrastantes com o tom amargurado, lamentoso e desanimado do poeta, neste final.
III
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Calle-se de Alexandro e de Trajano
A fama das victórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram!
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
IV
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Daí-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente;
Porque de vossas águas Phebo ordene,
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
V
Daí-me hua fúria grande e sonorosa
E não de agreste avena ou frauta rude,
Mas de tuba canora e bellicosa.
Que o peito acende e a cor ao gesto muda!
Daí-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, a que Marte tanto ajuda,
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso!
A diferença entre o início e o fim da epopéia é gritante e poderia ser considerada uma contradição inadmissível do poeta. Todavia, esta aparente contradição se esvai ao enquadrarmos a epopéia nos princípios da estética maneirista.
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